A Porta quando se abre é para todos

Escola do Porto Santo - da geografia do desejo à fome de mundo(s)

Entrevista a Paulo Pires do Vale Comissário do Plano Nacional das Artes por Susana de Figueiredo

 

Sem amor, afinco, determinação e a dose certa de arrojo e coragem, poucas coisas se conseguem na (da) vida. E quando falamos de cultura, educação e arte, esta premissa ganha uma força e um sentido ainda maiores. O amor é intrínseco a todo o ato de entrega, é caso sério, mas também ninguém disse que amar era fácil. Maurício Reis e Cecília Freitas que o digam. Há trinta anos abriram a porta à arte e aos artistas, mas, na verdade, fizeram bem mais do que isso. Criaram uma casa como quem traz ao mundo o filho mais desejado, não antevendo, porém, que uma porta, aquela porta, abriria à Madeira tanto mundo. E que seria passagem, mas também lugar, fio da vida, partida e chegada.
Desde junho último, há na Porta 33 um novo lugar com o mar pelo meio. Um novo e desejado filho por criar. Falamos da antiga escola da Vila, na ilha do Porto Santo, uma edificação datada dos anos 50 do séc. XX, assinada pelo arquiteto Chorão Ramalho. Com a mesma mão firme do princípio, preparam-se agora para redesenhar este espaço, transformando-o numa morada para a criação de arte e pensamento. Trinta anos depois, querem abrir outras portas num território onde, impiedosamente, tantas portas se fecham. Acreditam que haverá beleza, e sentido, no projeto que, ali, querem desenvolver, com o apoio do Plano Nacional das Artes (PNA), e em conjunto com toda a comunidade local. Paulo Pires do Vale, comissário do PNA, uma estrutura de missão impulsionada pelo Ministério da Cultura e o Ministério da Educação, que tem como principal desígnio aproximar as artes dos cidadãos, deposita confiança máxima na mão da Porta 33, instituição à qual reconhece um mérito atestado por três décadas de provas dadas. 
"Tenho um respeito imenso pelo Maurício e pela Cecília, por terem realizado um trabalho com um elevado grau de qualidade, muitas vezes com muito sacrifício. Ter a consciência de que o que quer que a Porta 33 venha a fazer terá uma qualidade extraordinária, tal como tem vindo a acontecer ao longo dos anos, levou-me a querer fazer uma parceria para podermos desenvolver um projeto inovador e necessário para o Porto Santo.” Da pedra e cal, e do cerzir de memórias que são lastro de vida, ali, vivida, nasce um projeto-corpo inteiro que só existe na (da) inteireza de narrativas antecessoras. Devolver a antiga escola à comunidade, respeitando a memória de um lugar que, sendo o mesmo, já não pode ser o que foi, mas pode, sim, reinventar-se a partir do levantamento de novas pedras e da abertura a novos contextos e experiências artístico-culturais, educativas e de reflexão sobre o nosso modo de estar e ser no mundo. Um projeto erguido por todos e para todos, e no qual nenhum desejo de criação, qualquer que seja, se sinta esmagado pelas contingências inerentes a uma geografia insular ultraperiférica. O objetivo é ambicioso? Paulo Pires do Vale admite que sim, mas apressa-se a esclarecer que não poderia ser diferente. "Quando pensamos em qualquer coisa que tem que ver com cultura, se não formos ambiciosos e rigorosos, estamos a prestar um mau serviço. Temos de pensar de modo estrutural, não só em relação às atividades, mas também à mentalidade. Não há outra forma de fazê-lo.", sublinha, deixando claro que, até ao momento, as iniciativas promovidas no âmbito do PNA, em várias regiões do país, têm contado com um enorme envolvimento dos cidadãos e instituições. "As pessoas sentem que isto é uma ajuda, um instrumento para o seu próprio desenvolvimento, porque se sentem, efetivamente, parte de um projeto nacional com ecos e interesse internacionais, e fazer parte de um projeto como este é uma dignificação para os territórios. No caso do Porto Santo, há, de forma muito clara, um olhar e uma atenção a um território que, tantas vezes, se sentiu marginalizado, abandonado. A antiga escola da vila do Porto Santo, do ponto de vista arquitetónico, é um exemplo para todo o país, para pensarmos naquilo que é a arquitetura de uma escola. Ali, irão ser recebidos grandes artistas, e devo dizer que, mal começámos, e já nos chegaram propostas de vários lados para residências no Porto Santo. É uma oportunidade imensa, que a própria comunidade está a agarrar, percebendo que é também para eles que isto é feito. Na verdade, este PNA só existe, também, pela vontade e capacidade de cada um o adaptar. Todos nós, cada um à sua medida, somos responsáveis por um ambiente cultural, e isso implica que cada um se responsabilize pelo seu quilómetro quadrado."

Cultura e arte para todos, em todos os lugares

O PNA nasce a partir de "um desejo comum dos Ministérios da Cultura e da Educação de tornar mais acessível a cultura aos cidadãos", permitindo-lhes "um acesso mais franco, mais fácil e continuado às experiências e produção artísticas.", nota o comissário do PNA, lembrando que a nossa Constituição garante o acesso à cultura e à educação. É importante esta consciência de que o PNA deve permitir a democratização do acesso, mas também uma democracia cultural, criando condições para que cada um, em cada território, tenha a sua voz e o seu papel, responsabilizando-se por esta dimensão cultural."
A estrutura de missão foi pensada para os próximos dez anos, tendo sido criado um plano estratégico para os primeiros cinco, que foi apresentado em junho último. Assente em três eixos prioritários, este plano visa implementar no território, junto de vários agentes, "um conjunto de propostas que, no fundo, dignificam e valorizam a cultura e a sua importância na vida dos cidadãos." O primeiro grande eixo é o da política cultural, o qual consiste em propor condições estruturantes para que o trabalho desenvolvido possa ter continuidade. "Em vez de estarmos a promover um conjunto de atividades esporádicas e microeventos, que não vão conseguir chegar a todo o território, propomos uma série de medidas que passam pelo desenvolvimento de planos municipais para a cultura e educação." Paulo Pires do Vale explica que, num primeiro momento, o PNA ajuda os municípios no desempenho dessa tarefa, designadamente através da criação de um conjunto de linhas orientadoras para o modelo do plano estratégico, definidas em colaboração com um centro de investigação da Universidade do Minho. Num segundo momento, promove uma ação de formação para funcionários camarários, num terceiro momento, que implica a responsabilização da própria autarquia, propõe o diagnóstico do território e, por fim, leva a efeito uma ação de tutoria na redação do plano estratégico. O propósito é envolver o número máximo de agentes locais nesta missão, incluindo diretores culturais, sendo que o PNA se compromete a prestar consultoria ao longo de todo o processo, ressalvando que nunca se substituirá ao trabalho, "absolutamente fundamental", desenvolvido pelas pessoas no território.

Territorializar: um novo lugar no mundo a partir de lugares de sempre

Porto Santo: “tornar uma periferia da periferia num novo centro de reflexão”

"Uma das linhas estratégicas que propomos é o territorializar. Temos um conjunto de propostas que não são um modelo único para seguir à letra, não são uma panaceia para todos, têm de ser articuladas de modo diferente em cada lugar, o que permite uma adaptação às condições de cada território. Ou seja, o objetivo é implicar, em cada lugar, os agentes na construção do melhor modelo para a aplicação do PNA em cada contexto." Neste eixo da política cultural, destaca-se outra importante medida, uma linha de financiamento para projetos de arte-educação e arte-comunidade, que deverá ser ativada em breve, não sendo, para já, possível avançar os valores em causa. Paulo Pires do Vale foca-se, contudo, na dimensão que considera ser a mais importante: "a relação de trabalho muito íntimo do processo criativo, e não apenas o objeto artístico final. Isto, julgo eu, será uma forma de tornar a arte, as artes, mais próximas dos cidadãos, tornando-os também responsáveis pela sua criação. É fundamental esta ideia de uma participação ativa, de que, mesmo enquanto espetadores, temos de ser ativos. A ativação dos cidadãos, que esperamos que dê frutos na sua participação cívica e política, é uma ativação que nos parece necessária pelo país fora." Esta consideração conduz-nos ao segundo eixo do plano estratégico definido para os próximos cinco anos, o eixo da capacitação, e é aqui que entra a Porta 33 e o 'redesenhar a Escola do Porto Santo'. "Dentro deste eixo, a nossa primeira medida é precisamente o projeto para a Escola do Porto Santo, em parceria com a Porta 33, a Câmara Municipal do Porto Santo e o Governo Regional da Madeira. O que pretendemos é criar uma sede de pensamento no Porto Santo, tornar uma periferia da periferia num novo centro de reflexão, que, depois, possa expandir aquilo que ali acontecer para todo o país e até a nível internacional. A escola do Chorão Ramalho é uma escola sobre a qual vale a pena refletir. O que nos interessa é criar aí residências artísticas e de pensamento, interessa-nos que os artistas e pensadores que por lá passarem tenham naquela comunidade um laboratório experimental destas reflexões, um espaço para dialogar com aquele território, sabendo que podem ganhar muito com essa relação, a relação com o lugar e os seus habitantes, e encontrar ali parceiros."
A ambição não fica por aqui. Na terra, o sonho vai alto e tem tudo para se tornar matéria firme. A ideia da ilha enquanto sinónimo de confinamento perde terreno para um horizonte de expansão, que reconduz o lugar para lá de si mesmo, sem dar azo a que se perca o corpo do enraizamento e da memória; pelo contrário, é neste movimento de amplitude e descolagem que o sentido e o sentimento de pertença escalam uma maior verticalidade e se tornam eminente permanência. Paulo Pires do Vale acredita no sentido pleno desta experiência de intimidade com as artes e a cultura, mas insiste sempre que crer não basta, é preciso fazer crer. "Temos de partir do princípio de que aquilo que defendemos e propomos tem um sentido. Por que motivo queremos que as artes e a cultura estejam mais próximas dos cidadãos? Nós, tantas, vezes, tomamos este princípio como uma evidência, mas julgo que temos de dá-lo a compreender, explicitá-lo. É também isso que queremos fazer através do PNA." Mas há mais. A Escola do Porto Santo poderá vir a ser um think tank internacional erigido a várias mãos, nomeadamente, "pessoas que estejam a trabalhar sobre cultura e educação, em vários países, e possam encontrar-se ali para pensar sobre políticas públicas para a cultura e educação, emergindo desses encontros propostas concretas e pensamento, que possam ajudar na implementação de boas políticas culturais e educativas." Ainda dentro deste eixo de capacitação, destaca-se uma outra medida: a criação de uma linha editorial, em parceria com a Imprensa Nacional - Casa da Moeda, para a publicação de livros que promovam o conhecimento nas áreas acima mencionadas, estando a edição dos três primeiros prevista para o próximo ano. 

‘Indisciplinar a Escola’, uma mudança de paradigma

O terceiro e último eixo prende-se com a educação e acesso, sendo neste que se enquadra mais uma das medidas fulcrais do PNA, a Academia Plano Nacional das Artes, uma proposta formativa para professores, mediadores e outros educadores, que inclui cursos vários sobre a relação entre as práticas artísticas e os processos pedagógicos, a serem ministrados nos centros de formação de todo o país. Estes cursos pretendem promover um olhar sobre as artes, a cultura e o património, que contemple a integração plena destas disciplinas no currículo escolar, e não como aprendizagens extracurriculares. Isto porque, explica Paulo Pires do Vale, "a cultura não é disciplinar, é transversal a todo o currículo. Esta foi uma linha estratégica fundamental que assumimos." É sob a égide deste olhar que surge o programa 'Indisciplinar a Escola', iniciativa que propõe uma mudança de paradigma, no sentido de "(re)pensar a escola além da disciplina", unificando diferentes saberes. "Temos de perceber esta transdisciplinaridade. A cultura, a arte, o património são matérias de todas as disciplinas. Na verdade, a vida e o mundo não são disciplinados, resultam de um cruzamento de disciplinas."
Quebrar os muros entre a escola e a comunidade é outro dos grandes objetivos desta estrutura de missão comissariada por Paulo Pires do Vale, sendo que deixar cair esses muros significa pôr fim à ideia de que a escola "é só um lugar da educação". Não é. "A escola é um polo cultural, tem de ser um polo cultural. E o projeto cultural não é apenas para os alunos, é para toda a comunidade educativa. Queremos muito que, quer os alunos quer os professores, tenham acesso a muitas experiências culturais, e que isso os ajude a formar e a desenvolver, a compreenderem-se enquanto comunidade que querem vir a ser."
Mais recente é a parceria estratégica estabelecida com a RTP, cujos moldes estão ainda a ser definidos, mas que tem por objetivo a ampla e eficaz divulgação das boas práticas do PNA, ou "uma espécie de contaminação pelo desejo."