NOTA SOBRE O ESTILO

Bruno C. Duarte

 

I

“há uma certa fatalidade no estilo de uma pessoa […].
[...] é possível iludir no conteúdo, mas não no estilo.” 1

 

As palavras em epígrafe, atribuídas a Pier Paolo Pasolini, em resposta a duas perguntas distintas sobre aspectos específicos do seu cinema, foram ditas a meio de uma conversa. São por isso, antes de tudo o mais, a transcrição de uma transcrição. A espessura que lhes é própria procede do seu reconhecimento imediato, mas este último está ainda encoberto, cercado no seu ponto de partida pela disjunção nativa e pela junção simulada que o tornaram possível. A montagem do texto transcrito sobrepõe duas frases que se desconhecem quanto ao lugar a que pertencem, no diálogo do qual fazem parte, mas que se comunicam subterraneamente no que procuram dizer. No primeiro caso, Pasolini está a referir-se àquilo a que chama a “história estilística” de Rossellini, e ao modo como essa história só coincide em parte com o estilo neo-realista; no segundo, dispõe-se de algum modo a enfrentar os seus críticos, quando diz do seu primeiro filme, Accattone, que este era “religioso no estilo, mais do que no conteúdo”.
De um exemplo cortado em dois assoma uma sentença implícita, que se poderia resumir, ou glosar, assim: a história individual do estilo de um artista ou de uma obra particulares só pode ser medida pela experiência que está implicada nela, e tem por isso de subtrair-se a si mesma, de cada vez, às condições e às categorias metodológicas do que continua a cumprir-se institucionalmente como história (da arte); e, se assim é, sugere a segunda metade da citação, é porque tinha de ser, de acordo com uma lei inelutável cujo princípio de demonstração parece ser induzido pela própria obra, na qual a natureza do estilo teria então de ser imediatamente reconhecível – como autêntica ou contrafeita, verdadeira ou falsa. Em ambos os casos, a contraposição do exemplo individual e do tipo histórico – Rossellini e o neo-realismo, Accattone e a sombra do Cristianismo – fornece, como que por exclusão de partes, a regra geral: alguma coisa, no autor ou na obra, excede necessariamente o sentido operativo, rigorosamente redutor, canonizado, do estilo, visto e tratado como uma ferramenta, um instrumento exterior de análise ocupado em determinar a origem, o tempo ou o lugar de uma obra de arte.
No seu todo, a afirmação de Pasolini tende a impugnar, isto é, a impor limites a esse enraizamento propriamente instrumental do estilo, integrado no método e na autoridade de uma ciência da ‘evolução’ artística. Mas, mais do que isso, ele parece disposto a correr todos os riscos perante alguns dos pilares de muito do que frequentemente é tido pelo nascimento da consciência de si da arte moderna.
Antes de mais nada, e acima de tudo, porque a sua suposição – o estilo como o que traz em si a marca da fatalidade, e cuja raiz é aqui já apenas vagamente teológica – assenta num pressuposto intangível, a saber, a ideia de uma necessidade absoluta que é impossível contrariar, na qual está pressuposta por sua vez uma relação de imediatez do artista com o seu próprio estilo que põe em causa toda a noção de objectividade enquanto sacrifício do individual. Em seguida, porque admite liminarmente o dualismo que opõe conteúdo e forma (ou estilo), sem exigir nem o seu anulamento puro e simples, nem a subordinação do primeiro ao segundo termo; acabando mesmo por inserir nele uma deliberação sobre a verdade ou a falsidade latentes no gesto e na obra de um artista determinado, do que decorre então, sob a forma de um juízo final, uma de duas coisas: a exigência da sua legitimidade, ou o seu fundo de impostura. Por último, mesmo assumindo o seu carácter intempestivo ou a sua natureza casual, nada nesta afirmação deixa pressupor uma ambição teórica no sentido estrito, e, apesar de todas as provas em contrário, nada nela se assemelha a uma qualquer declaração de princípios ciente da complexidade do problema em que acabou de tocar. É mesmo o contrário que se verifica, e o mais que se pode inferir da mistura de franqueza e ingenuidade de que é feita situa-se aparentemente no limite raso do que seria uma simples evidência sem sombra, mencionada inadvertidamente e de passagem, que quase ostenta o tom de uma confidência, ou de um desabafo. Mas é precisamente nessa fragilidade que se esconde a sua maior virtude, e o seu interesse mais profundo.
É certo que não seria difícil encontrar vestígios de uma teoria ou de uma prática do estilo em Pasolini, no seu estado tanto afirmativo como dissolvente. Bastaria pensar nas suas alusões críticas ao estilo como mito, como modo de fazer ou como objecto de análise, ou na sua reflexão sobre a “condição estilística” do Discurso Indirecto Livre, de que se fala logo no início de Empirismo herege 2 , ou na ideia ao mesmo tempo intuitiva e programática de uma contaminação ou de uma mistura dos vários estilos entre si, ou nas várias camadas de significados de que é feito o simples título do drama “Besta de Estilo”. Bastaria, sem ir mais longe, relançar e repensar a intensidade da sua luta corpo a corpo de muitos anos com o ‘realismo’, que exemplifica da forma mais flagrante o movimento de negação e contra-posição que vai do estilo ao estilo enquanto tal. Aqui, porém, interessa não tanto ver de que modo a sua prática artística bate certo ou não com a sua ‘teoria’ ou meta-teoria do estilo, mas antes olhar para esta sua afirmação isolando-a, e por assim dizer descontextualizando-a, arrancando-a à sua naturalidade aparente.
Mais uma vez, é importante ter presente que a formulação ocorre, nas duas passagens, a meio de uma conversa, sobre o baixo contínuo de uma discussão, o que faz dela, sob muitos aspectos, um plano fortuito. De resto, e este ponto é crucial, só no domínio do acidental, contando com a parte de precipitação inerente à forma livre da oralidade, ela podia mostrar-se tão audaciosa, e o seu autor tão incauto. Aquilo que pode manifestar-se nela de imprevisto, de repentino e de não premeditado, transforma-se de muitas maneiras, no momento em que a língua falada é transcrita, e mais tarde lida, no seu correlato sensível. Se algo é enunciado, é-o com efeito no movimento da fala, que se interrompe a si mesma uma e outra vez para se constringir, para se particularizar, para não perder o seu fio, e, num sentido muito próprio, para encontrar a força instante da sua elocução.
Novamente: “há uma certa fatalidade no estilo de uma pessoa […] é possível iludir no conteúdo, mas não no estilo”.
Seria quase impossível ser-se mais prosaico, e, no entanto, precisamente no momento em que se vislumbra a extensão do problema do estilo no todo da cultura ocidental, é preciso admirar em Pasolini a candura da expressão, a crueza da sua honestidade no modo como se atira à sua questão, ou como passa por ela, sem a procurar, lançando-a apenas à sua frente. Faz parte do seu mérito mais próprio dispor bruscamente de um problema, em andamento.
Parece haver na fluidez das duas frases, primeiro separadas, a seguir entrelaçadas uma na outra, a demarcação clara de um antes e de um depois, que seria possível designar, por falta de melhor termo, como o encadeamento aberto da produção e da contemplação de uma obra.
Numa primeira instância, está em causa uma ideia de contornos aparentemente simplistas, associada por princípio à visão orgânica, dita essencialista, do estilo. Se o estilo for a expressão de uma individualidade própria, necessariamente inata e única, uma pura idiossincrasia da qual não pode haver fuga possível, e no interior da qual é total a cedência à simples subjectividade, a sua manifestação será por princípio uma tautologia – a que se poderia chamar também: uma fatalidade.
Numa segunda instância, joga-se a derivação dessa imagem inicial – um órgão auto-suficiente e perfeitamente natural a si próprio – no confronto com o objecto: as propriedades essenciais da obra devem traduzir, para além de qualquer técnica e à margem de toda a intenção, o valor inconfundível, irrepetível e estritamente inapropriável da inventio. ‘Estilo’ é para a arte a prova de fogo que a faz ser apreendida na sua autenticidade, ou no seu engano; o juízo será então irreversível, propriamente soberano.
Estas duas máximas, e o incómodo que podem provocar, ainda hoje, à vista da tensão e da dependência recíprocas em que vivem a estética filosófica e o fazer da arte, são suficientes para expor a face ingrata, muitas vezes indesejada, da pergunta pelo conceito de estilo. Pois é disso que se trata, e é isso que resta, num sentido necessariamente vago ou difuso, mas intenso: a pergunta pelo conceito. Não já pelo conceptual como atributo da própria arte, entenda-se, mas pelo conceito que pode ainda persistir da sua experiência, de tudo aquilo que nela permanece inalienável.

 

II

De algum modo, as palavras breves de Pasolini não são mais do que uma paródia, talvez irreflectida, mas infalível, da longa história da relação da arte com o estilo, na qual se vão sucedendo alternadamente, até à exaustão, a definição e a contra-definição de um e de outro termo. É que, mesmo circunscrita ao domínio da criação artística, isto é, afastada do seu espaço original – o instrumento e a instrumentação da escrita –, a tentativa de identificar o que possa ser o estilo (de um período, de uma obra, de um artista) continua ainda, apesar de tudo, a pressupor rituais de iniciação e de legitimação ― mas também de reprovação. A mera intenção de tocar a superfície do conceito está longe de ser pacífica; o confronto ao mesmo tempo com a sua omnipresença, a que quase se poderia chamar rastejante, e com o desprezo que suscita, põe à vista a maior de todas as dificuldades que o envolvem, a saber: torná-lo simplesmente dizível, ou manejável.
Na sua raiz, o estudo da génese, das condições e das leis da criação traz implicado em si um momento de apropriação ineludível, fundamentalmente alheio à própria criação; esta frequentemente não tem outra escolha senão ressentir-se, pela frieza ou pela violência, pela fúria ou pelo desdém, de um conceito que não reconhece como intrínseco ao seu percurso, e que é por isso levada a renegar com todas as suas forças. Dessa desconfiança levanta-se uma impaciência, para a qual parece não haver outra compensação que não a de uma ordem de exclusão, e daí decorre, não já um qualquer estilo em particular, mas o ‘estilo’ enquanto tal, como aquilo que é preciso contrariar, destituir, ou tornar inexistente.
Entre o sonho da sua construção e a vontade da sua lapidação, a amplitude do conceito turvou-o para sempre. Daí a julgá-lo ilícito, inutilizável, ou insignificante, vai um passo. O ‘estilo’ tornou-se uma genuína irritação, com a qual é preciso lidar mansamente e ao longe.

 

III

Desde há dois séculos que toda a originalidade se manifesta por meio de uma oposição ao classicismo. Não há forma nem fórmula nova que não tenha reagido contra ele. Pulverizar o adquirido, tal me parece ser a tendência essencial do espírito moderno. Em todos os sectores da arte, cada estilo se afirma contra o estilo. 3

 

Uma das muitas transições de que é feita a Teoria estética de Adorno trata especificamente das semelhanças entre a arte e a linguagem, partindo de um olhar sobre o processo de mediação recíproca que ocorre entre o particular e o universal, considerados enquanto movimentos que se condicionam entre si em função precisamente daquilo que os opõe como extremos. No meio dessa figuração esquemática é introduzido sem muitas demoras o conceito de estilo, cujo valor de exemplaridade advém justamente da sua natureza bicéfala: de um lado, refere-se ao “momento envolvente através do qual a arte se torna linguagem” 4 , para ser conduzida do seu movimento intrínseco, a imanência e a opacidade do particular, até aos “momentos universais” 5 , para ela essenciais e aos quais (por essa mesma razão) tem de se opor; do outro, fornece as leis que tornam possível a execução propriamente dita do paradoxo, subsumida por contraste numa figura em última análise insondável, das Fesselnde, o cativante ou interessante, ou, num sentido mais literal, aquilo que prende ou acorrenta, representando o movimento ainda conciliável com o particular.
O estilo da arte, pretende Adorno, é “a quinta-essência de toda a linguagem” na própria arte. Entende-se por isto que uma assume o carácter da outra, por um eixo transverso que balança entre a verdade do universal e a ‘particularização radical’, entre o plano da transcendência e o ‘processo imanente’. Salva-se o elemento mais próprio mediante o movimento mais contrário a cada uma delas.
Depois de aludir ao traçado da oscilação ou do nivelamento que determina a relação do sujeito com o princípio ambivalente da sua exterioridade (as convenções, os estilos que se vão acumulando e sucedendo na história da arte e da cultura), o alinhamento contido nessas breves páginas relativo à discussão sobre o estilo é em grande medida desviado para um âmbito que é já claramente o da sociologia da arte e da dinamização política do estético. Mas nem por isso Adorno abandona o nervo da sua questão, e, de uma forma absolutamente notável, como que erguendo um espelho à frente do que tinha escrito sobre a dialéctica do particular e do universal, acabará por expor o ponto de vista da inevitabilidade fundamental do estilo como condição primeira da sua incidência e re-incidência propriamente absolutas na história.

Qualquer crítica ao estilo é reprimida pelo ideal polémico-romântico do mesmo; impulsionada para diante, viria certamente a alcançar toda a arte tradicional. Artistas autênticos como Schönberg revoltaram-se energicamente contra o conceito de estilo; chegar a denunciar este último constitui um critério da modernidade radical. O conceito de estilo nunca se igualou de forma imediata à qualidade das obras; aquelas que parecem representar o seu estilo da maneira mais precisa resolveram sempre o conflito que mantinham com ele; o próprio estilo era a unidade do estilo e da sua suspensão. Qualquer obra é um campo de forças, mesmo na sua relação com o estilo, mesmo no caso da modernidade, quando sucedeu que nas costas dela, precisamente no ponto em que renunciara à vontade de estilo, se ia constituindo, sob a pressão da estruturação, algo como o estilo. Quanto mais ambicionam as obras de arte, tanto mais energicamente resolvem o conflito, mesmo que isso implique a renúncia àquele êxito, na qual, de resto, pressentem a afirmação. Posteriormente, o estilo só se deixou transfigurar porque, apesar dos seus traços repressivos, não era simplesmente gravado nas obras de arte a partir do exterior, mas antes – como Hegel gostava de dizer, a respeito da Antiguidade – em certa medida substancial. Ele infiltra na obra de arte algo como o espírito objectivo; aliciou até mesmo os momentos de especificação, exigiu o específico para chegar à sua própria realização. 6

É impossível fazer aqui justiça à complexidade desta longa frase, e ainda menos à sua posição ou ao seu valor sistemáticos. Vale a pena notar, em todo o caso, que ela diz muito quanto ao modo como é construída e articulada a exposição de toda a Teoria estética, que, na verdade, e não obstante o resvalar na incompletude e no esboço, nunca deixa de ser um texto contínuo, feito para responder acima de tudo a si mesmo. Neste caso em particular, o vislumbre de impiedade na argumentação, de resto um traço recorrente na escrita de Adorno, e sob muitos aspectos a matéria da sua densidade, quase ofusca a rapidez com que um plural, os ‘estilos’, as convenções, passa a singular. Para a reconstruir, e para a decifrar, pelo menos em parte, seria preciso observá-la de mais perto.
Muito concisamente: o artista moderno distingue-se pela sua rebelião contra a natureza repressiva, atrofiante do estilo, mas ao configurar, ao dar uma forma particular à sua obra, não pode evitar que nela recomece a emergir “algo como o estilo”. Para repudiar a vontade de estilo é precisa por conseguinte uma outra espécie de volição, um querer subtrair-se à sua prevalência, ao seu domínio. É esta contradição que se vê aqui diferida para o espaço de vida da obra, a qual passa a relacionar-se com o estilo não de modo imediato, mas sob o signo da sua negação. A transfiguração do estilo de que fala o texto corresponde a essa fenda entre a acuidade da sua denúncia, que tinha de ver nele um corpo estranho ao processo da arte, e a sua reabilitação enquanto elemento co-substancial e co-extensivo à obra, capaz de a impregnar – precisamente através daquela mediação do negativo – de “algo como o espírito objectivo”.
Este “algo como” subsume toda a condição do estilo junto à fricção do particular com o universal, na articulação das partes com o todo que compõe a autonomia de uma obra. A resolução do conflito entre a obra e o estilo, o plano em que a “unidade do estilo” não só co-habita mas depende directamente da sua “suspensão”, não indicia pois outra coisa senão a incumbência do conflito posta em acto, fixada no fazer da obra. Adorno:

No limite, o conceito de estilo é para aplicar às obras de arte particulares como suma dos seus momentos linguísticos: a obra que não se deixa subsumir a nenhum estilo deve ter o seu estilo, ou o seu ‘tom’, como lhe chamava Berg. Ainda assim, é inegável, na história mais recente, que as obras de arte estruturadas em si mesmas se aproximam entre si. Aquilo a que a história académica chama o estilo pessoal retrai-se. Se quiser subsistir à força de protestar, então irá esbarrar quase inevitavelmente contra a legitimidade da obra particular. A completa negação do estilo parece transformar-se em estilo. 7

Note-se que esta última inferência não representa nem a demonstração, nem a repetição do que tinha sido dito antes; ao invés de resolver o conceito, ela tem o mérito de exibir a sua dificuldade. Senão, vejamos: por insistir no princípio da sua irredutibilidade, isto é, na recusa em representar um estilo determinado, e por estar infundida daquele “espírito objectivo” que lhe é ao mesmo tempo estranho e intrínseco, a obra já só pode agora responder a si própria, numa palavra, e parafraseando uma última vez, a “algo como” o seu estilo (entendendo este possessivo sempre por aproximação).
Não é irrelevante, no entanto, que a concentração na individualidade concreta da obra, com as leis e os princípios que lhe são imanentes, apareça aqui sob o signo do confronto que a opõe ao estilo ‘pessoal’ (ou individual) do artista – o que não faz outra coisa senão repisar uma vez mais, sem a resolver, a questão da subjectividade, isto é, da sobrevivência do sujeito na obra, e da obra face ao estilo. É mesmo muito significativo que seja este um dos pontos em que o discurso implacável e espinhoso de Adorno acaba por cruzar-se com os dois axiomas propriamente fortuitos de Pasolini. No carácter maciço de um vem embater o sentido reverberante do outro, da mesma maneira que, no ‘campo de forças’ da criação, o estilo, arremessado de encontro à obra e desfeito no contacto com ela, reaparece uma e outra vez no seu interior.
Por sua vez, esta imagem não está longe de ser uma reminiscência da natureza giratória do estilo, que, dir-se-ia, se resume assim a uma fatalidade de outro tipo: a fatalidade propriamente dita do conceito destinado a persistir e a perpetuar-se no próprio instante em que ambiciona suprimir-se a si mesmo. Simplesmente, há muito que essa lógica fatal deixou de estar reduzida ao horizonte da modernidade, no qual se movem os exemplos de Adorno, e atrás do qual se esconde – como sua condição – aquilo a que a Teoria estética chamará ainda, um pouco mais adiante, a “fé ingénua no estilo”. 8 Seja como for, a história (ou a evolução) “mais recente” é hoje uma outra.

 

IV

 

“Forma cuidada, mas não estilo.”
Que alguém lhe prove o contrário. 9

A hostilidade para com o estilo, que Adorno apresenta lapidarmente como um dos traços distintivos da arte moderna, mostrou ser, anos depois, e à margem de muito do que serve de motivação e de móbil – no sentido próprio – à Teoria estética, algo de propriamente extensivo, que não se deixa encerrar num único período determinado. Com o estilo, ocorreria dizer, passa-se o mesmo que com vários outros termos que acabaram sobrepostos de modo exíguo à noção de representação: mais cedo ou mais tarde, emerge como um compromisso inadiável a vontade do seu rompimento, da sua obliteração.
Pode-se explicar estruturalmente esse anátema, ou insistir ainda em situá-lo no tempo histórico, fazendo-o coincidir por exemplo com o momento em que o gesto artístico – a sua potência, ou a sua finalidade – procura a eliminação abrupta do conteúdo, ou da intenção, ao fixar-se no movimento raso do impessoal e do neutro; ou remetendo-o para a recusa da obra em pertencer a um género, a um modelo, em deixar-se aprisionar por qualquer ideologia do autor e da autoria – e assim por diante. Mas cedo se percebe que o alcance desse fenómeno está longe de se esgotar numa simples linha de continuidade e de ruptura, e parece ser maior do que o de uma de uma mera mudança de paradigma.
Se continua hoje a existir um repúdio do estilo, ele deve-se, em primeiro – e último – lugar, não tanto à sua ascendência discursiva, sentida como uma intromissão no processo da arte, nem mesmo às circunstâncias que rodeiam a simples ideia da sua progressão, mas antes ao desgaste que assalta o conceito do seu interior. Faz parte da sua natureza um dado revolutivo: o seu movimento mais íntimo, o mesmo que irrompe não apenas da sua negação, mas da sua renegação, fá-lo curvar-se sobre si próprio e revoltar-se contra si mesmo. Contudo, nem o desejo de invalidar o estilo passa sem essa reflexividade, que o vira do avesso e o obriga a trair-se a si mesmo, nem a noção tradicional ou normativa do estilo, o alvo que se tratava de abater, consegue manter-se intacta ou unida a si mesma. O movimento tem sempre duas faces, e tende a alastrar a todo o espaço à sua volta – e à sua frente.
Vale dizer que, neste ponto, tudo se confunde, e não é incomum que a mais violenta das diatribes contra o estilo acabe por revelar-se afim, na sua radicalidade, à ânsia metafísica de um estilo absoluto; ou que a ambição de uma arte sem estilo, para além ou aquém do estilo, se mostre incapaz de reprimir a sua obsessão por ele. É também por isso, num sentido mais geral, que qualquer rejeição do conceito, especulativa ou visceral, está condenada a falhar no próprio instante em que se reconhece a sua necessidade. O que quer dizer que a sua falha traz consigo o primeiro vestígio do seu ressurgimento.
Schönberg, o exemplo de Adorno para o processo movido pela arte moderna contra o estilo, escreve isto, num dos seus ensaios:

As regras positivas e negativas podem ser deduzidas de uma obra acabada como partes constitutivas do seu estilo. Cada indivíduo tem as suas próprias impressões digitais, e a mão de cada artesão tem os seus atributos pessoais; de uma tal subjectividade emergem os traços que constituem o estilo do produto final. Cada artesão está limitado pela insuficiência das suas mãos, mas é ao mesmo tempo protegido por aquilo de que elas são capazes. O estilo de tudo aquilo que ele faz depende das suas condições naturais […]. Estilo é a qualidade de uma obra e assenta sobre condições naturais que exprimem aquele que a produziu. Na verdade, aquele que conhece as suas capacidades pode estar em condições de prever com precisão qual será a aparência da obra acabada, que, por enquanto, só distingue na sua imaginação. Mas nunca irá tomar como ponto de partida uma ideia pré-concebida do estilo; estará incessantemente ocupado em fazer justiça ao pensamento. Está seguro de que, se for cumprido tudo o que é exigido pelo pensamento, a forma exterior será adequada. 10

Não surpreendentemente, o pano de fundo destes comentários mantém-se dentro do domínio da estética musical – por estilo, Schönberg está a referir-se essencialmente aos métodos e técnicas de composição; por pensamento, ao pensamento na música. Mais especificamente, a parte de agressividade assinalável neste texto, seria preciso referi-lo, incide numa polémica a respeito da designação “nova música”, sobreposta à discussão de uma certa interpretação da evolução e do progresso da música (associada nomeadamente à convicção de que o aparecimento de um novo estilo torna obsoleto o anterior). Mas é no sentido mais amplo deste conjunto de reflexões que parece estar contido um pequeno ensinamento contraditório, mas fecundo, para a compreensão do estilo como experiência da arte.
Para chegar a propor o desmantelamento da “ideia pré-concebida do estilo”, Schönberg terá de recuar na consciência desse conceito, primeiro fixando-o à sua sombra mais insistente – a alusão à assinatura do artista, isto é, às ‘condições naturais’ do sujeito –, depois refazendo-o de algum modo a partir do seu interior.
Há sempre um reverso do estilo, mas, para formular esse reverso, é preciso regressar ao sentido propriamente orgânico do conceito, e entrever nas suas propriedades (ou qualidades) o reflexo ao mesmo tempo do criador e do objecto criado, até que um e outro, de tão intimamente ligados, se tornam indiscerníveis. É o que mostram com muita clareza os esboços de Schönberg para o seu ensaio, que remontam a 1930, e onde, a dado momento, o estilo é dito uma espécie de “nudez”, “incapaz de depor a verdade sem com isso entregar o seu cerne”, daí resultando, por contraste, que: “Quem separa o estilo do objecto, fica com um nada na mão.” 11
À primeira vista, a antinomia que opõe ‘estilo e pensamento’ – a mesma que dará o título à edição dos ensaios reunidos de Schönberg – parece linear: à ‘ideia pré-concebida’ do estilo, definida pela história no seu fervor de inventariação, isto é, à convenção e ao postulado, contrapõe-se o verdadeiro pensamento, que existe apenas em função de si mesmo e não depende de nada que lhe seja exterior. Os estilos dominam, os pensamentos vencem, dirá ainda um aforismo tornado célebre: os primeiros estendem-se por períodos inteiros, e chegam mesmo aparentemente a defini-los, mas acabam por se desvanecer e cair no esquecimento; os segundos afirmam-se pelo grau da sua consistência, da qual se deduz a sua imunidade ao tempo, e, por arrastamento, a sua autenticidade. Com a ressalva importante de que por ‘pensamento’ – traduzido pelo próprio Schönberg como ‘ideia’ – não deve entender-se apenas mais um dos muitos conceitos contrapostos ao estilo (como o seria ainda ‘maneira’, para escolher um exemplo bem enraizado na tradição), apreendido como categoria nefasta e superficial, mas o próprio princípio de diferenciação interna desse conceito, o modo como é possível ao mesmo tempo afastá-lo do seu sentido trivial ou periodizado (‘pseudo-histórico’, diria Schönberg), sem pôr de parte a sua regeneração individual – pela via negativa. Como se Schönberg tivesse lido com toda a atenção, à medida do seu olhar de artista e compositor, as páginas que Schopenhauer dedicou ao estilo enquanto “fisionomia do espírito”, que também elas começam por referir-se à “impressão exacta” deixada pelo autor no seu material, dando a ver o modo como ele pensa, ou seja, a “constituição essencial” e a “qualidade geral” 12 do seu pensamento, para se confrontarem a seguir com o plano da objectividade e da obra. Essa impressão, continuará Schopenhauer, “mostra a condição formal de todos os pensamentos de um homem, que tem de continuar igual a si mesma, seja o que for que ele possa pensar. Assim se chega por assim dizer à massa com que ele compõe todas as suas figuras, por diferentes que possam ser.” 13 O estilo torna-se na “silhueta do pensamento” 14 , da mesma maneira que, em Schönberg, o pensamento, “aquilo que há de mais importante numa obra de arte” 15 , vive da sua articulação com a condição paradoxal – a fatalidade, seria preciso acrescentar – do estilo.
Fica assim excluída a forma plural – os ‘estilos’ –, mas propriamente suspenso, quer dizer, pronto a renascer como problema, o conceito individualizado do estilo. O mesmo é dizer que o seu resgate possível, no presente mais ou menos imediato, teria de passar também, mais do que pela tentação corrente do seu ostracismo, pela procura do que pode significar para a arte uma tal condição formal do pensamento.

1 Pasolini on Pasolini, Interviews with Oswald Stack, Londres, 1969, pp. 108, 83.

2 P.P. Pasolini, Empirismo hereje, Trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, 1982, pp. 25-27.

3 E. Cioran, A tentação de existir, Lisboa, s.d., pp. 101-102.

4 Th. W. Adorno, Ästhetische Theorie, Ed. G. Adorno, R. Tiedemann, Frankfurt a.M., 1970, p. 305.

5 Ibid., pp. 303, 304.

6 Ibid., pp. 306-307.

7 Ibid., pp. 307-308.

8 Ibid., p. 308.

9 A. Schnitzler, Karl Kraus, in: Ohne Maske. Aphorismen und Notate, Frankfurt a.M., 1967, p. 166.

10 A. Schönberg, New Music, Outmoded Music, Style and Idea (1946) in: Style and Idea. Selected Writings of Arnold Schönberg, Ed. L. Stein, Trad. Leo Black, Belmont, 1975, p. 121.

11 A. Schönberg, Neue und veraltete Musik, oder Stil und Gedanke, in: Stil und Gedanke. Aufsätze zur Musik, Gesammelte Schriften I, Ed. I. Vojtech, Frankfurt a.M., 1976, p. 473.

12 A. Schopenhauer, Parerga und Paralipomena II, Zürcher Ausgabe Vol. 10, Zurique, 1977, pp. 563-564.

13 Ibid., p. 564.

14 Ibid., p. 566.

15 A. Schönberg, New Music, Outmoded Music, Style and Idea, op. cit., p. 121.

José Gil