Concepção: Ana Mira
PORTA33 — Fevereiro 2020 — Fevereiro 2023
Ana Mira
Porta33 - 01.02.2020
COALESCER, no espaço do corpo em pensamento é um seminário contínuo de desenho, dança e filosofia,
sob o crivo
particular do corpo, que reúne um conjunto de artistas, filósofos, investigadores e professores. O projecto
decorrerá bimensalmente, entre 2020-2021, nas salas da Porta 33, para um público abrangente de faixa etária
compreendida entre os 3 e os 70 anos de idade, com e sem experiência, também nos projectos anteriores da
Porta33. COALESCER é um lugar para a experimentação do corpo e sua reflexão filosófica, através de práticas
incorporadas de movimento, desenho, leitura, escrita e diálogo desenvolvidas num ambiente participativo e
colaborativo.
“So that the audience does not know whether I have stop dancing” foi o título que Trisha Brown deu à sua peça
no Walker Art Center em 2008, onde fez a performance de um desenho. Para esta coreógrafa americana, o desenho
surgia como esquema de composição e estudo dos limites do corpo, num cruzamento entre a performance de dança e
as artes visuais. Com o objectivo principal de fazer espaço do corpo e sua reflexão filosófica em
coalescência, o desenho permite ora construir partituras de improvisação e composição coreográfica a partir de
proposições filosóficas, ora traduzir a sensação no papel – aquela do espaço do corpo em pensamento. Este
último, como pensamento filosófico, é influenciado por Friedrich Nietzsche e Gilles Deleuze, entre outros
autores, em nome de uma potência de vida do corpo.
A natureza do projecto dá predominância à investigação artística e filosófica desenvolvida através da voz de
cada um dos participantes, num regime de partilha do sensível entre a vida e a arte; pois pretende-se que as
séries de práticas e teorias, em coalescência, incitem à experiência vivida, ao conhecimento e revelação de
si.
Ana Mira, 2020
Coalescer”. Vem aí uma constelação
Investigadora Ana Mira inicia, no sábado, viagem em torno da dança, do desenho e da filosofia
Por Paula Janus
Coalescer” é "uma constelação" que nasce do encontro entre a dança, o desenho e a
filosofia. Coalescer é, pois, nome de "constelação" que se cria com o corpo todo, para o corpo
todo. Uma narrativa erigida a partir do afeto, do sentir, do invisível, do pensamento filosófico e da
palavra. Coalescer é um corpo inteiro em escuta. É esta a experiência que a investigadora, docente e
performer Ana Mira, mãe do projeto, faz entrar pela Porta 33, já no próximo sábado, dia 1 de fevereiro,
pelas 18h00, sendo este o primeiro de vários momentos que, entre 2020 e 2021, bimensalmente, terão como
palco o centro cultural sediado na Rua do Quebra Costas. Em entrevista, Ana Mira conta-nos do seu anseio por
aqui chegar, da viagem imaginada e prometida, que é sua, mas também é nossa, se aceitarmos com ela navegar
através do brilho desta obra-constelação, prestes a desaguar na ilha. O conceito, explica, "tem que ver
com a reunião dos participantes nas atividades propostas", com a forma como cada um se entrega e se
envolve na experiência, através de uma série de exercícios "que vão atravessar o laboratório de dança e
filosofia, o atelier de movimento, o atelier de filosofia e as conferências". Coalescer remete para
esta comunhão de narrativas, mas recusa-se a fundi-las; o objetivo é que estas se potencializem entre si,
mantendo intacto seu próprio filamento. Ana Mira propõe, ainda, alguns exercícios performativos, sendo que
desta complexa construção deverão resultar manifestações várias, "mais artísticas ou filosóficas, ou
até de linguagem, de relação com a palavra, bem como expressões por meio da dança e do desenho (…) No fundo,
convoca-se uma série de áreas para as fazer caminhar lado a lado, potenciando-as mutuamente.",
esclarece.
Questionamos se, nesta génese em torno do corpo, do espaço e do tempo, haverá um centro nevrálgico, um ponto
de partida para o que (nos) acontece, ao que Ana Mira responde prontamente: "Se houver um centro, será
o corpo, porque, com o corpo, vem também o espaço e o tempo. Com o convite da Porta 33, a constelação
expande-se ainda mais, ganha outros braços e outras pernas, outros ventos e fôlegos, outros tempos e
espaços. Mais pensamento e mais palavra. Novos silêncios, também. A Porta abre-se de frente, para dentro,
deste corpo inteiro, põe os olhos e as mãos sobre a linha do infinito que representa Coalescer. Ana Mira
entra. Chega e acontece de corpo e alma, é intensa e profusa no arco com que nos envolve, mistura arte e
vida como se não as soubesse de outra forma senão assim, misturadas por dentro da linha infinita que vai
estendendo devagar até aos lugares mais lugares de cada um. Um por um. Encontra e reúne. Sente e reflete.
"Interessa-me pensar nesta constelação, num corpo que possa desfazer-se num desenho, numa dança ou numa
escrita. Interessa-me a corporalidade dos participantes, a sensibilidade, a perceção, a consciência do
corpo, do movimento, a criação de espaço e tempo."
Isto é o meu corpo: Escuta
Numa sociedade em que o frenesim quotidiano parece fechar todos os caminhos coadunáveis com uma escuta
sensível do corpo, é urgente abrir clareiras noutras direções e para outros sentidos. É preciso querer e
encontrar. Encontrarmo-nos e encontrar o outro. É preciso irmos por dentro até ao infinito. De peito e
cabeça abertos, de corpo inteiro. É preciso "acreditar que existe no corpo e na sua relação com o
espaço e o tempo uma potência infinita, e que o trabalho se faz, sempre, através de uma escuta sensível do
corpo e da sua relação com o espaço e o tempo, no sentido de nos superarmos e irmos mais longe, para
podermos libertar potências de vida que a arte desperta. Na sociedade atual, de facto, não se nutrem as
condições necessárias para que um trabalho desta natureza seja possível… Não podemos subtrair-nos a esta
realidade, mas podemos criar outros lugares, outros espaços onde isso possa ser possível e coexistir com
outras vias que a sociedade toma." É desta forma que a investigadora se posiciona e encontra o seu
próprio lugar no mundo, no corpo que é seu e é ponte para o outro, unindo gente, espaço, tempo, afetos,
palavras. Deambulando entre o visível o invisível. Eminentemente pensante, eminente sensível, seja através
da dança, do movimento, da poesia ou da linha sobre o papel. Estando perto para ir cada vez mais
longe.
Doutorada em Filosofia / Estética pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de
Lisboa, Ana Mira encontrou nesta disciplina um território complementar essencial ao desenvolvimento do seu
trabalho, um território que, na verdade, já lá estava, estivera sempre, desde o momento primeiro em que
abriu os braços, nas aulas de ballet, na Voz do Operário, tinha então oito anos de idade. "Na altura,
não tinha essa consciência, mas lembro-me da sensação de abrir os braços e sentir o ar, sentir o corpo e o
espaço. Claro que não conseguia verbalizar aquilo, mas lembro-me bem da sensação de um corpo que podia ir
mais além, que não ficava confinado aos seus limites. Transporto essa sensação muito antiga, de um corpo que
se expandia, que se prolongava pelo espaço. E com a escrita, aconteceu a mesma coisa; lembro-me de aprender
a ler e de gostar muito dessa aprendizagem. Lembro-me de estar a ler "O meu pé de laranja-lima" e
de chorar..." A par da dança, a leitura e a escrita vão rasgando o caminho. O corpo já não é só um
corpo que dança, mas é também um corpo que se inclina sobre o papel. Movimento, desenho, pensamento,
palavra, emoção. Mente e corpo são um só. A filosofia atravessa todas as frentes, e autores como José Gil,
Manuel Rodrigues, Maria Filomena Molder e Ana Godinho são referências enormes e definitivas para Ana Mira.
Inspirações fortes e presentes, que dão corpo às conferências, "eixo transversal a todo o
projeto". Na sessão de abertura, no próximo sábado, Ana Mira irá traçar uma espécie de "mapa de
visualização desta constelação de acontecimentos". A ideia é biografar o projeto, mostrar como este se
vai desenvolver e contar sobre as matérias que o atravessam, o que o motiva e o que pode proporcionar às
pessoas que nele participem. No fundo, diz, trata-se de "transmitir uma certa necessidade de criar em
nós um testemunho daquilo que vamos fazendo, através de documentos sensíveis."