Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder
tão firme e silencioso como só houve
no tempo mais antigo.
Estes são os arquitectos, aqueles que vão morrer,
sorrindo com ironia e doçura no fundo
de um alto segredo que os restitui à lama.
De doces mãos irreprimíveis.
- Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas,
as casas encontram seu inocente jeito de durar contra
a boca subtil rodeada em cima pela treva das palavras.
(…)
Falemos de casas como quem fala da sua alma,
Entre um incêndio,
Junto ao modelo das searas,
na aprendizagem da paciência de vê-las erguer
e morrer com um pouco, um pouco
de beleza.

Herberto Helder, A Colher na Boca.

Esta exposição contínua, organizada em dois momentos sucessivos, marca o encontro prometido entre a Porta 33 e o Arquitecto Paulo David. Trata-se, num primeiro momento, de uma exposição-arquivo, sem ordem programática e cronológica, montada a partir da lógica, dos nexos do arquivista, aquele que preserva, que conserva e que guarda.

A dinâmica da mostra é ascensional, em movimento de espiral, como se o tempo histórico, amarrado à crença do progresso, fosse aqui libertado do constrangimento da cronologia, a linearidade que os homens quiseram impor ao tempo.

O primeiro movimento é o da escuta, da atenção. Falamos de casas — no começo são sempre as casas —, começando com a pequena escala como propósito de aprendizagem e de preparação para a escala maior — uma forma de sabedoria humilde. É uma questão de desenho, enquanto dispositivo e enquanto linguagem. Em certo sentido, a maqueta é já, simultaneamente, projecto (desígnio) e realização.

Assim, no piso térreo, temos projectos de moradias, temos as Salinas, a Baía de Câmara de Lobos, as Mudas e o Centro Cívico de Torres Vedras. Deambulamos entre o espaço privado [habitar as casas] e o espaço comum [edifícios públicos], entre escalas e propósitos.
Exemplos maiores de compreensão, de integração e de fusão com o lugar, o projecto de grande escala das Mudas e da Baía de Câmara de Lobos, pontificam aqui como símbolos de uma forma de pensar e praticar o gesto arquitectónico em continuidade com as forças naturais e culturais do contexto.

O segundo movimento, no primeiro piso, inscreve-se ainda nessa lógica de relação telúrica e de domínio do território. Na chamada sala das conversas, a maior deste piso, podemos apreciar um conjunto de projectos de moradias e edifícios públicos fora do contexto insular. Aqui, o espectador move-se como se estivesse num verdadeiro arquivo, em organização labiríntica, excessiva, experimentando a vertigem própria dos lugares-repositórios de memória. Como nas grandes bibliotecas, arquivos ou reservas de museus, encena-se um lugar sem tempo, onde passado, presente e futuro coexistem, deixando mesmo de existir. A arquitectura, os arquitectos, vivem entre o entusiasmo do primeiro traço e o desencanto da obra que não chega a ser construída — é a mediação e a mediação desse tempo que esta sala materializa.

Na sala intermédia, sala do topo escadas, a maqueta do Hotel do Lindoso, que surge em contraponto com os exercícios anteriores, isto é, um objecto que responde a um exercício de gravidade, que não toca no chão, apoiado numa estrutura palafítica. Mais à frente, na sala de frente-rua, encontramos, aberto sobre o horizonte, o projecto para um forte-abrigo, espécie de ponto elevado de observação e reconhecimento do território.

No segundo piso, duas salas mais. Aqui, onde em constelação-atlas convivem dois arquivos — o arquivo de pinturas e desenhos da Porta 33 e o arquivo de maquetas do Atelier de Paulo David—, a dinâmica contextual amplifica-se e adensa-se. As duas grandes maquetas, mais uma vez o projecto para o Centro de Artes das Mudas [sala do lanternim] e a Casa na Calheta [sala do meio] apresentam-se como enigmáticas presenças de intensa alvura.

Nesta exposição o visitante oscila entre duas formas de conhecimento do mundo não necessariamente inconciliáveis: entre a persistência do arquivo (a memória reificada em objectos que demoram no espaço) e o exercício anacrónico da lenta escuta do passado em busca da potência do arcaico — de um saber que é transmitido no fluxo da lentidão, através da atenção ao mundo e aos gestos nele inscritos — “desse sagaz exercício de um poder tão firme e silencioso como só houve num tempo mais antigo”.

Nuno Faria
Novembro 2018