SANTOS & BESTAS
BARBARA ASSIS PACHECO E JOÃO CRUZ ROSA
Exposição comissariada por João Miguel Fernandes Jorge
PORTA33 — 29.05.2004 — 10.07.2004

SANTOS & BESTAS
João Miguel Fernandes Jorge

Os últimos dias de Maio de 2004 vão reunir, na Porta 33 do Funchal, desenho e pintura de Bárbara Assis Pacheco e de João Cruz Rosa. O título da exposição surgiu em 2002, quando propus a Cecília Vieira de Freitas e a Maurício Pestana Reis a junção destes dois nomes. O tema de maneira alguma pretendia vincular os artistas. Só que, na viragem de 2001 para 2003, obsessivamente, Bárbara Assis Pacheco desenhava e pintava animais, como sucedeu na sua exposição De Partibus Animalium (Sala do Veado, Faculdade de Ciências, Lisboa, 2002), e João Cruz Rosa pintava a óleo passagens da hagiografia de santos (Módulo, Lisboa, 2002, Porto, 2003). Desses trabalhos que então mostravam surgiu a intenção de Santos & Bestas. Todavia, a valia destes dois termos acaba por percorrer uma e outra obra. E pelos motivos que mais adiante irei expor, revestem-se de um traço que tocará a excelência mesma do humano, que é a santidade, os animais de Assis Pacheco; enquanto a humana figura tratada por Cruz Rosa, afastando-se já de uma mediata sinalização da virtude, parece invadir o território das paixões, que sempre guardam em si irracionalidades, muitas vezes longe de temperança e sabedoria.

Uma grande atenção à natureza no seu conjunto harmónico, que percebem ambos como um acordo de opostos. De forças visíveis e invisíveis que nos rodeiam e que vão produzindo os seus efeitos de quietude e de inquietude, de ordem e de desordem. Dentro da imagem do homem e em cada animal projectado, quer na sua vida quer na sua morte, há uma linha condutora de terribilidade que ampara as construções de intenção meditada em ambos os artistas. Valoriza-se e acentua-se o percurso de uma ligação a um plano da órbita do divino na obra de João Cruz Rosa, enquanto uma temática de sentido filosófico determina a fuga para uma fisicidade; a qual está bem presente em Bárbara Assis Pacheco, e para sempre tende a extinguir-se em termos de geração, de um modo bem mais rápido do que possamos querer admitir.

Do trabalho de um e de outro eleva-se uma ética, marcada pelo sentido da existência sobre a Terra e nas razões que a vão ligar a uma fonte, a uma origem, a um princípio que é compreensão e justiça e, sempre, possibilidade de produzir, a um só tempo, a (pequena) beleza da vida e também a (pequena — ou deverei dizer a grande? —) beleza da morte. (Não é essa forma de belo o que restou do espírito de «colecção» de insectos, plumagens e ossos, assinalado por Assis Pacheco, a par dos animais vendidos, apreendidos e em extinção?)

Também o homem se aproxima — apesar de lhe pertencer em grande plano a capacidade de aniquilar a sua própria vida, a dos seres que a rodeiam e as condições necessárias ao existir do lugar dessa vida —, do desaparecer e do extinguir-se. Desse processo, e do pensar essa via de destruição, se organizam as figuras em retrato e em auto-retrato de João Rosa. E em ambos uma sensibilidade progride através da descrição de um quadro de qualidades que pertencem à narratividade de uma criação que não é exactamente do homem, sim, antes, de uma natureza da qual o homem participa, em igual, com a totalidade dos outros seres existentes.

Interessa sublinhar como se aproximam estes dois distintos tratamentos da arte e da condução do seu processo. Há em ambos um descer sob um culto secreto do plano da natureza. A presença de um «culto secreto» guarda o sentido de uma raiz comum. No âmbito da sua procura vai muito do trabalho de um jardineiro. Que é um modo tranquilo, sem pressas, de se acomodarem as coisas cruéis da vida à efectividade da sua própria intriga — onde se destrói, se pilha, se cobre a expressão do vivido com a rasura do saque e do sofrimento. Já segundo o jardineiro, cultiva-se a narração do que sucede na natureza com as plantas e as estações do ano. Até ao instante em que se extinguem, não sob o modo de uma condição natural, mas pelo motivo de uma quebra, em morte, da sua cadeia geracional.

Também eles pedem, tal como o jardineiro e as suas plantas, que a natureza seja amável com os seus relatos, para que estes, no traço do desenho ou da pintura transportem um eco amado. Mas a tendência que persegue o risco das suas obras (na sua radical distinção) é irresistível no mostrar o seu lado mais inquietante, a sua obscura qualidade de poço. No descer entre as suas paredes estão guardados os medos profundos do homem. O inferno que percorre a candura de um rosto e que no final se limita a desenhar-lhe finíssimos traços na face (como ocorre na cadeia de pinturas sobre madeira de Rosa) e o inferno que a condição humana guarda para a mansa e grandiosa figura dos elefantes (desenhados por Pacheco) são o elogio, em morte, de um ambiente espectral. A benignidade do elefante e a pacificação em dor de um rosto de homem escondem sempre duplicidade, trazem consigo um mais além, um não visível, mas profundamente inscrito no outro lado e no íntimo da face mostrada.

Santos & Bestas são relatos de corpos espectrais: corpos de rosto, inteiramente contidos na plenitude da volumetria de uma face, que progride dentro de si, no que é em simultâneo inferno e paraíso de si mesmo; tal como a ideia de colecção percorre os caminhos finitos, mas sempre dispostos a acolherem um novo exemplar de insecto, de um felino em cativeiro, de uma pena de ave.

Santos & Bestas são coisas espectrais, como se se tratasse de imagens fantásticas, bem distantes de uma presença real. Como se aquilo que nos é dado nos seus traços e colorações não passasse do resultado da decomposição de uma qualquer radiação composta de um fenómeno natural — um homem ou um animal; a sombra de um homem ou de um animal —, nas suas ondas energéticas mais simples.

(Ao ver estes tão distintos — insisto — trabalhos, suponho sempre que não estou longe de ver a imagem com as cores do arco-íris. O resultado da decomposição de um feixe de luz solar. Como não hesito em reconhecer em muitos destes desenhos e pinturas a presença de um espectro magnético, pois entendo que também eles se sujeitaram à experiência da limalha de ferro. Que todas as suas matérias antes de se determinarem através de uma ideia e de uma imagem de corrupção, à semelhança da limalha de ferro, foram lançadas num cartão sobreposto aos pólos de um íman. É desta noção espectral que a uns e outros advém o poderem mostrar-se com o esplendor de uma casa vazia e como corpo ou rosto de casa «encantada» que segue em progresso no espelho da sua aniquilação.)

Curiosa e progressiva criação que reside entre as formas de uma natureza. Guarda desde a sua génese uma complexidade crescente de extractos: divino (ou fundador), humano, animal, vegetal, geológico. Eis estes desenhos e estas pinturas de Bárbara Assis Pacheco e de João Cruz Rosa. Se neles atendermos bem, reconhecemos-lhes uma natureza comum, guiada pelo cumprimento de uma compaixão (pelo que julgamos ainda existir e já não está no campo imperfeito do visível), exigida desde o mais além da vida.

Um corpo insepulto, atirado para um mostruário. Para o desenho do seu desenho. Para o rosto do seu rosto. Para o gesto do seu gesto. Uma espécie de tábua de salvação. Trata-se de um relato e de uma conseguida mistura de tempos real e mental; da transferência da vida de um espírito humano para uma terra idealizada que talvez tenha mesmo existido, mas que não passa de um enfrentamento entre duas forças convertidas numa fecundação conduzida pelos sentidos de uma infância. Por isso, os atributos e os nomes se transferem de uns para outros num espaço de circulação sem pausa.

Assistimos a um «estar à escuta», a uma obsessão contada desde dentro. E como são pacíficas estas bestas. E como são terríficos estes santos. Guardam o relato de cores e de luzes que se ocupam da sua própria paisagem. Conseguem, cores e luzes, que se estabeleça um pacto, uma síntese agudíssima da imagem que nos diz: a arte não tem que conhecer o mundo, nem como realmente foi nem como exactamente é.

Creio que neste encontro de Bárbara Assis Pacheco e de João Cruz Rosa os elementos do desenho e da pintura apropriam-se de processos temporais que parecem perguntar, mais do que celebrar a matéria que trabalham. Em ambos nasce uma vinculação ética que deriva de um olhar para o mais íntimo, onde cada coisa ocupa o seu lugar e se cobre com o manto do seu nome. E com alguma ironia Assis Pacheco diz: «Como é possível que o homem não saiba ser um animal?» E como resposta ouve-se, de Cruz Rosa: «Como é possível que o homem não saiba ser um homem?»



Os animais. Vivemos rodeados deles. Constituem fonte de alimentação. Dão-nos, por vezes, uma lealdade difícil de encontrar, companhia e consolo. São os animais. Forma duvidosa de os classificarmos. Por oposição ao animal que para todos eles é o mais cruel e predador: o homo sapiens. Como se nos excluíssemos do reino animal com esta designação. E com eles é bem sabido quanto partilhamos mecanismos de natureza biológica; só no que respeita aos mamíferos, somos parentes muito chegados. Unidos pelo passado, tivemos ancestrais comuns. Diversas condições ambientais criaram ramos diferentes do que teve origem num mesmo tronco, onde os animais invisíveis e o que viria a ser nós mesmos se degladiavam já.

Ninguém ignora os elos que nos ligam. O que não impede que sejamos pela nossa parte cada vez mais as Bestas e eles os Santos. A maioria da humanidade despreza-os, maltrata-os, mata-os ora por prazer ora por necessidade. Pertencemos ao clã dos hominídeos. Abrimos caminho competindo com brutalidade na luta pela sobrevivência, o que nos dá a capacidade de compreender algumas das razões biológicas e evolutivas. Mas teremos mudado assim tanto nos últimos cem mil anos?

Pertencemos aos animais humanos, o que quer dizer que somos uma espécie que também «soube» ser racional e, por isso, também é humanitária. O que não quer dizer que todos tenhamos afecto e compreensão pela vida. Mas a racionalidade também soube produzir um movimento que pretende a defesa do que vive e deixa viver — pensando agora nos animais visíveis. A este corpo de pensamento pertence Bárbara Assis Pacheco. Dele nasce um conjunto de fórmulas válidas que vão impregnar o sentido do seu trabalho. Quer partilhar a Terra com os animais aos quais ama, como os transporta para a sua arte. E uma parte do seu desenho e da sua pintura guarda um «texto» que nos mostra os sofrimentos. Sofrimento que é tanto mais cruel quanto muitos deles (chimpazés, orangotangos, porcos, cães, gatos, golfinhos, baleias, elefantes, aves...) experimentam, tal como qualquer de nós, sensações como a dor, a alegria, o desamparo.

Mais do que uma posição moral, o seu trabalho em arte introduz uma dimensão ética, que tem a sua fonte num «ser» ontológico. Não se trata aqui, nestes seus desenhos, de um fundamentado estético. O belo persiste, é certo. Mas haverá razoabilidade do belo em grau mais intenso do que no sofrimento? Não se trata de uma brandura de imagem, que percorre a «colecção»: ossos, libelinhas, borboletas, elefantes, papagaios, penas, dentes de elefante. O que temos presente é antes: os animais doentes, os corpos doentes, os animais vendidos, apreendidos, os que estão em extinção, o uso (muitas vezes por excesso) laboratorial, a aprendizagem por confirmação, por erro, o nada a declarar alfandegário... Um universo cruel de promessas e contratos, quase sempre de clandestinidade e corrupção, por onde decorre a vida contemporânea.

Epicuro, que usava as palavras mais comuns para se referir às coisas (Bárbara Assis Pacheco no seu aproximar às questões filosóficas tem-lhe uma estima particular), e que em termos de arte terá passado à história pelo seu grito «cuspo no belo» — a frase parece ter sido: «cuspo no belo e naqueles que o admiram de uma forma vã, isto é, quando não produz prazer algum» (C.J. Classen, Poetry and Rhetoric in Lucretius, 1968) —, denunciou como vãos o temor, o amor, a compaixão e a cólera. Lucrécio, que foi um continuador de Epicuro, no seu poema épico De Rerum Natura chamou a atenção, a partir da presença do desejo na escrita poética e também nas outras artes, para a reflexão do carácter desse mesmo desejo que preenche a natureza em toda a sua totalidade.

Lucrécio invoca Vénus, como princípio que explica a fertilidade animal, como «razão» do desejo sexual no mundo da natureza animada. Os quatro termos denunciados por Epicuro acabaram por ter uma carreira imparável no ocidente cristão. Talvez por isso a noção e a efectiva presença da natureza, na totalidade dos seus seres, foi perdendo sentido em favor de uma ordem e perspectiva social. Vénus estava destinada a desaparecer e a ser substituída por percepções sensoriais cuja única mensagem se traduz em ansiedade e temor. Este parece-me ser um dos ângulos mais visíveis do trabalho de Bárbara Assis Pacheco. Ela sabe, com Lucrécio, que a natureza «está sempre a ladrar-nos». As suas bestas vêm até nós para dizer que fazemos parte de uma ordem natural mais ampla, que contempla libelinhas e ossos, dentes de elefante e penas de ave. Só deste modo, e seguindo a lição epicúria, o corpo (o nosso corpo e o corpo da natureza) se encontrará livre para usufruir o prazer do mundo, isto é, a harmonia dos seres vivos em todo o seu conjunto.



A Terra é agradável e cheia de cor. As águas e os céus estão calmos. Os ventos, suaves e benignos. O homem, entre todos os animais, está cheio de intensa energia vital. De certo modo, continuamos nas páginas do poema de Lucrécio. E a deusa «desliza» suavemente para o âmago da Divina Comédia de Dante, sobre a qual trabalhou João Cruz Rosa neste conjunto de desenhos e pinturas.

À passagem do século XIII para XIV, que foi o tempo exacto da Comédia, não caberá por inteiro a crueldade institucionalizada que encontramos como referência maior nos desenhos de Assis Pacheco. Mas se cruzarmos a obra de Dante Alighieri com a sua vida e o seu tempo florentino e italiano, marcado por uma não menos cruel história política (que o conduziu a uma vida inteira de exílio), podemos dizer que desenhos e pintura de Cruz Rosa, ao aproximarem-se dos livros da Divina Comédia, estão a desenhar e a pintar passagens de um tratado da natureza. De uma natureza humana, que segue uma eficácia (afirmo, desde já, tratar-se de uma eficácia «em sombra»). Por este «lado», que a eficácia caracterizaria, cumpre ligar o trabalho reunido dos dois artistas a secções do Tratado da Natureza Humana de David Hume. Pois em ambos se vê uma economia de meios que, ao simplificar opções teológicas e metafísicas, conduz a um comportamento natural e a uma história (natural) do ser humano. Como se desenhos e pinturas, e a exposição no seu todo, se organizassem em torno da razão, orgulho e humildade, amor e ódio que sustentam a vida humana e animal.
Também nos nove óleos sobre madeira que registam o percurso de um rosto e nos dois óleos sobre tela se move o desejo. Desejo que tem consigo a força de um coração carregado de golpe. Por isso, à semelhança da memória e do registo que perpassam os animais (e os seus restos, abandonados a um vil comércio,) de Bárbara Assis Pacheco, estes rostos, estes personagens, esta acção que desenvolve um drama sacro, ora agitado e terrível, no Inferno, ora sereno e jubiloso, no Paraíso, valem, a um tempo, um poder de representação que se quer de prazer e de angústia, de compulsão e de dor.



Virgílio (para quem, nas Geórgicas a descrição do desejo e da natureza animal são centrais) surge directamente numa das duas telas de Cruz Rosa. Quando Dante hesita entrar na «porta infernal» é Virgílio (aquele que imaginou a descida de Eneias ao inferno) quem lhe dá a mão e o conduz. Pois a pedra que encima a porta tem uma inscrição só por si temerosa: Por mim entra-se na cidade dolente,/Por mim entra-se na dor infinita,/ Por mim entra-se na estância da/ gente perdida.// A divina justiça punitiva moveu deus/ a criar-me; fui edificada pela divina/ Potestade, a mais alta sabedoria/ E o primeiro amor.// Antes de mim não foram criadas/ Senão coisas eternas, e eu eterna-/ Mente duro, deixai toda a/ Esperança, ó vós que entrais! (Tradução de Marques Braga, ed. Sá da Costa, 1955.) Algumas destas palavras passaram para a segunda tela, num registo que pretende actuar como um rasto da memória.

Na pintura, Dante e Virgílio estão vestidos com cores fortes (uma manga vermelho, as calças azuis-negro e cinza. Vê-se o canelado do tecido. Mais do que presenças contemporâneas, Virgílio e Dante surgem como personagens sem tempo, tal como sucede com o percurso do rosto nos nove óleos sobre madeira. Cabe a Beatriz, imagem de uma figura humana criada para a eternidade, incitar Dante, protegendo-o, no percurso do inferno, do purgatório e do paraíso. Um pouco como a Vénus de Lucrécio, temos presente, em Beatriz, uma «deusa» de afectuosidade, um símbolo da teologia. É ela que vai dar um carácter grato à aprendizagem, mesmo do ciclo infernal, no qual se vive à maneira das bestas. Também nesse «inferno» se encontra uma espécie de primeiros seres humanos, duros e resistentes, sem amor e sem capacidade para pensar no bem comum. (Aí estão os que traficam os humanos e os animais, os que destroem e corrompem o plano da natureza.)

O espaço branco — o que está pintado a branco — fundo por onde deslizam as sombras, uma forma reflexiva. (Que envia para uma abstracção nos desenhos que querem «mostrar umas caixas que se compram com papagaios dentro e que estão fora de toda e qualquer lei mercantil», nos desenhos de Bárbara Assis Pacheco; e que em João Cruz Rosa «serve» para sublinhar não só o modo de evolução das figuras, como a plenitude de um valor histórico que guarda as capacidades da virtude natural e de um studium através do qual se descobre o sentido mais elevado do mundo e das coisas.)

Espaço branco por onde evolucionam as mãos. Nos desenhos a tinta-da-China as mãos introduzem uma abstracção de formas, de riscos que se elevam e se separam da figuração de dedos. Estão no Purgatório e vagamente recebem a percepção da ideia abstracta do círculo de fogo e também do esplendor lunar. Como limite a este trabalho sobre os santos que se confrontam com as bestas, teremos sempre como referência os desenhos de Botticelli, de Blake ou Tom Phillips entre os muitos que «ilustraram» passagens dos livros da Commedia, seguindo visões radicalmente distintas, tal como ocorre no trabalho que nos é mostrado agora.

«Cérbero», a passagem entre um bosque escuro e a luz, o cais do rio sem figuração humana, o ambiente escuro da passagem do barco com almas, o contrabando das «forças santas» que Simão, o Mago, e a prostituta Helena fazem, respondem a formas pelas quais se dá a distinção entre os santos e as bestas. Afinal, uns e outros nunca andarão longe nem radicalmente separados e, como todos nós, precisam da «comédia» mais do que humana da protecção: avassalados pelas feras, das ataduras da religião, dos tormentos da família, do tiro certeiro e do horror da guerra, da corrupção social, da luxúria, mesmo, e também do próprio amor. More ferarum, à maneira das bestas, diz Lucrécio; à maneira dos santos, dizem-nos os dois artistas, morrem todos, santos & bestas. E Beatriz, como se fora Vénus, levou o seu amante idealizado pelo invisível trilho no meio da selva. Compensou-o com o prazer da sua sombra. Ter-lhe-á dado bolotas e medronhos e escolhidas peras, elas que são o sinal geométrico do infindo.



Afinal de que falam, o que desenham e pintam Bárbara Assis Pacheco e João Cruz Rosa? Da condição humana. Só disso e em tão diverso trabalho.

E o que será essa «condição»? Somente, creio, uma tomada de consciência da nossa situação específica no cosmos. E a arte nunca se libertou desse modo de ser e de estar, pois não é mais do que um facto relativo (mas que sempre se tem revelado bastante perfeito e também eficiente) que interpreta uma espécie de voo, isto é, uma experiência estática real, uma criação onírica. Vejam-se essas caixas-vitrines onde se esgotam numa cápsula preste a levantar voo, perdidos e encontrados objectos de Assis Pacheco; vejam-se os seus lendários elefantes, que alcançam uma intensidade fantasmagórica, uma pura verticalidade de azul (ou será verde?), sem que dêem lugar a uma ruptura no espaço. Veja-se o ritus de dor que percorre o rosto de um jovem herói, ao longo de nove imagens, de Cruz Rosa — que outro modo terei para adjectivar uma descida aos infernos e mesmo que o papado nos venha agora dizer que o inferno não existe, não é o inferno o nosso lado direito e também o esquerdo, não é o inferno o nosso olhar quando se reflecte no olhar do outro?

Que nos trazem um e outro ao Quebra-Costas do Funchal? A dimensão do imaginário como valor de uma grandeza vital importante para o ser humano na sua totalidade.

Bárbara Assis Pacheco nasceu em Lisboa em 1973.
Vive e trabalha em Lisboa.

Formação:

1991-1997 Licenciatura em Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa (FAULT).
1997-2001 Curso de Desenho e Avançado de Artes Plásticas do Ar.Co., Lisboa
2000-2004 Frequenta o curso de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa (FCSHUNL)

Exposições Individuais:
2004 Santos & Bestas, (com João Cruz Rosa), Porta 33, Funchal
2002 De partibus animalis, Sala do Veado, Lisboa.

Exposições Colectivas:
2003 1º Prémio Rothchild de Pintura, Lisboa
2003 Prémio Celpa / Vieira da Silva Artes Plásticas – Revelação, Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva, Lisboa
2002 Bolseiros e Finalistas do Ar.Co., Centro Cultural de Belém, Lisboa
2002 Prémio Celpa / Vieira da Silva Artes Plásticas – Revelação, Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva, Lisboa
2000 Atelier da Rua Damasceno Monteiro, Lisboa
2000 Exposição de Verão do Ar.Co., Quinta de S. Miguel, Almada
1999 Exposição de Verão do Ar.Co., Quinta de S. Miguel, Almada
1998 Prémios Villa de Madrid y Certamen para Jóvenes Creadores de Iberoamérica, Madrid, Capital Iberoamericana de la Cultura 1998
1997 Obras sobre papel, Sociedade Nacional de Belas-Artes, Lisboa

Prémios
2003 1º Prémio ex-acquo no 1º Prémio de Pintura
1998 1º Prémio no Certamen para Jóvenes Creadores de Iberoamérica, Madrid, Capital Iberoamericana de la Cultura
1998 como Jovem Criadora

Colecções Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian
Banque Privée de Rothchild Europe, Lisboa
Colecções particulares

João Cruz Rosa nasceu em Santarém em 1955

Formação:
1982 licenciado em A. P. / Pintura, Escola de Belas-Artes de Lisboa

Exposições Individuais:
2004 Santos & Bestas, (com Bárbara Assis Pacheco), Porta 33, Funchal
2003 Pastéis/Revisões, Módulo, Porto
2002 Uma Visão, Módulo, Lisboa
2001 Em Rebanho, Casa da Cultura Jaime Lobo e Silva, Ericeira
1999 Propósito, Centro de Arte / Ateliers Municipais de Arte, Caldas da Rainha
1997 Precisões, Galeria Gilde, Guimarães
1996 Novas Pinturas, Galeria Terreiro das Gralhas, Caldas da Rainha
1995 Partir / Ficar, Galeria Terreiro das Gralhas, Caldas da Rainha
1994 (ensaios de imagem), Galeria Quadrum, Lisboa
1993 Designios, Galeria Gilde, Lisboa
Ilhéu, Galeria Gilde, Guimarães
1991 Exposição na Galeria Gilde, Guimarães
Pinturas, Exhibit / Capricorn Art, Berlim
1990 Paralelos, Galeria Quadrum, Lisboa
1989 Meridionais, Galeria Quadrum, Lisboa
1988 Desenhos, Sociedade Nacional de Belas-Artes, Lisboa

Exposições Colectivas:
Desde 1978 tem vindo a participar em várias exposições colectivas, sendo as últimas:
2003 Arte Lisboa, F.I.L., Lisboa
2002 Arte Lisboa, F.I.L., Lisboa
A Arte Contemporânea nas Caldas, Centro de Artes / Museu António Duarte
2001 Confessions / Confissões, Baerum Kunstforening (Sandvika), Noruega
Expo Solidariedade, Museu Municipal, Bombarral
2000 Caldas da Rainharte Contemporânea, Museu Malhôa, Caldas da Rainha
FAC 2000, Lisboa
MARCA 2000, Funchal
Artistas por Timor, Armazém 7, Santos, Lisboa

Colecções Sociedade Central de Cervejas
Ministério da Educação
National Kunsan University, República da Coreia
The Chase Manhattan Bank
Banque Europeenne d´Investissement, Luxemburgo
Mercedes Benz, Portugal
Centro Hospitalar de Caldas da Rainha