Raquel Feliciano
PORTA33 — 26.05.2012 —29.09.2012
Sba*
RAQUEL FELICIANO
*em alfabeto hieroglífico egípcio: a porta / a estrela
"A escuridão pareceu-lhe ofuscante; a antiga palavra do marceneiro volta a ganhar
corpo: sba a
estrela, sba
a porta… A estrela, será um buraco no céu? Uma porta através da qual passa a luz? (…)
— Se eu disser 'o céu', imagino o céu que vi; se escrever o seu símbolo, não imagino de todo o
céu
que
vi.
Se disser 'as estrelas', imagino os pontos brilhantes que vi; se desenhar estrelas de cinco
braços,
— já não são os pontos brilhantes que vi.
Então, se os nossos mestres figuraram estas coisas através dos signos, que não são as suas
imagens,
é porque
quiseram dizer outras coisas que não são para olhar com os olhos, mas interiormente com o
coração?"
Isha Schwaller de Lubicz in Her-Bak "Pois Chiche", Flammarion,
Paris
Dezasseis fotografias a preto e branco e cinco esculturas geométricas, minimalistas.
No total, a evocação de um confronto subtil mas ancestral: de um lado, a atracção
magnético-mineral de
pendor erótico pelas trevas, a noite, a terra — em que a ilusão de um segredo escondido no
interior da
terra faz pensar que pelo caminho do corpo se poderia ascender à alma e por fim ao espírito (ou
que pela
imagem se podia aceder à verdade); do outro lado e sem poderem conciliar-se: o anseio pela luz,
princípio solar de claridade ofuscante — associada ao conhecimento, ao eidos, ao domínio do
espírito,
que "desce" para se confrontar à matéria pelo intermédio da alma. A alegoria da caverna de
Platão ou o
périplo de Dante na Divina Comédia são relatos da passagem entre estados, da escuridão para a
luz. Em
ambas, o caminho é o do esforço dialéctico ascensional tendo por base a recusa das aparências e
da
cupidez. Para um artista, equivaleria a resistir à tentação de querer fixar ou concretizar uma
visão
interior numa forma exterior fixa, estimuladora dos sentidos (para não falar em seduzir os
espectadores
ou obter ganhos materiais com ela). Na base de várias iniciações, a queda de Psyche na matéria
representava o estado primário da humanidade. O neófito era levado a confrontar-se com a sua
natureza
terrena e a escolher: vencê-la e "morrer" para o mundo profano e renascer Outro, ou inebriar-se
dela e
perecer do espírito. O artista é como um neófito, confrontado com as tentações inebriantes dos
sentidos
ou falsos labirintos das impressões, tanto quanto aos falsos labirintos virtuais do intelecto. É
no
entanto no confronto com essa sua condição que pode haver libertação. Sba, porta e estrela…
entre os
dois homónimos na língua misteriosa hieroglífica do Egipto antigo, um tecido subtil entrelaça-se
através
de um fio — o da abertura e passagem ou salto possível para outra dimensão, outra fractalidade.
Passagem
não isenta de armadilhas e dificuldades — jogos de espelhos, véus, miragens e tentações.
Raquel Feliciano, PORTA33, Maio de 2012