VER, FAZER, REFLECTIR — FRAGMENTOS E NARRATIVAS

gonçalo m. tavares

 

 

“We expected the beautiful or the wise”
W.H. Auden

 

0 - ser visto, ser empurrado, não ver, não ter imagem, não ter solo

 

A questão também é esta: porque atiram cegos do céu?
Do céu conhece-se pouco e por isso há quem queira recolher os cegos que caem do céu como quem recolhe pedaços de um meteorito - queremos conhecer Marte e outros planetas pelos vestígios que caem lá de cima. Os cegos empurrados do céu, quando chegam ao solo, muitos dias depois, desfazem-se por completo como se cada um fosse um agrupamento de peças de automóvel; e o certo é que essas peças aparecem aqui e ali, por vezes a milhares de metros de distância.
No fundo, os cegos que caíram do céu, os seus pedaços, são agora material científico – e se a partir desses fragmentos do cego, entendermos as causas da maldade do alto céu, pois bem, então, benditos sejam os cegos que se sacrificaram.

 

1. Ver

 

“No mundo animal, os dois meios que os machos têm à sua disposição para obter o consentimento da fêmea no acto sexual são a violência que salta ou a paralisia pela fascinação. Esta sideração ou fascinação é visual ou sonora.”
Pascal Quignard

 

1.1-Fascínio

Ficar fascinado pelo que se ouve, pelo que se vê. Ceder a parte mais íntima porque os olhos e os sons foram capturados. Se viras os olhos e a direcção da audição para o mesmo ponto do mundo, se eliminas tudo aquilo em que poderias pensar e em vez de pensares vês, apenas, o que está à tua frente, eis então: estás fascinado.
“A fascinação sonora confina na palavra romana de obediência, no limite da obediência mortal. É a música. É o rugir do gato sobre a fêmea.”
A fascinação é um estado antigo, primitivo, básico “onde o ver era ainda comer. Onde os olhos arregalados afastavam as mandíbulas”. (PQ)
Olho humano – olho como continuação do cérebro, está aberto para transmitir luz de dentro.
Olho não humano – olho como abertura na pele, célula da pele, recepção, passividade, abertura para deixar entrar luz.
“O bebé vivíparo diante da coisa que come fica de boca aberta. A mãe abre a boca enquanto lhe dá de comer na sua cadeira alta. Encontrar a sensação de ficar com a boca aberta é o próprio da fascinação mais antiga. Lábios protrusos, olhos extáticos, a palavra dos antigos ekstasis descreve a saída para fora de si (o corpo) e para fora do instante”. (PQ)
“O grego ekstasis exprime em latim existentia”.
Existir: abrir a boca para ver.

1.2 - Ver, parar

Ver é uma forma de parar que não começa lá em baixo, nos sapatos.
Ver é uma forma alta de parar.
Paramos lá em cima ou algo lá em cima pára por nós – e ficamos a ver.
Um corpo parar porque não há caminho ou o caminho ter um obstáculo físico, concreto, que não deixa os pés prosseguirem – eis a paragem muscular, baixa; e há, portanto, uma diferença entre parar porque já não há caminho e parar porque ali, ao lado, ou em frente, está algo de belo.
A beleza como um obstáculo benigno dos teus pés.
Não avanças porque algo de belo te impediu.
A beleza introduzida no mundo para diminuir a velocidade do cidadão.
A beleza como instrumento político da redução da velocidade, sim, mas também elemento de distracção.
Enquanto olhares para o belo não olharás para o feio.

 

1.3 - Ver, parar, belo, feio - Arquitectura, um exemplo

O edifício de Niemeyer, o Museu de Arte Contemporânea, em Niterói (MAC).
Saímos do Rio de Janeiro e avançamos para a bem menos bela Niterói.
Um edifício circular, suspenso, junto ao mar, com uma extraordinária vista para o Rio de Janeiro, para o Pão de Açúcar.
A sensação estranha quando se visita o museu: a forma circular do edifício diz, pela sua própria geometria, que o corpo circule em redor; e, afinal, partida de arquitecto: o corpo do visitante pode apenas circular junto ao solo em meia circunferência, na meia circunferência em que o corpo está virado para a paisagem do Rio de Janeiro.
Viramos as costas e percebemos Niemeyer, pelo menos um pouco. De facto, os nossos pés estão num sítio feio – aquela zona de Niterói é, no mínimo, desinteressante: estamos com os pés no feio e com os olhos virados para a belo.
Para onde viras o teu corpo? Uma questão política e individual. Uma questão de política individual.
Lá dentro, no museu, a mesma partida de Niemeyer aos visitantes. No edifício redondo, todo envidraçado, as obras expostas estão sempre colocadas no lado virado para Niterói. As obras feitas pelo homem tapam a natural feiura. De novo, lá dentro, quando olhamos pelos vidros que não estão tapados pela arte exposta, vemos a bela paisagem do Rio. E só.
Como dentro de um sistema rapidamente hipnótico; a arquitectura como definição de uma política do ver. O arquitecto diz: verás aquilo que eu quero – e parede e vidro, transparência e opacidade, determinam rapidamente um metabolismo visual. Quero ver, e não me deixam. Não quero ver, e mostram-me.
Mas há um pormenor na escadaria que nos leva do solo exterior ao interior do museu. A escada poderia ser linear e assim subiríamos, de novo e sempre, de costas para o feio e de frente para o belo. Porém, Niemeyer projectou uma aparentemente inútil volta nas escadas. Subimos sempre virados para o Rio, mas durante uns metros as escadas dão uma voltinha lúdica, e aí, nesses dois-três metros, por uns pequenos segundos, o nosso corpo fica virado directamente para o feio. Imediatamente a seguir, os olhos estão de novo virados para o lado belo. E virados para esse lado avançamos.
E nesta arquitectura: tudo - ou pelo menos parte. Para que lado viras o que fazes, que tipo de itinerário impões?
Claro que, depois, haverá o regresso. E no regresso, sim, só o feio te recebe de frente.
Talvez seja justo.

 

2 - Reflectir

“aquele que recita o estudo do capítulo cem vezes não é como aquele que o recita cento e uma vezes.”
(Talmude, Tratado Haguigah)

 

2.1 - Pensamento
O início do pensamento está em todo o lado, o fim do pensamento em lado nenhum.
Há uma certa ânsia das coisas, mesmo das imóveis, caladas e mortas, uma ânsia que se vira para quem passa e pode pensar. Por favor, pensa sobre mim; ou: faz de mim pretexto para pensar.
As coisas, os acontecimentos, tudo quer ser pensado – o que existe, existe, em parte, porque quer ter um reflexo, uma resposta.

2.2 – Reflectir, circunferência, recta

Reflectir é também voltar. Como um teimoso ou como alguém que não percebeu.
Heidegger e a sua defesa da filosofia – dizem que a filosofia está sempre a dizer o mesmo? É verdade, está sempre a dizer o mesmo, está sempre às voltas. E está sempre às voltas, diz Heidegger, porque está sempre em redor do essencial.
Diríamos então: esta descrição do movimento tem um desenho geométrico – a circunferência. O essencial é o centro da circunferência e, sim, a geometria ensina que a única maneira de nos mantermos à mesma distância em relação a um ponto é percorrermos a circunferência em redor desse centro. O filósofo, então, como o animal que volta a passar pelo mesmo ponto, produz trabalho porque não se dispersa e porque não avança em linha recta, desconfia da linha recta tanto como do desvio.
Precisamente, em parte, diga-se, o progresso tecnológico define-se pelo avanço de uma linha recta. Mas se o centro está ali, num ponto, parado, a extremidade da linha recta que avança estará cada vez mais longe do centro, do essencial. Recua, portanto; afasta-se.
Precisamente: o percurso em circunferência faz confundir o avanço e o recuo. Avançar é recuar - e recuar, avançar. Confundem-se.
Mas diria: traça-se uma circunferência, mas cada vez mais funda. Passa-se pelo mesmo ponto mas, a cada vez, um centímetro mais abaixo. Não se trata de um traço que se repete, mas de uma escavação que avança.

2.3 - Espelho

Pensar numa personagem que nunca olhasse directamente para a realidade, que levasse sempre um espelho na mão ou até espelhos à frente dos olhos, como as palas de um burro. E assim, esse homem, através de um dispositivo bem simples, conseguiria nunca olhar directamente para as coisas, olharia sempre através do espelho, veria as coisas reflectidas, receberia nos olhos as coisas como se estas já viessem pensadas (receber a reflexão das coisas; não se precipitar).
Assumir que o espelho começa a pensar antes do nosso cérebro, o espelho como material do mundo feito para dizer: as coisas nem sempre são o que parecem. Espelho como material que alerta para ilusões, para falhas da percepção e do entendimento. Não está no mundo para nos iludir, está no mundo para nos lembrar que podemos ser iludidos. O espelho não quer enganar, mas apontar, sugerir, pensar.
“No espelho flutuava o conhecimento de toda a sala.” (Lispector)

3. Fazer

“Acho que vou comer o meu chapéu
Acho que isso me vai satisfazer.
Porque é que uma pessoa não há-de comer o próprio chapéu
Se não tem mais nada, mais nada, mais nada para fazer?”
Bertolt Brecht
(“Ascensão e queda da cidade de Mahagonny”)

 

3.1 - O que fazer? – homem fechado dentro do elevador que avariou

 

Um homem fica trancado num elevador que está cheio de gatafunhos que parecem grafittis, nem um centímetro livre, vazio ou limpo; pelo contrário, tudo sujo com letras, recados; grafittis que, depois de alguma atenção, se vê que traduzem uma ordem - há uma certa ligação entre cada gatafunho e, claro, que quem subitamente se viu fechado, trancado, num elevador avariado pensa primeiro em gritar e só depois em ler.
No entanto, Gustav já gritou tudo e como ninguém o ouviu, ele já esqueceu que estava ligeiramente desesperado e agora está ali, a ler.
Mas eis o que é isto: um sistema para meditação. Em vez de livros que ajudam a cabeça a parar, em vez de exercícios físicos de relaxamento, em vez de mestres que vêm do Oriente no avião veloz para depois ensinaram o Ocidente a andar de burro ou no dorso de animais ainda mais lentos, em vez disto tudo, eis o que uma agitada cidade aprendeu a fazer para acalmar os seus habitantes, para lhes reduzir a ansiedade doentia: distribui as avarias. As avarias técnicas, portanto, como sistema filosófico.
O que chamam avaria técnica é, afinal, pedagogia filosófica de uma cidade. Talvez involuntária, sim, talvez inconsciente, sim. Mas isso ao início. Porque agora já está claro para quem manda na cidade que as avarias não são acontecimentos a que se dê uma conotação negativa, não merecem o sinal menos – merecem, ao invés, o sinal mais, um sinal que distingue os acontecimentos fundamentais de uma cidade. Não são o inverso de uma celebração - da celebração, por exemplo, dos duzentos anos da fundação de uma cidade. Uma avaria é uma celebração moderna. Uma celebração imprevista, não marcada. Uma celebração privada, também - pois é sempre avaria bem localizada: num elevador, no carro, no transporte público, na máquina que ia tirar a fotocópia urgente e imprescindível. Ou seja, não há avarias globais, gerais, não há uma avaria que interrompa por completo a circulação da ansiedade numa cidade. As avarias são sempre locais, privadas, escondidas. E isso é o melhor que há nelas, pois assim a avaria transforma-se numa medicação com nome próprio. Numa instintiva aprendizagem da calma individual.
Cada habitante da cidade, em suma, merece uma avaria que o obrigue a parar, a suspender a velocidade e a acção prevista.
PARA CADA HABITANTE UMA AVARIA, poderia exigir-se nos slogans das concentrações modernas de protesto.

3.2 Avaria

Insistir: a avaria salva.
A avaria como forma moderna de o espírito interromper o que a matéria tinha definido como certo.
A avaria como um espírito imprevisível que interrompe, que entra a meio quando ninguém espera - alguém que, de fora, interrompe abruptamente uma conversa amena.
Intervenção espiritual e avaria de uma máquina; no fundo, a matéria não se apoderou por completo dos nossos dias e dos nossos metros quadrados porque existem as falhas súbitas no funcionamento.
O que nos pode salvar, hoje, em 2013, individual e colectivamente?
Nenhum deus, nenhum homem, nenhum animal; a técnica salva, sim, ou então a sua avaria.

3.3 - O solo

“O carácter da nossa época é de ambiguidade e indeterminação. Só consegue suster-se sobre aquilo que se prepara para deslizar, estando consciente de que se mantém sobre algo que desliza, de modo idêntico àquele que as gerações precedentes acreditavam na solidez. Vibra, nesta época, uma ligeira vertigem crónica.”
Hugo von Hofmannstahl, le Poéte et l’ époque présente

 

Se o solo é um elemento que desliza, Carlo Stefano Broghiopta pelo seguinte: avança para esse espaço que desliza carregando um enorme peso numa mochila. Tenta pensar como se fosse um comboio ou outro veículo com rodas: se o peso for muito, se a força que empurra para baixo for maior do que as forças que empurram para os lados, um homem não cairá, quando muito, afundar-se-á.
De qualquer maneira, eis Carlo Stefano Broghicarregando um peso nas costas: e, sim, afunda-se; cava um buraco sem ser necessário usar qualquer outro instrumento - cava um buraco por via do seu próprio peso.
Eis, pois, que Carlo Stefano Broghi desiste antes de ficar soterrado. Larga a mochila e o enorme peso. Sobe de novo para a superfície, agora leve – tanto quanto um homem vivo pode estar. E, de imediato, sente a fluidez do chão, aquele deslizamento e, na primeira vez, cai desamparado; na segunda vez cai, mas cai de uma forma diferente. Depois, à terceira, entende já a velocidade e a direcção do deslizamento do solo. Aproveita assim o movimento do solo para mudar de posição. Imagina-se um surfista sobre a terra. Eis, ele, Carlo Stefano Broghi, a experimentar o chão do século XXI, a tentar percebê-lo.
E desta vez não cai.
Mas só por uns segundos.

3.4 – O que fazer? Como fazer?

Estamos no mundo. Como devemos avançar? Uma hipótese, assim:
“Como quando a meio da escada a luz se apaga, e a mão – confiante – segura o corrimão cego que nas trevas encontra o caminho.” (Tomas Transtromer)

fim