NUNO HENRIQUE
“O velho Dragoeiro que existia na Ponta do Garajau caiu ao mar durante uma chuvada intensa de sudeste, ocorrida no equinócio de Outono de 1982.”
PORTA33 — 04.09.2010 — 30.10.2010
Conversa com Nuno Henrique e Manuel Rodrigues

PORTA33 — 04.09.2010

A quem inicie agora a sua vida no mundo da arte, sobretudo considerando o cisma do conceito, talvez não seja possível evitar um sentimento paradoxal. Por um lado, de uma certa claustrofobia, dada a enorme diversidade a assimilar, por outro, dadas as dimensões que a arte atingiu, de imensa liberdade. É uma situação que, apesar de ditada pelo contexto circunstancial, serve de teste de resistência aos que se vêem como candidatos a continuadores de uma tradição de que se pretendem herdeiros.
Porém, por maior que seja, o desafio não provém tanto da responsabilidade perante a herança – sempre cada vez mais rica e, por isso, hoje mais pesada que nunca; esse desafio, antigo e contemporâneo, está em encontrar o modo como, com e perante esse legado, apresentar uma proposta que ultrapasse quer a simples exploração da dimensão subjectiva, quer a tentação de um fazer ingénuo ou cínico, capaz porém de trazer uma maior popularidade quase certa e ‘compensadora’.

Dirigido ao desejo do candidato, às suas capacidades, tal teste é parte do corpo dessa herança; não as roupagens, que a história conserva como obra, mas as próprias carnes, que as vestiram e despiram – corpo manifesto naqueles que souberam e conseguiram ultrapassar esse desafio, relançando-o para o futuro. Se temos de nos perguntar o que faz com que alguém se pareça constituir como uma nova promessa fiável, antes que o seu trabalho possa ter ainda revelado o suficiente do que se supõe existir, haveremos de começar por perceber em que medida resiste à facilidade da tendência dominante que procura a fusão estridente e obediente ou um design em acabamento perfeito.

A indistinção entre os produtos da alta cultura popular, apreciadora de híbridos, que de preferência citam, usam, convocam e cruzam elementos de vizinhança improvável (entre o irónico e o histriónico e/ou a coberto de ‘grave tema social’), e o que deriva dum trabalho que compromete por completo a metamorfose do seu autor, advém de se entender a ‘obra’ como acontecimento simbólico primário – i.e., imagem em que as supostas ‘participação criativa’ do público, ‘procura da diferença’, o ‘efeito surpresa’, a provocação e o choque, funcionam por inércia quase ideológica – e raramente, ou nunca, como prova da exigência de auto-superação, implícita em alguém que aceita o desafio deixado pelos que se vão tornando clássicos.

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Nos trabalhos de Nuno Henrique podemos detectar indícios de um potencial que se adivinha coerente com esta exigência maior. O seu rigor metódico, presente já em Quarenta Calcos, trabalho feito sobre a flora da Madeira, em que a escolha dos meios que fixam cada fase se faz acompanhar por uma certa noção de transparência (pela exibição dos passos dados, dos procedimentos e da sintaxe que os susteve), surge com especial ênfase, agora, nesta proposta focada num particular dragoeiro caído em 82.

Sem alegoria nem metáfora, a assunção do prosaico implica aqui entrar num quadro de significação, próximo da narrativa mas depurado de figuração referencial, em que a identidade, a sua e a da comunidade local, é reconstruída. A queda, a perda e a ausência que o velho dragoeiro deixa, são tratadas como negativo a converter em plástica presença positiva.
Das aguarelas ao tríptico em gesso, que registam os lugares do dragoeiro, a falésia do seu suporte e do seu fim, passando pelos calcos, momentos autónomos de uma monumentalização em que se casam desenho e escrita – e onde as cores aludem às do corpo da árvore –, os médiuns que servem a conversão traduzem um dos aspectos mais significativos da própria comunicação: o da partilha activa de uma proposta de identificação, ela mesma necessariamente processual. Por isso, na apresentação e representação de um ponto de vista sobre algo já comum, património da cultura local, sobressai não apenas a óbvia presença da expressão artística mas também o implícito impressionamento que esteve na sua origem – quer em como em cada um se gravou uma presença forte (o dragoeiro evoca uma existência pré-histórica a que é difícil de ficar indiferente), quer na impressão de que resultam os calcos. Assim, em particular nestes, para além da experiência estética propriamente dita, o espectador é convocado a corresponder ao jogo entre expressão plástica e impressão sensível (na sua dimensão comunicativa), não só enquanto modos de fazer mas também enquanto proposta de re-identificação.

A monumentalização, menos evocação de uma (imagem da) memória que da ausência física do dragoeiro, expressa/impressa como negativos de positivos inexistentes — criados com base na função dos calcos na arqueologia, aqui sem que haja original —, representa o ponto de chegada de um processo mas, também, o resíduo do valor investido à partida num ser particular. O círculo que se completa agora, ainda que se possa vir a prolongar, do inicial levantamento da flora a estes calcos, traça, pois, todo o movimento que vai da experiência pessoal directa à sua conversão em peça de arte.

Nesta circularidade, rigorosa e metódica, a experimentação plástica não se aparenta a qualquer atitude lírica e distingue-se do modelo científico de produzir conhecimento; trata-se de uma circularidade aberta, criadora de sentido comum, disposta a celebrar plasticamente o que participa na identidade da Ilha. A proximidade à cultura local, expandida através de uma poiética simples mas não fácil, eficaz sem estridência, ancorada na memória das pioneiras explorações cartográficas – em que se cruzam a história natural e a das civilizações – e na tradição das disciplinas canónicas (neste caso, desenho e escultura), consegue reactivar e actualizar o sentido da dívida crítica, e da dádiva, à cultura popular.

De facto, neste trabalho de Nuno Henrique, não é a subjectividade pessoal que é explorada ou exposta mas a inter-subjectividade, implícita na dimensão comunicativa da cultura. No entanto, aqui, é deslocada e convocada para o interior do próprio processo criativo, mostrando dele a sua faceta, tantas vezes menorizada ou ignorada, de catalizador de valores colectivos comuns, que sabe de si como parte de um todo em mudança mas que, e apesar desta, se recusa a esquecer quer a dependência do seu suporte vital – ou a pertença à paisagem, à terra e aos seus elementos – quer os referenciais culturais que estruturam a tradição clássica.

Manuel Rodrigues
Setembro 2010





Manuel Rodrigues: Biografia (resumo)

Manuel Rodrigues (Lisboa, 1959), Mestrado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, é formador de professores nas áreas de Filosofia e Didáctica da Filosofia. Desde 1993 é regente de Estética, com o curso anual Imagem e Semelhança, no Ar.Co. (Centro de Arte e Comunicação Visual).
Participou na conferência sobre a exposição de João Queiroz que esteve patente na Porta 33, em 2004. Desde 1998 tem vindo a publicar regularmente textos de sua autoria sobre filosofia, cultura, pedagogia e arte contemporânea.