A ARTE E O TEMPO CONTEMPORÂNEO

José Gil

 

1. Por razões algo obscuras, acontece que o nosso tempo – este, à volta do princípio do século XXI – é cada vez mais caracterizado, quase exclusivamente, como “contemporâneo”: a nossa arte é “contemporânea”, assim como a tecnologia, a moda e o nosso pensamento devem ser “contemporâneos”. Chega-se a dizer que a nossa modernidade deve tornar-se “contemporânea”, sob pena de não ser reconhecida como moderna, quer dizer de se tornar datada. Um subtil deslocamento da função do termo “contemporâneo” é assim operado: de adjectivo que qualificava uma relação – era-se o contemporâneo de alguém ou de um acontecimento -, passou a atributo de um substantivo: a “arte contemporânea” , o “homem contemporâneo”.
Como se processou esta transformação? E o que é que ela significa? Quando caracterizava uma relação, esta designava a co-pertença a um mesmo tempo. Mas como todos os tempos – passados, presentes, futuros – se compõem de múltiplas camadas de outros tempos, eu posso não ser, em muitos aspectos essenciais, o contemporâneo do meu vizinho que vive embrenhado no passado, fechado nas suas recordações e velharias de “um outro tempo”. Ora o “contemporâneo” visa em primeiro lugar, o presente – se dois acontecimentos foram contemporâneos no passado é porque o foram antes no presente, mas não cronologicamente. A co-pertença a um mesmo presente não chega, pois, para definir a contemporaneidade. O exemplo do meu vizinho mostra que a simultaneidade de existência num mesmo presente cronológico não define o tempo do contemporâneo – o que significa que é preciso que a vida do meu vizinho seja atravessada por um outro tipo de tempo para que eu possa considerá-lo meu contemporâneo (supondo que eu já o sou). Posso mesmo dizer, em certo sentido literal e não metafórico, “Espinosa, meu contemporâneo”, se considerar que as ideias de Espinosa são pertinentes na (quer dizer produtoras da) minha época. Vemos bem que há um tempo não cronológico que entra na definição do “contemporâneo”.
Mas é verdade que esse tempo se insinua no tempo empírico cronológico pois “ser o contemporâneo de” diz-se de todo o segmento temporal cronológico, de todo o momento da história. Isso significa apenas que a contemporaneidade corresponde, sobrevoa e se pode inserir em todo o presente “objectivo”, não sendo ela uma temporalidade cronológica. É mesmo necessário que essa temporalidade que não pertence ao tempo empírico o atravesse para que o “contemporâneo” não empírico se afirme. Essa necessidade manifesta uma condição essencial para que o próprio presente cronológico exista.
Uma outra condição se revelou: o presente contemporâneo não é instantâneo, mas supõe uma duração. “Ser o contemporâneo de” implica uma relação não abstracta ou instantânea, mas que tece um contínuo de tempo entre dois seres. Esse contínuo exprime uma espécie de ubiquidade do tempo: um e outro ser tecem o presente em que são contemporâneos. É um presente por assim dizer ubíquo, sem que se trate de simultaneidade (que não implica ligação) e sem que cesse de ser o único presente: chamar-lhe-emos presente de ubiquidade. É ele que torna possível a nossa acção quotidiana e que o vivido de toda a presença não se esvaia no instante que passa mas dure no presente. É ele então que surge como condição de possibilidade de todos os presentes (vividos) empíricos ou cronológicos. É um presente transcendental. Sendo transcendental é virtual, actualizando-se no que o exprime, o presente empírico de ubiquidade. Há pois dois presentes de ubiquidade, um transcendental, que atravessa e sobrevoa todos os presentes que passam; e um empírico, vivido, inscrito na sucessão do tempo das coisas.
Seriemos algumas características do contemporâneo transcendental: 1. é virtual; 2. supõe uma temporalidade inconsciente, já que, pelo contrário, a experiência actual (ou empírica) do contemporâneo de ubiquidade vai de uma presença visível a outra presença visível, sempre no mesmo plano; 3. O “contemporâneo” como presente de ubiquidade é um tempo colectivo. “Ser contemporâneo de” supõe duração e uma multiplicidade virtual de laços que segregam um tempo contínuo. A relação de contemporaneidade entre dois seres multiplica-se porque cada ser tem o seu próprio universo de relações. Neste sentido, é a ligação entre dois acontecimentos (pelo menos) que tece o tempo que define o contemporâneo, e não o contrário: não é a natureza ou “essência” contemporânea de cada acontecimento que cria a duração da contemporaneidade. Porque, se um acontecimento é dito contemporâneo, é porque se estabeleceu, ao acontecer, essa ligação com os outros acontecimentos - é ela que transforma os acontecimentos em “contemporâneos “ uns dos outros.
O contemporâneo supõe uma conexão e essa conexão é que define o tempo da contemporaneidade (como presente de ubiquidade transcendental). De que tipo deve ser essa conexão para que nasça o tempo do contemporâneo? Essa conexão , como vimos, tece um tempo colectivo contínuo, uma duração colectiva, mas com uma característica particular: 4. a colectividade contemporânea existe de direito. É o laço de contemporaneidade que legitima o direito à presença de cada ser no presente. Neste sentido, ele realiza a coesão da comunidade, construindo, com um fio invisível, o direito de cada um de pertencer e preservar o espaço e o tempo de todos. O contemporâneo é o que, no presente, faz de nós presenças de direito. O espaço comunitário abre-se virtualmente a todo o novo membro que nele entra por direito total a priori. O que exclui, em princípio (mas não de facto) toda a discriminação, todo o interdito de existência. O contemporâneo é pois o tempo de todos. E porque é que é um tempo colectivo de direito? 5. Esse tempo colectivo surge fazendo efracção no presente comum e afirmando um presente mais presente do que o presente vivido. O que é um presente mais presente do que outro? È um presente que, ao surgir, evidencia o seu direito (ou a sua potência maior) de impor as suas novas linhas de tempo (através de novas conexões), as suas ligações próprias com o passado e com o futuro. É o que fez com que as Demoiselles d’Avignonse afirmassem mais “contemporâneas” (dos homens, da cultura e da arte do seu tempo) do que a pintura de um Utrillo, por exemplo. O contemporâneo vai de encontro aos desejos subterrâneos, não ainda expressos, do presente – mas que vão comandar o futuro e as novas relações com o passado. O que significa que o contemporâneo contém virtualmente, pela multiplicidade de conexões e agenciamentos que o definem, uma força de vida mais potente e diferente daquela, entrópica que rege o presente empírico contra o qual se afirma (é a inactualidade, a intempestividade do contemporâneo).
Assim o contemporâneo é um tempo que se tece, não existindo como um tempo dado. É na irrupção do contemporâneo transcendental (presente de ubiquidade virtual) no presente de ubiquidade empírico, vivido, que se constrói a contemporaneidade como um tempo novo e inaugural que se afirma rejeitando para o passado o presente desgastado do quotidiano. Essa irrupção violenta faz passar o tempo, introduzindo a diferença no tempo liso, repetitivo, da vida empírica banal, “sem diferença”. O contemporâneo cria a diferença e, com ela, a descontinuidade e a passagem do tempo. Por isso a duração da ubiquidade transcendental do contemporâneo é paradoxal: ela dura mas numa descontinuidade permanente, abrindo-se constantemente em rupturas e intervalos. Porque rejeita o passado, faz escoar o presente empírico; porque abre uma cisão e uma distância nesse presente, acolhe um novo futuro. E sua própria ubiquidade no tempo da cisão prolonga-se numa continuidade presente-passado por um lado, e por outro presente-futuro. Assim se formam os limites indefinidos do tempo presente do contemporâneo: dos dois lados da continuidade, uma descontinuidade que faz o tempo passar. De tal maneira que a continuidade dura porque, nos seus bordos, ela passa – passagem que é também passagem do transcendental ao empírico. (Por isso, uma obra de arte que inaugurou um tempo de contemporaneidade tem sempre uma parte que desliza para o passado e outra parte que se abrirá sempre para um novo futuro – para um novo contemporâneo).
O presente de ubiquidade (enquanto transcendental que atravessa o empírico) dura porque passa. E passa porque a irrupção violenta do contemporâneo no empírico inaugura o tempo nele inscrevendo uma diferença, uma descontinuidade. A diferença marca a distância do tempo próprio do contemporâneo, fonte de um dos seus paradoxos maiores: a sua continuidade descontínua.
Consideremos um exemplo de construção da temporalidade do contemporâneo: o tempo da paixão ou melhor, do amor-paixão. Voltado para o futuro, alimentando-se a cada instante do passado, visa essencialmente a continuidade, no presente, da sua própria intensidade. Visa um presente de ubiquidade intensivo, o que leva os amantes a criar acontecimentos que quebrem o tempo diferenciando-o. Procuram incessantemente produzir acontecimentos, e tudo serve para se tornar acontecimento e provocar a diferença. É a condição para manter a exaltação do seu amor. O pormenor mais banal é intensificado, intensivamente transfigurado para romper a monotonia e a entropia sempre ameaçadoras. Por isso eles estão sempre a produzir acontecimentos e acontecimentos de acontecimentos, reactivando e falando sempre (e continuamente) do seu amor, fazendo desse discurso um acontecimento que se redobra sobre si próprio indefinidamente. É como uma espécie de criação contínua do presente intensivo que tece assim uma continuidade descontínua por repetição do gesto de cisão que instaura o tempo inaugurando a contemporaneidade do seu amor (o presente mais presente que todos os presentes). Os amantes são contemporâneos por excelência: contemporâneos um do outro, são contemporâneos do mundo porque o contêm por inteiro. Não estão no tempo da história e das coisas, eles segregam o seu próprio tempo que tende a perturbar o tempo objectivo. Nesse sentido, a actualização do virtual do amor-paixão equivale à construção do presente de ubiquidade e ao tecer da continuidade infinitamente descontínua da paixão, na sua inquietação permanente. Que querem os amantes do amor-paixão? Que o tempo empírico, trivial, atónico se transforme em tempo apaixonado. Querem transformar o mundo e a história, modificando o presente e as suas linhas de futuro. Eis porque são inactuais e intempestivos, eis porque são nietzscheanos.
Se o contemporâneo inaugura uma cisão no tempo por onde irrompe, ele transforma as relações entre os seres e entre as coisas. Esta efracção no mundo repetitivo visa deixar passar a vida, criando signos e formas por onde circulem sem entrave as forças vitais que pediam que se abrisse caminho à sua expressão. Porque as antigas formas se tornaram um obstáculo ao fluir das forças. O contemporâneo é assim um tempo de intensas metamorfoses. E o que exprimem, essas novas formas? A mais forte presença do presente.
Enquanto tempo da intensidade das formas, o contemporâneo exige que o maior número de novas conexões se estabeleça. Nesse sentido, o movimento de formação do contemporâneo (efracção, ruptura e diferenciação intensiva) abre os corpos, deixando-os na sua possibilidade máxima de afectar e ser afectados. “Abrir o corpo” é intensificar os seus afectos e perceptos de modo a receber e emitir também o máximo de partículas virtuais dos outros corpos. (Não esquecer que todo este processo tem um nexo singular: não é qualquer tipo de partículas, não é qualquer abertura de corpos que um tempo do contemporâneo exige, quando a vida empírica entrópica aprisiona a força da vida. Cada presente, cada sequência temporal tem a sua lógica singular de circulação de forças. Les Demoiselles d’Avignon não poderiam inaugurar uma contemporaneidade pictural no século 19 nem no ano 2000). O tempo do contemporâneo é pois um tempo privilegiado de abertura de corpos ao mundo, de tal modo que os corpos entram em conexão imediata através de intensidades inconscientes (forças inconscientes inscritas nos corpos). Daí o facto do contemporâneo afectar todo o domínio do empírico, transformando-o: uma maçã de Cézanne transforma qualquer maçã empírica, dando a ver para além dos sentidos (e, portanto, dos padrões convencionais do olhar pictural). Assim o tempo do contemporâneo acolhe todo o sensível, todo o quotidiano, todo o tempo cronológico, mas transforma-os e exprime-os num mundo outro.
O que é, então, um corpo contemporâneo (“contemporâneo de”)? Se os corpos dos amantes de amor-paixão são apaixonados, intensivos, exprimindo a sua mais poderosa singularidade, é porque o agenciamento que um estabelece com o outro abre nele as diferenças múltiplas que o tornam tão singular. A sua união não significa fusão numa identidade única ou num único corpo, mas acentua-se à medida que a sua diferença se afirma. Tornar-se o contemporâneo de um ou múltiplos seres, é construir um corpo intensivo diferencial e, através dele, participar com outros corpos no tecer do tempo de todos, do tempo que exprime as vocações das forças vitais subterrâneas de uma época.
Não exprime, apenas. Transforma. Mas como transformar o mundo e a história sem se confundir com eles e neles desaparecer? Como consegui-lo sem perder o seu poder de fazer brotar o tempo, com a sua intensidade virtual? Fazendo do tempo de transformação do mundo o tempo do devir, isto é, dos devir-outros que caracterizam o laço dos contemporâneos. Ser “contemporâneo de” não é um estado, mas um movimento, um devir. É atar com um outro um laço que permite a cada um deles de devir o outro, abrindo em si diferenças expressivas e intensivas – possíveis de criação que desencadeiam devires-próprios em cada um. É isso o devir-contemporâneo.
Transformar o mundo não significa mudar o curso da história, mas nele inscrever os múltiplos tempos do devir. Ora, se o tempo do devir-“ser-o-contemporâneo-do-mundo” se define pelo poder de fazer nascer o tempo (dos acontecimentos), então pode dizer-se que o gesto (a acção) dos contemporâneos supõe um plano – aonde se conectam os mais diferentes devires que, mesmo divergindo, consistem entre eles. Um plano de consistência ou de imanência dos laços de contemporaneidade à vida; e da vida à história e ao tempo cronológico-empírico modificado. “Ser contemporâneo de” é tecer o tempo novo nesse plano, desencadeando devires. Picasso, Matisse, Duchamp, apesar e por causa das suas diferenças e por elas coexistirem no mesmo plano de imanência do contemporâneo, são pintores contemporâneos: entraram em conexão através das suas obras e dos seus corpos de sensações picturais – suscitando constantemente descontinuidades no tempo actual com as suas criações inactuais. Introduziram um outro tempo, uma outra continuidade temporal descontínua no tempo da história da arte onde experimentaram um sem fim de devires. Digamos que o tempo dos contemporâneos supõe corpos contemporâneos: e que estes são tais porque as suas conexões intensificam a sua potência ao ponto de provocar rupturas no tempo empírico vigente, nele instaurando um outro tempo que o transforma, o tempo do presente de ubiquidade transcendental. A transformação que daí resulta define o tempo do contemporâneo de uma época determinada.

2. Acontece que a nossa época - digamos, este tempo de que o nosso quotidiano empírico se reclama – tornou-se pouco propícia à construção de laços de contemporaneidade entre os corpos. E, no entanto, como já referimos, nunca uma época foi tão “contemporânea”, ao ponto de parecer encarnar, muito mais do que todas as outras, o tempo do contemporâneo.
Não há contradição entre estes dois factos. É que não se trata da mesma ideia de contemporâneo. Já não se é o “contemporâneo de”, é-se simplesmente contemporâneo, como de essência. E como um homem, um artefacto, a arte, assim a época se diz puramente “contemporânea”. O epíteto não caracteriza já uma relação, mas uma coisa. Tudo se tornou contemporâneo, não no sentido que acabámos de descrever – um tempo de conexões de acontecimentos que surgem quebrando o tempo empírico -, mas no sentido de uma temporalidade “objectiva”, um tempo resultante do movimento das coisas e corpos físicos. Nesse sentido, tudo se tornou “contemporâneo” porque tudo ganhou um sentido empírico, a realidade reduziu-se ao que se vê, na transparência do sentido tecno-científico que é o seu.. Deixámos de ser “contemporâneos de”, criadores do nosso tempo, para sermos todos co-existentes no mesmo plano em que cada um é apenas exclusivamente contemporâneo. O tempo é só um para todos, e é o tempo de um corpo sem espessura (não intenso, não aberto aos outros corpos).
Consideremos algumas condições dessa tão grande transformação que se operou no tempo empírico e que se impõe hoje tanto ao indivíduo como à colectividade. 1. O plano do presente empírico foi intensificado pela tecno-ciência. O movimento dos corpos no tempo cronológico impera, pela sua aceleração, como movimento do sentido – este desposando, pois, o puro deslocamento físico, com o seu princípio e o seu fim. A força dos corpos – que circulava no plano transcendental da vida e que, no regime anterior do contemporâneo, atravessava e transformava o empírico – foi sugada e substituída pela energia dos coisas físicas e das máquinas. 2. A globalização fez com que o presente empírico de ubiquidade se estendesse a todo o planeta, absorvendo cada vez mais as outras dimensões do tempo. O passado e o futuro tendem a desaparecer num único Presente que concentra em si todas as outras dimensões: já somos contemporâneos dos dinossáurios e em breve do Big Bang, enquanto a futurologia traz para o presente um futuro cada vez mais longínquo. Mas se somos contemporâneos dos dinossáurios é porque eles se tornaram simplesmente “contemporâneos” (como nós o somos), entrando no Presente englobante. A tendência é clara: trata-se de tornar empiricamente presentes todo o passado e todo o futuro. Reduzir o tempo ao presente, tornar a ubiquidade absoluta e planetária é controlar totalmente o tempo (afastando a ameaça, cada vez mais próxima, da caotização do tempo). Esta ubiquitização global numa única dimensão do tempo – o Presente -, eis o que tornou possível o deslocamento do sentido do “contemporâneo”. Como somos contemporâneos de tudo – do passado e do futuro – e tudo é presente, somos apenas “contemporâneos”, porque tudo é contemporâneo e presente. “Ser contemporâneo de” passou a ser uma redundância: por isso o “de” caiu. 3. Para que a condensação das dimensões do tempo se tornasse possível, foi necessário, primeiro, que a distância entre o transcendental e o empírico que alimentava o tempo do contemporâneo anterior (com a irrupção do 1º no 2º) tendesse a anular-se num só plano: o das imagens. Mas as imagens (soltas, que sofreram uma imensa desterritorialização) não formam um plano intercalar entre o movimento das coisas empíricas e o das forças de vida transcendentais. Ao erigir-se enquanto novo plano de consistência, ele rebate-se sobre o mundo físico do movimento dos corpos, transformando-o em imagem física, em imagem empírica e absorvendo o mundo físico das intensidades virtuais ou (forças transcendentais). A tendência é para a existência exclusiva de um só plano, o das imagens empíricas.É pois agora o plano destas imagens que é energeticamente forte, enquanto os corpos reais se esvaziam de forças. O único mundo é agora o das imagens empíricas, e é porque tudo se tornou imagem que tudo se tornou empírico, que a realidade como imagem se pode condensar no Presente único: o passado é pura imagem arquivada, como o futuro o é. O presente – de ubiquidade planetária, que engloba todo o tempo - é uma biblioteca universal de imagens.
Para que isto fosse possível foi necessário uma imensa desterritorialização das imagens. Elas foram arrancadas dos seus contextos, dos seus referentes, colocadas em espaços virtuais, misturadas, mutiladas, servindo as mais variadas funções e tecnologias. Aliás as novas tecnologias da comunicação e da informação contribuíram poderosamente para essa grande desterritorialização da imagem e para a globalização (em tempo real) da ubiquidade. O próprio corpo tende cada vez mais a reduzir-se a uma combinação de imagens.
O plano das imagens empíricas como (falso) plano de consistência é o plano da energia máxima, que supõe um tempo único – o Presente contemporâneo – que passa dentro de si, apenas. A intensificação e aceleração desse movimento corresponde a uma crescente invasão do caos, tanto do tempo (“saído dos seus gonzos”) como do espaço (desterritorialização sem “fora”, para lá do presente empírico). Mas um espaço de desterritorialização quase absoluta que se reterritorializa na imagem (e não numa Terra). Como mostram Toni Negri e Michel Hardt, vivemos num espaço infinitamente aberto mas sem Fora que oferece cada vez menos possíveis existenciais. Espaço aberto que aprisiona.
Esse espaço e esse tempo do plano empírico exclusivo de hoje tomaram o lugar da contemporaneidade transcendental. Uma grande subversão, já referida, operou-se: é o plano, agora, que circula com a energia máxima a qual, como força vital de conexão e devir, fluía anteriormente nos corpos; é ele que se desloca com uma velocidade extrema, arrastando coisas e seres, sugados por imagens. O plano tornou-se intensivo e os corpos esvaziados ou espectrais.

3. Estas grandes transformações no tempo do contemporâneo afectam particularmente o campo da arte. Porque este – mais do que outros – é como uma caixa de ressonância das mais finas vibrações, forças, tendências subterrâneas que formam precisamente o contemporâneo de uma época; e porque nele as forças do artista visam com a obra a formação de um plano de imanência (arte-vida), é-nos aí indicado de modo pregnante as lógicas espácio-temporais que modificam o viver dos homens.
Na impossibilidade de descrever com algum detalhe as múltiplas características da arte dita “contemporânea”, limitemo-nos a dois aspectos que aparecem em ligação com o “tempo contemporâneo” de hoje, tal como acabámos de o analisar.
Começaremos precisamente pela questão da imanência. Lembremos que os artistas das vanguardas e do modernismo do século 20 norteavam as suas práticas por um princípio: “fundir a arte na vida”. Queriam acabar com o fosso que separava o real empírico, a sociedade e a história (“a vida”) da sua própria produção (“a arte”). Queriam que a vida, enquanto vida trivial quotidiana se tornasse estética. E para tanto tentaram construir (artistas individuais como correntes ou movimentos) um plano de imanência que unisse os dois pólos. Toda a arte moderna até, pelo menos aos anos 90, se esforçou para construir múltiplos planos de imanência (com os readymade, com a landart e a bodyart, com a arte pública, o design, com as instalações, a performance, a dança – e no próprio campo da pintura – v. toda um trajecto, não-linear, que vai de Malévitch ou da Bauhaus a Pollock, por exemplo).
Por outro lado, foi no século passado que começou a desterritorialização das imagens que vai permitir a formação do novo plano de imanência da arte contemporânea: o plano de imagem. Ironicamente, a arte contemporânea parece querer terminar o trabalho começado pela arte moderna, mas invertendo o seu movimento de construção da imanência. Já não se trata de mudar a vida e a arte para que as duas se possam unir dissolvendo os dualismos, mas de acentuar um dos pólos – o da vida física – graças ao plano da imagem empírica. Estamos em vias de realizar a imanência da arte à vida (e do espírito ao mundo material) através da imagem. Como? Não como os modernistas, transformando a natureza empírica dos corpos (e inteligível do espírito) numa outra textura intensiva material-imaterial, mas reduzindo toda a realidade à exclusiva virtualidade da imagem. Mas de uma imagem empírica: rebate-se a vida sobre o plano da imagem e a obra inscreve-se nesse plano. Os corpos humanos de ferro de Gormley em pé, no Tamisa, ou os nus de Vanessa Beecroft dentro de uma sala (VB 46, 2001), ou a fotografia hiperealista de tantos artistas, puxam a realidade para a esfera da imagem. A Cloud Gate, escultura de Anish Kapoor, em Chicago espelha a cidade envolvente em toda a sua superfície, condensando-a numa miríade de imagens. A tendência do monismo empírico da arte contemporânea consiste em rebater o real sobre a imagem – transformando interiores de palácios, com os seus objectos de outros séculos, em imagens contemporâneas. É uma falsa imanência porque as imagens que circulam no plano perdem em geral intensidade não transformando, afinal, a vida real (por exemplo, as instituições museais tão combatidas pela arte moderna nunca tiveram tanta força como hoje).
E a imagem empírica vem de qualquer espaço e de qualquer tempo, inserindo-se em qualquer contexto: é o Presente único, da imagem empírica que concentra todas as dimensões do tempo (a arte contemporânea pode utilizar toda a espécie de imagens da história da arte). A desterritorialização das imagens permitiu este abertura indefinida da obra de arte contemporânea: é a condição para que se possa conectar com qualquer outra sem criar um contexto novo definidor (um território). No fundo, porque pode pertencer a um qualquer contexto, a imagem contemporânea é definitivamente sem contexto, desterritorializada (como se vê bem, por exemplo, nos retratos fotográficos, ou na arquitectura –v. a Casa da Música, do Porto, de Rem Koolhaas ou o Museu Guggenheim, de Bilbao, de Frank Gehry).
Uma particularidade dessa imagem: não reenvia a nenhuma outra imagem nem a si própria, a nenhum referente (como a imagem da arte moderna), a nenhum sentido escondido, a nenhum invisível. O seu sentido está em toda a sua presença e esgota-se na evidência dessa presença. Na terminologia de Peirce diríamos que é uma imagem sem “interpretante”, sem signo intermediário que dê um sentido. Podia-se chamar à imagem para que tende a arte contemporânea uma imagem-não-signo. Daí a sua hiperpresença exclusiva (porque totalmente inclusiva).
O segundo aspecto característico da arte contemporânea que evocaremos diz respeito ao corpo. Se olharmos para trás, a arte moderna acentuou todo um lado da transformação do espectador e do autor que vem de longe, com o fim da câmara escura definindo a relação sujeito-objecto (como o mostra Jonathan Crary). De um modo geral, a modernidade do século 20 continuou a história da dissolução do sujeito-autor e do abalo do espaço objectivo do corpo-olhar do espectador (por exemplo, com o fim da linha de terra no abstraccionismo -v. a invenção do espaço estratosférico do não-objecto em que se situa o pintor-espectador suprematista - ou o fim da verticalidade do corpo e do suporte em Pollock ou Dubuffet). Apesar de todas estas transformações, o objecto de arte supôs, salvo raras excepções, um observador mediano situado numa escala média do espaço.
A arte contemporânea pretende acabar definitivamente com a obra-para-um- espectador-mediano. De três maneiras, pelo menos: 1. construindo corpos que impedem toda a identificação com o espectador (híbridos, monstros, interiores de corpos visíveis, esqueletos, escorchados, corpos mutilados, corpos esvaziados, corpos nus descontextualizadamente adornados, tatuados, corpos inidentificáveis por operações (Orlan) ou próteses (Sterllac). 2. Sobretudo a apresentação do interior dos corpos (Mona Atoum e todos os que se lhe seguiram), em Raios X, Tacs, angiografias, mas também em corpos reais tratados para isso, transportam o olhar do espectador para o espaço interno do corpo, vendo o interior a partir do interior, o que constitui uma maneira sofisticada de virtualizar o espaço e mudar-lhe a escala. Já não há espectador mediano porque no interior do corpo deixa de haver coordenadas de orientação e uma escala fixa. 3. Esta virtualização do espaço resulta também da amplificação da escala do corpo, no espaço a 3D, criando artefactos ou corpos monumentais (Ron Muecke). Destrói-se assim a própria instância de um corpo-espectador situado num ponto determinado do espaço. Este torna-se virtual e o corpo-visão (que era também um corpo-audição e um corpo-táctil) dissolve-se nele. O corpo do espectador situado num espaço referenciado, com um ponto de vista fixo olhando para um objecto ou uma imagem (numa tela, num ecrã) desaparece definitivamente (em princípio) no espaço da imagem virtual.
Nos dois aspectos referidos – na formação do plano de imanência como na dissolução do corpo do autor-espectador – a arte contemporânea termina, paradoxalmente, o trabalho começado pela arte moderna: paradoxalmente, porque com os mesmos resultados mas ao avesso, criando uma imanência que faz desaparecer a vida dos corpos.
A verdade é que estes “resultados” não definem a arte contemporânea, porque são sempre impuros, nunca exclusivos. Nem se produz apenas uma imagem-não-signo, o corpo real não desaparece completamente, a virtualização do espaço não absorve o espaço real, a vida não é totalmente absorvida pela imagem, o contemporâneo da imagem empírica não constrói um Presente ubíquo absoluto. A arte contemporânea constrói sempre, no que ela tem de melhor, uma tensão entre os dois pólos que tendem a fundir-se na imagem, tensão de um espaço-entre por onde passa a vida. The New Barbarians (1997) de Tim Noble & Sue Webster são símios humanizados ou antropóides simiescos? Impossível de decidir – como em tantos híbridos da arte moderna. E aquilo a que chamámos a imagem-não-signo caracterizando a imagem da arte moderna nunca deixa de reenviar inconscientemente para o que quer obliterar sem o dizer: ao contemporâneo não empírico, a um outro tempo diferente do actual físico, criador de vida. A imagem impura da arte contemporânea vive afinal da ruptura-laço dessas duas dimensões do contemporâneo do nosso tempo. Não é o que nos dizem as imagens de Family Tree (2001) de Zhang Huan, mostrando o desaparecimento progressivo de um rosto sob a proliferação de signos da escrita chinesa, como se se tratasse de uma doença da pele? No fim da série de imagens, uma vez o rosto completamente coberto de negro – tornado imagem-não-signo -, a pura presença desse não-signo entra em tensão com o que não conseguiu apagar, os olhos e o olhar. É ainda um rosto ou apenas um signo-não-signo? Espécie de híbrido impossível de classificar. Híbrido também do tempo (empírico, físico da tinta-signo) da multiplicação dos signos sobre o rosto, e da impossibilidade de o dissolver, como um raio de vida (não-empírica) que irrompe na escuridão.