O museu, o culto das imagens, o culto dos objectos.

Paulo Varela Gomes

 

Este artigo divide-se em duas partes. Na primeira, essencialmente historiográfica, procuro resumir as diferenças mais importantes entre aquilo a que Hans Belting chama o museu burguês, característico do século XIX e dos primeiros dois terços do século XX, e o tipo de museu designado por museu capitalista por Paul Werner e Boris Groys. A segunda parte, mais próxima da área dos estudos museológicos, tem como objectivo chamar a atenção para um fenómeno recente, relativo ao comportamento místico ou religioso de alguns frequentadores dos museus ou exposições, fenómeno este de que me apercebi na instalação Weather Project de Olafur Eliasson (Londres, Tate Modern, 2003) e que creio indiciar uma mudança cultural na relação das pessoas com os objectos rodeados pela aura museográfica provinda do museu burguês.

O museu burguês é o museu criado pelo estado burguês no início do século XIX ou por particulares que o tomam como modelo. O público que este museu constrói é aquele que se comporta como sendo de classe média ou média alta, quer o seja de facto, quer não, e que se submete ao sistema de conhecimento e informação criado pelos aparelhos escolares dirigidos pela burguesia, entre os quais o próprio museu. Os teóricos mais importantes deste museu foram, no momento em que apareceu, Quatremère de Quincy e, no momento em que entrou em mutação, André Malraux.
Antoine Chrysostome Quatremère de Quincy (1755-1849), enciclopedista, teórico da arquitectura, museólogo, formulou a primeira teoria dos museus precisamente na altura em que estes estavam a renascer na Europa, mais de mil anos passados sobre a extinção dos museus originários, os da Antiguidade.
Quatremère de Quincy escreveu as suas ”Considerações morais sobre o destino das obras de arte” cerca de 1805, mas a obra só pôde ser publicada depois da queda de Napoleão em 1815 porque o seu argumento principal gira em volta da pilhagem sistemática da obras de arte pelos exércitos franceses em Itália e o papel desempenhado por estas obras, e pelas que foram expropriadas pela Revolução em conventos, igrejas e palácios, na criação do museu por antonomásia, o Louvre.
A expropriação está na origem do museu burguês. Em dois sentidos: sem a pilhagem de objectos tanto no Ocidente como nas colónias das potências ocidentais não teriam existido as duas versões do museu burguês, o museu de arte e o museu etnográfico. Em segundo lugar, para integrarem o museu, tais objectos foram expropriados das suas propriedades cultuais ou utilitárias, e das propriedades físicas e simbólicas do sítio e da cultura para onde foram originalmente concebidos.
Quatremère de Quincy elaborou a teoria crítica desta dupla expropriação. Segundo ele, as obras de arte, que eram tanto mais convincentes e genuínas quanto mais úteis e necessárias fossem do ponto de vista religioso ou social, e mais próximas das condições que lhes deram origem, viam ser cortados os seus laços com essa realidade originária e eram “desdeificadas” (ed. 1989: 15). Para os românticos, ou seja, para os primeiros homens e mulheres da Idade Moderna (no sentido que Foucault deu ao termo: a idade pós-clássica), o interesse estético residia no “mundo real” e não na arte (Boris Groys, 2010: 13). Quatremère de Quincy estava mais interessado nas obras colocadas nos seus lugares de origem porque, para ele, aquilo que permanece nesse lugar é “mundo real” e não arte.
Outra crítica que dirigiu à instituição museográfica foi a de que esta impede a necessária distinção entre obras, levando, pelo contrário e necessariamente, à comparação entre elas. Segundo De Quincy, obras colocadas em comparação umas com as outras acabam por se equivaler em superficialidade, tal como sucede com a moda exibida nos salões. Na sequência desta ideia, aludiu à náusea que hoje experimentamos ao visitar os grandes museus, uma náusea que poderíamos dizer semelhante à de um flâneur Baudelairiano que fosse obrigado a prestar atenção precisamente àquilo que não quer que lhe detenha o olhar, a banalidade urbana. De facto, Quatremère de Quincy anteviu o museu como o prolongamento da rua, muito antes de a rua ter sido transformada em museu, ou seja, muito antes de a esfera pública ter sido conquistada pelo design (termo escolhido por Boris Groys, 2010: 21-36), assunto a que voltarei adiante no texto. “Todos já tivemos ocasião, escreveu Quatremère de Quincy, de comparar as impressões confusas, descontínuas, incoerentes que as colecções numerosas despertam em nós com a sensação plena, tranquila e inteira que nasce de uma bela obra vista num lugar apropriado ao seu objecto” (ed. 1989: 64). Percebe-se que De Quincy escreveu em nome da integridade e da plenitude, valores da Idade Clássica. Nesse como em outros sentidos, este primeiro teórico dos museus como instituição moderna foi também o último teórico da arte no sentido clássico.
A contribuição teórica de Quatremère de Quincy pode, portanto, ser resumida em dois pontos. O museu moderno resultou de, e acelerou, o desvanecimento da aura da unicidade de cada obra de arte (De Quincy é um óbvio antecessor de conhecidas teses de Walter Benjamin); com a unicidade, desapareceram tanto a sacralidade como a pertinência social e política das obras, e desfez-se a associação entre estilo e origem religiosa ou social, passando os estilos a definir-se por razões meramente formais provenientes da comparação a que o museu obriga. Da comparação entre obras resultou a importância da história da arte para a formação do campo museológico no século XIX: a história tornou-se o horizonte de pensamento da arte e da etnografia.
A história da arte como disciplina moderna surgiu nos escritos de Winckelman (1717-1768) no decurso do mesmo processo de mutação cultural que levou à inauguração dos museus que antecederam imediatamente o museu burguês, as galerias papais em Roma, e afirmou-se em termos contemporâneos quando, ao dispositivo museu, que os historiadores e os seus alunos visitavam, veio juntar-se o dispositivo fotografia. Um dos fundadores da história da arte como a entendemos hoje, Heinrich Wölfflin (1864-1945), utilizava nas suas aulas dois projectores de imagens de modo a poder comparar os seus exemplos – recriando, através desse processo, o conjunto de diferenças museográficas sem as quais não há historicização da arte.
No auge da fortuna e da fama do museu burguês, André Malraux (1901-1976) publicou em 1946 “O Museu Imaginário”, um dos mais conhecidos e influentes livros sobre o dispositivo museológico e a arte, passando ao lado das reflexões de Quatremère de Quincy e criticando implicitamente, num tom optimista e até jubilante, uma parte das suas teses.
Malraux conheceu Walter Benjamin e estava familiarizado com o seu pensamento (Hal Foster, 2006: 74), mas em tempo algum concedeu que fosse aceitável a tese Benjaminiana da reprodução como oposta à autenticidade. A sua ideia principal é que a fotografia veio “substituir a obra-prima pela obra significativa e o prazer de admirar pelo de conhecer” (ed. 1960, I: 15).
Se onde Malraux escreve fotografia lermos museu, estamos perante uma ideia que Quatremère de Quincy podia ter subscrito no quadro da sua teorização do museu como lugar de comparação e não de contemplação, lugar de conhecimento e de arquivo e não de culto. De um certo ponto de vista, a deslocação de um objecto para o museu é o mesmo que fotografá-lo, diria De Quincy se conhecesse a fotografia.
A fotografia já existia como dispositivo teórico muito antes de ser um dispositivo mecânico: corresponde, desde a camera obscura dos artistas e pensadores do Renascimento, à captação de uma forma por uma espécie de espelho, e sua posterior fixação. O museu executa uma operação do mesmo tipo: reinstala, reenquadra e redefine um objecto. Aquilo que foi concebido e executado para um determinado lugar tendo em conta a sua utilidade religiosa ou social, não é aquilo que, uma vez expropriado da sua origem, vem a ser mostrado no museu. Para quem pensa como Quatremère de Quincy, o objecto musealizado é uma espécie de vestígio ou fantasma do objecto original.
Malraux, pelo contrário, pensou a fotografia como equivalente às obras e o museu propriamente dito como equivalente em termos de conhecimento a um museu “imaginário”, quer dizer, composto por imagens (fotográficas). Pôde assim completar teoricamente o que De Quincy anunciara: se o museu é um lugar de conhecimento, é indispensável falar-se de arte em termos históricos e só através da história é possível discutir, não apenas estilos, mas também a eventual diferença entre artes “maiores” e “menores”, e até as questões da arte global (de cujos estudos, hoje em voga, Malraux foi um pioneiro subestimado).
O museu burguês vem cedendo lugar ao museu capitalista à medida que se desmoronam à nossa volta como se não passassem de castelos de cartas as características definidoras não só das instituições que resultaram da luta de classes na sociedade burguesa (o parlamento, os serviços e espaços públicos), como de algumas instituições que a burguesia criou por si e para si mesma: seja, por exemplo, o museu.
O museu capitalista é o museu que funciona principalmente como uma empresa capitalista e não como um aparelho de conhecimento e de ideologia, o que tem como consequência mais importante o facto de se transformar num dispositivo de exibição, circulação e valorização dos objectos que expõe enquanto capital. Este museu é frequentado pelo turista cultural, e já não pelo burguês ilustrado ou o connoisseur, e é dirigido tendencialmente por especialistas em marketing, mais do que por museólogos ou historiadores. Serve frequentemente operações de reanimação urbana enquanto centro cultural, quer dizer, um dos dispositivos com que a sociedade do espectáculo e do consumo celebra e desculpa o desperdício de bens culturais.
Antes da crise do capitalismo que teve início cerca de 2008, o museu capitalista tendia a privilegiar a exposição temporária em desfavor da colecção permanente, num esforço de “captar públicos”, sem que as autoridades museológicas se dessem conta de que estavam, por sua vez, a ser capturadas por um público que não eram elas a fabricar, mas os media. Como escreveu Boris Groys (2010: 89), os museus oferecem arte temporária para quem não concebe nada que não seja temporário.
Instalada a crise, o museu capitalista passou a negociar exposições temporárias mais baratas e mais espectaculares, tentando prosseguir por outros meios a euforia museológica e expositiva que o caracterizou nos anos de 1990. Um bom exemplo é a exposição dedicada a David Bowie em curso no Victoria & Albert de Londres, um velho museu burguês que a direcção de Roy Strong na década de 1980 transformou num museu capitalista de alto perfil muito antes do Gugenheim ter sofrido idêntico destino às mãos de Tom Krens.
O museu capitalista traçou para si próprio o objectivo de ser popular. Os meios que tem posto em acção para tal fim (a exposição temporária, a exposição temática, a exposição blockbuster de valores consagrados, os ateliers disto e daquilo, as lojas) tratam efectivamente o povo como público, uma operação que Bertolt Brecht identificava com o nazismo (Paul Weber, 2009: 46). Quer dizer, os museus formatam uma opinião colectiva que faz economia de todas as diferenças entre pessoas e de qualquer paixão individual ou minoritária. Ao funcionarem para públicos “não especializados”, desautorizam e desencorajam o olhar especializado que podia, potencialmente, ser exercido por qualquer pessoa.
Sucede, porém, que a euforia que resulta destas operações de massificação do gosto e da vontade estética é por definição tão temporária como as próprias operações. Tem de ser constantemente reiterada, reinventada, reposta. O trabalho de Sísifo de directores de museu ou revista de arte, de curadores, é um trabalho absurdo. Seguindo o que Camus escreveu em 1942 sobre a consciência do absurdo enquanto único modo de a sua vítima aceder à tragédia, o povo e os operadores de arte que querem servi-lo não são figuras trágicas, antes patéticas: não têm consciência do absurdo da sua situação e actividade, recusando-se a perceber que é tão impossível preencher a “taxa de satisfação artística” do povo quanto é impossível ao museu sustentar a contínua fuga para a frente em busca de novidade e de crescimento que é característica do capitalismo, esse sistema eufórico-melancólico por excelência.
O museu burguês, ao triunfar como dispositivo de conhecimento e arquivo, permitiu a reprodução fotográfica das obras ou objectos que guardava. Neste sentido, acompanhou (se acaso não suscitou) uma tendência geral para a bulimia fotográfica contemporânea, manifestada pelo facto de toda a gente fotografar tudo porque tudo é considerado digno de registo, e confirmou o papel desempenhado pela fotografia enquanto generalização do dispositivo museológico.
Estas mudanças foram ampliadas pelo museu capitalista porque, ao funcionar para “públicos” não especializados numa lógica de mudança contínua, encontrou na internet a esfera pública onde se generaliza, mas também, paradoxalmente, onde é vítima dessa generalização. De facto, como escreveu Boris Groys, a internet desperta e estimula a criatividade popular contra a criatividade institucional do museu, da escola, das revistas especializadas. Tudo é arte e toda a gente é artista. O vídeo e a participação nas redes sociais tornaram-se os meios através dos quais as pessoas recusam o destino de se transformarem em público e são activas em vez de contemplativas. Boris Groys sustenta que as pessoas se apropriaram da arte no momento em que tudo foi transformado em design, desde a aparência pessoal à performance política (2010: 23-37; 135-151).
É por razões como esta que Andy Warhol, e muitos outros depois dele, se inventaram a si próprios como obra de arte. À falta de se transformarem em figuras de cera num qualquer museu de Madame Tussaud, há artistas que surgem como imagens ambulantes de si mesmos, integrando o contingente dos “famosos” – e ficando sujeitos a ciclos de popularidade melancolicamente efémeros. Só recriando-se a eles próprios enquanto obras de arte, conseguem os artistas emitir ocasionalmente sinais fortes e de alta visibilidade, para utilizar a linguagem de Groys, que considera que tais sinais são característicos do mundo dos gestos espectaculares na internet, gestos políticos, artísticos, ou político-artísticos como certas acções terroristas e militares (Groys, 2010: 118-119). Os artistas que persistem em evitar este género de perfil espectacular estão confinados à esfera dos sinais e gestos públicos fracos que é característica da arte genérica disseminada na internet (por analogia com a “cidade genérica” de Rem Koolhaas).
Todavia, até mesmo quando a “utopia”de Malraux é gloriosamente confirmada pelo Google Image, o Flickr, o Panoramio, e outros motores de busca semelhantes, culminando no Google Art Project que está neste momento a ser desenvolvido para permitir a cada pessoa tornar-se director ou curator de um museu ou exposição de imagens de alta definição (chamemos-lhe e-originais), até mesmo nestas condições, a reprodução não consegue eliminar o objecto original nem torná-lo redundante. Um Rembrandt não é a mesma coisa que um e-Rembrandt, não apenas por um ser a Coisa e o outro a imagem da Coisa, mas porque o dispositivo que permite a qualquer pessoa juntar e-originais é infinitamente mais elástico e rápido que o aparelho museológico e pode obedecer às mais variadas lógicas de agrupamento e comparação.
Tão pouco pode ser diminuída a aura das manifestações artísticas que são dificilmente pagináveis enquanto imagem (instalações, performances, projectos site-specific), embora não escapem à documentação e até seja esse o destino a que mais frequentemente aspiram. Ao escrever que Walter Benjamin se enganou quanto supôs que haveria uma “identidade material” entre o objecto e a sua cópia mecânica, Boris Groys (2008: 86-87) verifica que a documentação, incluindo a cópia fotográfica ou filmada, não faz senão aumentar a distância a que está o objecto ou ocasião únicos – intensificando portanto a sua aura. O documento não devora a existência ocasionalmente real da arte efémera. Vive, pelo contrário, da nostalgia de quem esteve presente e da imaginação aureolada de quem não esteve.
O momento mais intenso desta sacralização da arte em termos contemporâneos que tive a sorte de viver, ao mesmo tempo uma heterotopia que deslocou os participantes para fora do próprio clima, e uma epifania do poder presencial da arte, foi o Weather Project de Olafur Eliasson criado em 2003 na Tate Modern em Londres.
Eliasson fez colocar ao fundo da grande sala das turbinas da fábrica que deu origem à Tate Modern um semicírculo de fortes lâmpadas monocromáticas amarelas, encheu a nave de nevoeiro artificial, aumentou-lhe a dimensão para o dobro com espelhos colocados na cobertura – e estes espelhos transformaram o semicírculo de luz amarela num círculo completo, irradiante no meio do nevoeiro: um sol dentro de um gigantesco espaço fechado. Havia quem, ao entrar, caísse de joelhos. As pessoas olhavam umas para as outras, completamente iluminadas de amarelo, sem que se percebesse de que cor era a sua pele e a sua roupa, vultos amarelos que sorriam em absoluto silêncio. Outras pessoas deitaram-se no chão, de tronco nu.
Há muitas imagens desta instalação disseminadas pela internet. Tudo foi, portanto, apropriadamente reduzido a um documento museográfico. Mas a reacção das pessoas na altura mostrava uma evidente necessidade de adoração, de êxtase, muito distante da frieza conceptual ou da ironia com que se percorrem outras instalações.
Um fenómeno do mesmo tipo foi detectado há anos por Roberto Salizzoni numa nota de rodapé de um seu artigo (2006), referindo uma notícia publicada no “Le Monde” em Agosto de 2005, no qual alguns directores do museu do Louvre se pronunciavam acerca das pessoas cada vez mais “bizarras” que visitavam o museu, criando aí uma atmosfera “babélica”: visitantes que se prosternavam perante estátuas egípcias, outros que iam ver as pinturas de Leonardo da Vinci informados pela obra de Dan Brown. Em 2005, porém, a procissão ainda ia no adro: o próprio Louvre, na deriva para se transformar num museu capitalista, veio a criar um percurso de visita que segue o “Código Da Vinci”; os colégios de Oxford abriram-se aos visitantes que buscam os cenários da série “Harry Potter” e a Livraria Lello do Porto começa a cobrar entradas por idêntica razão, etc.
Ao ler a notícia retransmitida por Salizzoni, recordei a minha experiência dos museus da Índia, sobretudo aqueles que atraem centenas de milhar de visitantes vindos de regiões rurais: em Calcutá, como conta Mark Elliott (2012) e eu próprio testemunhei, os visitantes designam o museu por jadughar, a casa da magia, e prestam culto às imagens religiosas expostas para grande irritação dos técnicos que gostariam que eles se comportassem apropriadamente numa instituição apropriadamente moderna (criada na Índia pelo colonialismo ocidental, nem seria preciso acrescentar).
Este tipo de fenómeno não sucede apenas nas sociedades ditas atrasadas. Nos Estados Unidos, alguns museus começam a enfrentar sérios problemas com a exposição de imagens ou objectos considerados sagrados, porque parte dos visitantes não os encaram como obras de arte ou testemunhos antropológicos mas antes como testemunhos cultuais dignos de veneração (S. Bass, 2012).
Dir-se-ia que se trata de uma regressão no tempo e nos costumes. Salizzoni designou o fenómeno em 2006 como um regresso à “idolatria supersticiosa” do cristianismo, dos tempos do concílio de Niceia (final do século VIII). Mas, na mesma colectânea onde se publica o seu artigo, Hal Foster escreve que os próprios responsáveis pelos museus contemporâneos concluíram há muito que o arquivamento fotográfico das suas colecções e a disponibilização de cópias ao público não destitui as obras originais da aura da unicidade e autoria. Pelo contrário, dizem esses responsáveis, a reproductibilidade reforça a aura das obras e intensifica o culto do original: é por isso que multidões “bizarras” buscam no museu, e não em imagens fotográficas, a emoção do sagrado. Não devemos portanto falar em regressão, mas em digressão: há uma nova forma da aura do sagrado de certos objectos. As pessoas reinventam a sacralidade de objectos e actos pertencentes e documentados pelo aparelho museológico.
Todavia, a aura assim conferida já não é a aura do conhecimento ou do arquivo, ou seja, já não provém dos próprios museus mas de fora destes, essencialmente dos circuitos mediáticos. Quer dizer, a aura das obras resulta da vida religiosa e da vida política populares, esferas que a globalização, a internet, a televisão e o vídeo vêm tornando indistintas.
Mas resulta também do paradoxo inerente à operação de des-sacralização operada pelos museus: ao desligarem os objectos da sua origem cultual ou histórica, os museus são obrigados a insistir, ao mesmo tempo, na originalidade irredutível daqueles que lhes pertencem e na verosimilhança das cópias “mecânicas” de que autorizam ou promovem a circulação. O aparelho museológico, bem como os media, promovem os valores de autenticidade e realidade das imagens no mesmo momento em que reclamam para aquilo a que lhes deu origem a necessidade da presença.
O prestígio da autenticidade criou uma cultura da presença e do êxtase, ou seja, da confrontação directa de um indivíduo ou de uma multidão com objectos e ambientes religiosos, políticos, artísticos – uma cultura que leva à possibilidade da adoração sacral de objectos existentes nos museus e pode conduzir a uma crise das ideologias e práticas museológicas impostas pela burguesia ocidental a todo o mundo.

Agradecimento:
Ao António Guerreiro pelo apoio bibliográfico.
Ao Ivan Nunes pela critica implacável da primeira versão do artigo.

Títulos citados no texto
BASS, Samantha, Exhibiting the Sacred, dissertação de mestrado apresentada à George Washington University, 2012 (disponível em linha).
Belting, Hans, “Il Museo: riflessione o sensazionalismo?”, in Luisetti, Frederico e Maragliano, Giorgio (eds.), Dopo il Museo, Turim, Trauben, 2006: 209-224.
CAMUS, Albert, O mito de Sísifo. Ensaio sobre o Absurdo, (1942), Lisboa, Livros do Brasil, nd (1972).
ELLIOTT, Mark, Magic House: Sacred Space and Profane Behaviour in the Indian Museum (disponível em linha), 2012.
Foster, Hal, “Archivi di Arte Moderna”, in Luisetti, Frederico e Maragliano, Giorgio (eds.), Dopo il Museo, Turim, Trauben, 2006: 63-78.
Groys, Boris, Art Power, Cambridge Mass. e Londres, The MIT Press, 2008.
Groys, Boris, Going Public, Berlim e Nova Iorque, Sternberg Press, 2010.
KOOLHAAS, Rem, Hans Welermann, Bruce Mau, S, M, L, XL, Nova Iorque, The Monacelli Press, 1994.
Malraux, André, “ O Museu Imaginário”, in As Vozes do Silêncio, ii volumes, Lisboa, Livros do Brasil, nd (1960), I: 7-123.
Quatremère de Quincy, Antoine-Chrysostome, Considérations morales sur la destination des ouvrages de l’art (1815), ed. Paris, Fayard, 1989.
Salizzoni, Roberto, “La Chiesa e il Museo”, in Luisetti, Frederico e Maragliano, Giorgio (eds.), Dopo il Museo, Turim, Trauben, 2006: 51-61.
Werner, Paul, Museo S.p.A. La globalizzazine della cultura (Nova Iorque, 2006), ed. italiana com um posfácio do autor, Milão, Johann e Levi Editore, 2009.