Nascer, cuidar.
Pensamento e criação.

Maria João Mayer Branco

 

Aos que vão chegar

No interior do edifício de uma companhia de seguros em Lisboa, uma pequena câmara acolhe temporariamente obras de artistas portugueses. Oferecem-se por algum tempo à atenção de quem os surpreenda, como um parêntesis na luz diurna da vida da cidade. Ali vi há pouco discretas sombras femininas. Brilhavam na obscuridade, convidaram-me a entrar também na roda. Não estava sozinha; embalada e embalando, fui movida À distância. E começámos a dançar.

Eu tomo conta do mundo.
Numa crónica do dia 4 de Março de 1970, Clarice Lispector definiu a tarefa do artista como um tomar conta do mundo1 . Descreve-a como um esforço de ver, evocando o lugar de contemplador do espectáculo das coisas. Este olhar, porém, não visa a contemplação do todo, a integralidade do espectáculo cuja visão requereria, não apenas um recuo, um distanciamento, mas o ponto de vista de um deus, para sempre isolado da cena que concebeu, contemplando o mundo “como um todo limitado”2 . Pelo contrário, embora se retire, necessária e pontualmente, de cena, o artista quer ver o mundo onde está. O que ele vê não é o mundo como um todo limitado, mas “a magnificência de cada objecto”3 (Lispector fala de árvores, meninos de dez anos, milhares de favelados e formigas de cintura fina). O artista não é um contemplador divinamente solitário e impassível e não deixa intacto o mundo em que atenta. Assemelhando-se a um espectador, ele é também, como sublinha Lispector no mesmo texto, “uma pessoa muito ocupada”, pois tomar conta do mundo “dá muito trabalho”.
Nietzsche diria que a contemplação neutra ou passiva do mundo como um todo é uma ilusão. Que o contemplativo “imagina ter sido colocado como espectador e ouvinte diante do grande espectáculo de luz e som que a vida é (...) esquecendo com isso que é também o poeta que, na verdade, cria e recria a vida”4 . Trata-se, escreve ainda, de “ver e ouvir pensando” — um ver e ouvir que é “criador”, porque “faz continuamente qualquer coisa que ainda não existe”, ou seja, “o mundo que diz respeito ao homem”5 .
As obras de arte pertencem a esse mundo, ao mundo que, resultando do artifício humano, excede o tempo de vida de qualquer homem6 , recebendo os que nascem e sobrevivendo aos que morrem como se fosse sem princípio nem fim. Tal longevidade, porém, não corresponde a uma completude, a uma identidade que nada vem interromper. O “mundo que diz respeito ao homem” tem de ser começado e nunca está acabado. É, portanto, um mundo que pode morrer, pois está “contaminado, por assim dizer, pela mortalidade dos seus autores”7 .
Tomando conta do mundo o artista adia o seu fim, adia o fim do mundo “fazendo continuamente qualquer coisa que ainda não existe”. O seu “ver e ouvir pensando” são, por assim dizer, animados, dotados eles próprios de luz e som, de um movimento que se transmite às coisas e lhes dá uma espécie de vida — se é verdade que o pensamento é uma espécie de vida8 e também “a fonte imediata das obras de arte” 9. Quer dizer que, vendo e ouvindo, o artista torna, por sua vez, visível e audível aquilo que contempla, como se o que está prometido às cinzas pudesse “irromper em chamas”10 . Vendo e ouvindo, o artista dá, por sua vez, a ver e ouvir, libertando aquilo de que cuida para o que se poderia designar como a simples duração do seu aparecimento.
Qualquer zelo cuidador provém de um afecto, de um amor por aquilo de que se cuida e cuja existência se deseja proteger. E se é verdade que o amor transforma, quer dizer, não deixa intacto, cuidar ou tomar conta consiste menos na conservação de um estado de coisas do que no desejo de as manter vivas, de as animar ou acender para as suas possibilidades, ainda não conhecidas.

um início perene
Ainda Lispector: ao tomar conta do mundo, o artista assume uma tremenda responsabilidade — “Eu sou responsável por tudo o que existe.” E ainda: “nasci assim, incumbida”11 .
Nenhum artista domina o seu poder de fazer; pelo contrário, o artista serve esse poder, o talento de que não é responsável e que o torna imediatamente responsável. A responsabilidade do artista pode ser definida como “a perturbação da estabilidade de uma sociedade”12 . Ao fazer o que ainda não existe, ou seja, as obras de arte, o artista desestabiliza o mundo tal como o conhecemos, provando — no mínimo — o seu inacabamento. Por isso mesmo, enquanto fazedor e cuidador do mundo que diz respeito ao homem, ele é também um agente perturbador desse mundo, cuja ordem vigente a arte vem desestabilizar. O artista responde, assim, a uma “dupla exigência”: “representar o mundo e ao mesmo tempo torná-lo irreconhecível”13 . Interrompendo o que sabemos e conhecemos, as obras de arte obrigam-nos a começar de novo, a começar a ver e a ouvir, despindo-nos do que aprendemos, raspando a tinta com que nos pintaram os sentidos (Alberto Caeiro). A instabilidade para que nos convocam perturba as tentativas, hoje porventura mais funestas do que nunca, para estabilizar e normalizar as nossas experiências. Nela se mostra que o mundo que diz respeito ao homem está ainda sempre por fazer — que ele é incalculável.
A novidade da arte é radical: nascida e criada no mundo que diz respeito ao homem, nada desse mundo lhe equivale, nada a explica ou determina, nenhum significado esgota o sentido que cada obra não cessa de inaugurar. As obras de arte são novas na medida em que não são dedutíveis, deriváveis de nada do que existe, nisso consistindo, decisivamente, o seu valor. Pertencendo a este mundo — sendo “as mais mundanas de todas as coisas”14 —, elas são irredutíveis a qualquer outra coisa. Neste sentido, não se acrescentam ao que já existe como objectos entre outros objectos, com um lugar definido ou uma função determinada no interior de um sistema de relações previamente estabelecidas. A arte não se soma ao que já está no mundo, e em certo sentido ela subtrai-se até a tudo isso. A sua não é uma lógica de acumulação, mas de subtracção: nela soçobram as categorias que nos orientam habitualmente, em particular as categorias de utilidade, funcionalidade, finalidade, cujo sentido fica suspenso perante a estranheza de algo que não serve nada nem para nada. A inutilidade da arte é a sua liberdade. Ela indica uma espécie de avesso do mundo dos fins — o mundo dos começos ou o contínuo recomeço do mundo, a sua infância, o seu constante renascimento. Poder-se-ia, portanto, dizer que, fazendo coisas que ainda não existem, o artista continua o mundo por descontinuidade, servindo um início perene, nunca uma chegada seja ao que for (Herberto Helder).
A arte é inútil, não cumpre nenhuma função, não tem qualquer valor de troca. Ela desestabiliza pela aparente singeleza dos seus propósitos, quer dizer, porque é feita apenas para aparecer e durar. A arte é modesta em ‘objectivos’, pobre em ‘resultados’, não se multiplica, não traz vantagens ou ‘mais valias’, nem a quem faz, nem a quem a estima. E é justamente em virtude da ousadia desta modéstia que as obras de arte duram: não se esgotam nem se gastam, não podem ser usadas ou consumidas (embora possam, evidentemente, desaparecer). A sua durabilidade é resistência ao uso e à usura, à margem das quais a arte persiste15 . Ao mesmo tempo que traz instabilidade ao mundo de que cuida, a arte mostra aquilo a que Arendt chamou “a estabilidade do artifício humano”16 . A força desestabilizadora da arte revela, então, o que há de estável na humanidade: o gesto, sempre imprevisível, tantas vezes improvável, de fazer e refazer o mundo ao longo das gerações e que nas obras de arte “adquire presença tangível”, “fulgurante”.

Depending on the kindness of strangers
Pertencendo e criando o mundo que diz respeito ao homem, a arte está, como foi já dito, contaminada pela mortalidade desse mundo e dos seus criadores. Quer isto dizer que ela corre perigo de vida — que, tal como o mundo, também a arte precisa de cuidadores. Esta ideia talvez nunca tenha gerado mais equívocos do que numa época como a nossa, que se afadiga em promover aquilo que considera ser o âmbito artístico, transformado numa indústria específica, com um mercado próprio, regras de financiamento e produção e até públicos-alvo, tudo em nome de uma criatividade geral e da defesa dos consumidores da mesma. Entre as figuras que participam no equívoco destaca-se a do ‘curador’, a quem é institucionalmente reconhecido um saber especializado que supostamente o habilita a ocupar-se da gestão de obras de arte. Mas nem sempre este ‘curador’ toma conta da arte no sentido apenas ainda sugerido acima. Bem pelo contrário, ele é suposto servir o filistinismo17 vigente que subordina as obras de arte a fins que as excedem (divertir, edificar, educar, criticar, entreter, lucrar...), reificando o mundo tal como conhecemos em vez de o desestabilizar.
Numa época em que a sua liberdade parece mais ameaçada do que nunca, a arte tem de ser defendida das tentativas de subordinação que, aparentando o contrário, apenas potenciam, não a criação, mas a destruição do mundo que diz respeito ao homem. Tal defesa, contudo, não exige especialistas. Em bom rigor, ela não é sequer uma tarefa exclusiva dos artistas, os quais, aliás, tomarão conta da arte não apenas enquanto criadores, mas também na medida em que consigam suspender o impulso de criar. Ou seja, os artistas tomarão certamente conta da arte fazendo-a, mas também tendo a “coragem” de não fazer18 , quer dizer, mostrando que a criação não é um fluxo produtivo contínuo, que ela não é permanente, mas “intermitente”19 .
Dependendo de um talento que o artista não controla (que é um dom), a criação de obras de arte conhece pausas, momentos em que o fazedor dá lugar ao contemplador. São os momentos em que nasce o espectador que o artista também é, nele convivendo a diferença, a intermitência, entre olhar e fazer o mundo. O nascimento do espectador corresponde, portanto, a uma descontinuidade, a uma ruptura sofrida pelo movimento criador. Este último não é um contínuo uniforme e sempre idêntico, pois conhece contra-movimentos, quer dizer, tem um ritmo. O respeito deste ritmo, que não se pode antecipar e no qual consiste a intermitência da criação, cabe, na verdade, tanto ao artista como aos que acolhem as obras de arte, na medida em que esse acolhimento for verdadeiramente um tomar conta da arte, ou seja, uma forma de criação, um ver e ouvir pensando. Enquanto tal, tomar conta da arte implica a liberdade de não ver e não ouvir quando isso se reduz a uma assimilação passiva que em tudo identifica mais do mesmo, paralisando o pensamento. Tomar conta da arte corresponde, então, a reconhecer nela uma estranheza que perturba a passividade, solicitando e mobilizando sem fim.
Nascido da instabilidade que a arte traz à sua experiência e exercendo a sua própria intermitência, o espectador faz, por seu lado, nascer a obra como qualquer coisa que ainda não existe, que resiste a todas as tentativas de identificação, apropriação ou determinação. A obra de arte só existe na medida em que aparece, quer dizer, na medida em que alguém dá conta que ela aí está, sendo afectado pelo que ela lhe retira, pelo que ela lhe faz pensar. Ela não cessa de suscitar perguntas que nenhuma resposta resolve, suprimindo o enigma de uma aparição que tem tanto a forma de um “quem sou eu?” como a de um “quem és tu?”. Parecendo chamar-nos pelo nome (como diz, do amor, a canção), a arte vive na expectativa do nosso cuidado, da delicadeza de estranhos que não lhe impõem nenhum sentido ou familiaridade forçada, mantendo a distância indispensável para a emanação do seu fulgor. O estado nascente do qual nos cabe a todos cuidar.

 

1 Clarice Lispector, A descoberta do mundo. Crónicas, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1999 (pp. 275-276).

2 Ludwig Wittgenstein, Tratado lógico-filosófico, 6.45.

3 Palavras de Jean Genet sobre Rembrandt. Cf. Jean Genet, “Le secret de Rembrandt” in Rembrandt, Éditions Gallimard, Paris, 1995 (p. 25).

4 Nietzsche, A gaia ciência §301.

5 Nietzsche, idem.

6 Assim o define Hannah Arendt no ensaio “A crise na cultura. Seu significado social e político” in Entre o passado e o futuro. Oito exercícios sobre o pensamento político, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 2006 (p. 219).

7 Hannah Arendt “O conceito de história” in Entre o passado e o futuro. Oito exercícios sobre o pensamento político, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 2006 (p. 57).

8 É a tese de Aristóteles na Metafísica (1072 a 27).

9 Hannah Arendt, A condição humana, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 2001 (p. 208).

10 Hannah Arendt, A condição humana, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 2001 (p. 209).

11 Clarice Lispector, A descoberta do mundo. Crónicas, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1999 (p. 276).

12 Rui Chafes, Entre o céu e a terra, Assírio e Alvim, Lisboa, 2012 (p. 49).

13 Jean Genet, “Le secret de Rembrandt” in Rembrandt, Éditions Gallimard, Paris, 1995 (p. 33)

14 Hannah Arendt, A condição humana, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 2001 (p. 207).

15 Acerca da ideia da persistência da arte (e, muito em particular, da persistência da noção de obra de arte), cf. o volume organizado por Tomás Maia, Persistência da obra. Arte e política, Assírio e Alvim, Lisboa, 2011.

16 Hannah Arendt, A condição humana, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 2001 (p. 208).

17 A este respeito, cf. Hannah Arendt, “A crise na cultura. Seu significado social e político” in Entre o passado e o futuro. Oito exercícios sobre o pensamento político, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 2006.

18 É o que afirma o realizador Pedro Costa numa entrevista recente: “Há filmes que devem ser feitos e outros que não devem ser feitos. Eu acho que há cineastas que não têm a coragem de não fazer filmes. Há cineastas que se dizem sempre: «Tive a coragem de fazer ou é precisa a coragem para fazer um filme», mas nunca a coragem de não fazer o filme. Eu prefiro a coragem de não fazer alguns filmes, alguns que eu vejo que não vale a pena. (…) se eu sinto que não tenho energia posso parar. E esse é um luxo que o cinema não tem, não pode parar. Eu acho que parar máquinas aí é um luxo. (…) Apesar de tudo, podemos pará-lo quando quisermos e o cinema nunca pode parar, como os mercados, não?, Não podem parar. E eu páro, eu páro. Eu posso não fazer um filme e não faço.” Disponível em http://cineclubedecompostela.blogaliza.org/files/2012/12/entrevista-Costa.pdf

19 A este respeito cf. Marie-José Mondzain, Homo Spectator, Bayard Éditions, Paris, 2007 (p. 242).