ARTE SEM (CON)SOLO

Silvina Rodrigues Lopes

 

Na nossa época a designação “arte contemporânea” é muitas vezes usada para referir aquilo que na sua apresentação enquanto arte inclui elementos supostamente, ou consensualmente, tidos como pertencentes a uma condição artística pós-Duchamp. Outras vezes ela é usada para designar o que se pretende que seja arte criada ou produzida actualmente (na nossa época, definida como período mais ou menos alargado de tempo). Sobre esses usos pairam como uma atmosfera asfixiante projectos de esclarecimento total das artes, de modo a reduzir o que por tal se entende a funções bem definidas, a obter pela reciclagem de conceitos e de formas. É como resistência a uma tal ameaça que fazer arte, pensá-la, vivê-la, implica que nesses gestos a incerteza se afirme, que se retirem ao reconhecível – hábitos, conhecimentos instituições –, e por conseguinte não possam ser inteiramente dados: propriedades (o que é), funções (quando é) ou aprovações (gosto, história).
Das diversas actividades humanas, a criação artística é aquela onde a aleatoriedade é maior. Distinguindo-se como invenção, a arte testemunha o aleatório, a sua energia não dedutível que concorre para a necessidade da forma artística no seu inacabamento através do qual se dá a persistência da “forma” no movimento que a deforma. A disciplinarização da arte, o seu enquadramento inevitável (o que fica, o arquivo, é sempre objecto de selecção), rasura esse movimento situando as “formas” ilimitáveis dentro de certos limites. Porém, esse delimitar pode ser feito numa perspectiva centrípeta, a de uma organização centralizada, que o maximiza, ou corresponder a uma perspectiva centrífuga, que o minimiza. A perspectiva centrípeta é a de um “universalismo” obrigatório, representável; a centrífuga, a de uma universalização sem universal.
Na passagem do regime de enquadramento da arte por uma função religiosa para o regime do seu enquadramento por uma função social e para o do seu enquadramento por uma função económica estrita, autónoma (circuito reversível entre produção e consumo) persistiu a sua dependência de uma medida de valor que a hipoteca à transcendência, quer ela seja um comando declaradamente exterior às obras, quer seja um comando, sempre exterior, que se representa como desdobramento auto-reflexivo.
Com efeito, o enquadramento da arte numa função social prolongou até certo ponto a crença clássica na comunicabilidade das obras de arte, que por essa propriedade seriam os meios mais apropriados para instruir divertindo 1 . Próxima da produção de objectos de luxo na sua função de combater os malefícios da ociosidade, a arte devia proporcionar a educação de maiorias através da produção de referências comuns. Para tal, a criação artística era colocada sob jurisdição da estética como uma ciência ou uma filosofia do gosto encarregada de definir as possibilidades e estratégias da arte, bem como de estabelecer as condições e os modos de mediação entre as obras e o público consumidor, tarefa que competia à crítica. Esta jurisdição é constitutiva de uma tradição filosófica da estética como disciplina, que se pode descrever nestes termos : “a estética refere-se à arte e reflecte sobre ela a partir da perspectiva do espectador, do consumidor de arte – que pede à arte a tão falada experiência estética”. O horizonte de instrução não desaparece uma vez que nas modalidades previstas dessa experiência, trata-se sempre de formar os seus destinatários para a ela poderem aceder, “ com vista a experienciar qualquer dos tipos de fruição estética, o espectador deve ser esteticamente educado” 2 .
A pretensão de coincidência da arte com uma esfera da eficácia – consumir para obter (prazer, dinheiro, glória) – fez da arte segundo a tradição estética o modelo das indústrias da cultura, que foram invertendo a relação modelador-modelado: se as obras de arte serviam de modelo para a produção do kitsch destinado ás massas imensas e desclassificadas de consumidores, o modelo da produção de bric-à-brac por uma indústria norteada pela imposição da necessidade de substituição que permitiria continuar a adquirir sempre outra coisa, foi assimilado pela produção que sob o nome de “arte pós-moderna”, e sob pretexto de ironia, de crítica até, entrou na vertigem recicladora do vale-tudo, dedicando-se à repetição de formas de vida ou apresentação de outras mais sedutoras.
A chamada “estetização da existência” contribuiu assim para a atrofia da potência criadora pela invasão da consciência que, ocupada por um imenso catálogo de estereótipos, privada de vazio, perde a capacidade de resistência e limita-se a mecanismos de reacção.
A subordinação da arte à produção de fruição estética encerra quem a faz e quem a consome num ciclo infernal de espelhos: a educação estética não cabe apenas aos mediadores (teóricos, críticos, historiadores, sociólogos …), mas aos próprios artistas que não assumindo a função de simples fornecedores de fruição precisam de empenhar a sua arte na transformação dos receptores, assim se colocando na dependência dessa tarefa. Por outro lado, esse empenho do artista não deixa de ser uma maneira de, autoritariamente, através do prémio que é a fruição, impor a todos a maneira correcta de ver o mundo. Encerrada numa função social modeladora do povo enquanto comunidade (de solo, de sangue e de língua), a arte devia apropriar-se dos desígnios persuasivos da psico-retórica e ser um campo de sugestões para a publicidade e o marketing aplicados a mostrar que nada há, ou deve haver, para além do que se representa senão a força da representação, o poder de onde ela emana, um poder absoluto. Aquilo que constitui hoje a auto-imagem de um “mundo da arte” aproxima-se do universalismo religioso pois, tal como naquele, o universal corresponde à ratificação da modelação da vida por uma vontade absoluta, inabalável, emanação do capital como antes o era de Deus.
A construção da arte como função-absoluto, ditado de verdades primeiras e últimas que provem de uma força unificadora exterior, passa a ser atribuída a uma mão invisível, do mercado enquanto vontade de regulação, em obediência à utopia de abandono da força do pensamento e sua substituição pelo “tratamento de informação”, isto é, pela colocação do humano sob tutela da técnica. Em função desta, os objectos artísticos são constituídos enquanto tais por mecanismos de competição e definição de valores mercantis que sobrelevam e garantem a raridade como medida de valor, adjudicando-os a uma inaudita “presença sem desejo”. A função-absoluto da arte contemporânea assenta no pôr em circulação de imagens construídas pela sobrecarga de informações, que deve produzir um efeito de inacessibilidade (o mesmo em relação aos objectos de arte ou às grandes marcas comerciais). A acessibilidade ao inacessível é depois vendida em bilhetes de acesso pelos quais se medem a rentabilidade e o culto.
Boris Groys, dando conta da situação actual como aquela em que “qualquer coisa pode ser transformada em obra de arte por um artista”, ficando o espectador na impossibilidade de distinguir entre as “simples coisas” e o que é arte, considera a hipótese de deslocação para uma questão que considera muito mais interessante, a da distinção entre “quem é o artista, e como pode ele ou ela ser distinguido do não-artista”. Trata-se de interrogar uma certa imagem do artista, construída nomeadamente pela tradição da teoria e crítica institucionais. De acordo com essa imagem, o artista faz parte de um sistema, o mundo da arte, que inclui os coleccionadores, curadores, directores de museus, galeristas, etc., “baseado – como qualquer outra organização burocrática ou corporação capitalista – na divisão do trabalho” . Nesse mundo, a actividade do artista apresenta-se como a de um profissional eficiente, tanto mais quanto a crítica do mundo da arte que faz parte do seu papel contribua para o tornar mais eficiente e lucrativo. É essa imagem que Groys pretende questionar, para o que começa por afastar o que seria a utopia da humanidade composta por artistas, de acordo com o que seria a fórmula de Joseph Beuys “cada homem é um artista: “a visão do mundo completamente transformado em mundo da arte no qual cada ser humano tem de produzir obras de arte e competir pela oportunidade de as exibir nesta ou naquela bienal, não é de modo nenhum utópica, mas bastante distópica – de facto, um pesadelo completo” 3 .
O que lhe permite passar daquela “utopia” ao mundo da arte é a conclusão de que a vanguarda como uma operação de des-profissionalização da profissão de artista, que correspondeu à transformação da prática artística, “ foi em si-mesma uma importante operação profissional”. Fazendo uma apreciação da vanguarda na relação com a sua época, Groys destaca: 1. o nosso tempo, a modernidade, é “ cronicamente messiânico, ou antes, cronicamente apocalíptico”; 2. “a vanguarda percebeu as forças do progresso como predominantemente destrutivas”; 3. “ A vanguarda não quis criar arte para o futuro – quis criar arte trans-temporal, arte para sempre” 4 . A partir daí conclui que o desígnio descrito neste último ponto, a trans-temporalidade da arte, foi prosseguido por meios de redução ao “pobre, fraco, vazio”, como possibilidade de sobreviver à catástrofe. É a partir daí, num desejo de universalismo, que Kandinsky, Malevich ou Duchamp colocariam a arte como escola, do “olhar espectador” ou, no caso dos dois últimos, da relação entre o objecto contemplado e o campo de contemplação.
Ainda segundo Groys, o universalismo fraco da arte só pode ser acedido se a arte da vanguarda for subtraída à sua celebração histórica, à sua imagem empírica que se sobrepõe ao que nela importa, as imagens transcendentais. Daí a situação paradoxal da arte de vanguarda:
Paradoxalmente, ela é geralmente vista como não democrática só porque é percebida como uma arte fraca. O que quer dizer que a vanguarda é rejeitada – ou antes, ignorada – amplamente, pelas audiências democráticas, precisamente por ser uma arte democrática; a vanguarda não é popular porque é democrática. E se a vanguarda fosse popular, seria não-democrática. De facto, a vanguarda abre um caminho para a pessoa média se compreender ele mesmo ou ela mesma como artista – penetrar no campo da arte como um produtor de imagens fracas, vazias, pobres, apenas parcialmente visíveis (sublinhado meu). Mas uma pessoa média não é popular, por definição. Apenas estrela, celebridades e personalidades excepcionais e famosas podem ser populares. A arte popular é feita para uma população que consiste em espectadores. A arte de vanguarda é feita para uma população que consiste em artistas. 5

Distinguem-se no excerto acima duas maneiras incompatíveis de não ser popular: ser democrático – caso dos artistas – ou ser a “pessoa média”. Forja-se assim uma categoria, a “pessoa média”, condenada a apreciar o popular (o sensacional, as celebridades)e a não poder aceitar o caminho que os artistas, democráticos, lhe abrem. Não podem porque, embora o caminho aberto seja para a pessoa média, “a arte de vanguarda é feita para uma população que consiste em artistas”. Não sendo à partida artista, antes pertencendo ao grupo dos espectadores, a “pessoa média” não pode aproveitar a oportunidade que lhe foi aberta pela vanguarda – “penetrar no campo da arte como um produtor de imagens fracas, vazias, pobres, apenas parcialmente visíveis”. Mas a “pessoa média” vai ser conduzida a produtora de imagens pelas novas tecnologias, pelo que se conclui que indirectamente a arte a isso conduziu, ou pelo menos que, afinal, ela estava em sintonia com o progresso tecnológico. Essa sintonia seria a da sua força apocalíptica.
Veja-se em seguida a narrativa que se pode extrair do texto de Groys. A arte de vanguarda separou-se da estética, pois já não pretendia adoptar a perspectiva do espectador, mas através do desejo de um “universalismo fraco” pretendia continuar a educar a “pessoa média”, não num sentido total, mas apenas para que se compreendesse a si mesma como artista. Na falta de o ter conseguido, a pessoa média persistiu na celebração do mais forte. Ou seja, aparentemente a cultura de massas (indústria da cultura, sociedade do espectáculo, kitsch) triunfou na orientação da “pessoa média”. Até que, actualmente, se verifica uma fragmentação e inversão da situação da cultura de massas: as celebridades brilham menos e, pelo contrário, toda a gente escreve e coloca imagens na rede, sendo que apenas a possibilidade de ser lido ou visto importa – a quem faz é-lhe indiferente que de facto o seja ou não. Esta nova situação é então interpretada como sinal de um acelerar da situação apocalíptica, da perda do tempo, do mundo como um mínimo de estabilidade: aquilo que “pelo menos desde a primeira geração de artistas de vanguarda tinha sido compreendido”, que as novas tecnologias não eram “uma oportunidade para construir um novo mundo, estável, do futuro, mas como uma máquina que procede à destruição do mundo” 6 .
Haveria então possibilidade de distinguir dois tipos de apocalipse? Um enquanto consequência da arte e outro enquanto consequência da tecnologia? O que os distinguiria? O desvelamento pela vanguarda da aproximação de uma situação apocalíptica coincidiria com o seu “universalismo fraco”, e com aquilo de que a actual produção automatizada na rede de supostos objectos artísticos seria a actualização? A coincidência de apocalipse e redenção, característica do messianismo como colocação de um horizonte final de destruição do mundo, supõe sempre uma força unificadora deste, que como tal só lhe pode ser exterior. O messianismo é por isso movido por uma vontade de absoluto, vontade de anulação do não-sintetizável. Para esclarecer um pouco o sentido do messiânico no autor em questão, recorra-se então ao seu texto “Políticas da Instalação”, onde se estabelece uma distinção entre dois tipos de prerrogativas na realização de uma instalação artística: enquanto a liberdade criadora do artista é soberana; a do curador é apenas liberdade de argumentar perante o público, correspondendo por conseguinte à sua justificação, que aprova ou rejeita a instalação como um todo, ao exercício de uma liberdade institucional, condicional. Daí, Groys conclui que “ Devemos portanto dizer que a prática da instalação revela o acto de incondicional e soberana violência que inicialmente instala qualquer ordem democrática” 7 . O que justifica esta afirmação é a colocação de um primeiro legislador: “o primeiro legislador nunca pode actuar de uma maneira legítima – ele instala a ordem política, mas não lhe pertence”. No entanto, essa liberdade incondicional não pode ser admitida no regime democrático, que se sustenta pela existência de uma comunidade. A arte contemporânea é assim apresentada como motor da produção de “comunidades transicionais”, decorrente da articulação da soberania do artista e da função mediadora do curador, que permite às massas inter-reflectirem-se.
A relativa separação espacial fornecida pela instalação não significa uma saída do mundo, mas antes uma des-localização e des-territorialização de comunidades transitórias de cultura de massas – num modo que as assiste na sua reflexão sobre a sua própria condição, oferecendo-lhes a oportunidade de se exibirem elas mesmas a elas mesmas. A arte contemporânea é um espaço onde as multidões se podem ver a si mesmas e celebrar-se a si mesmas , como antigamente Deus ou os Reis eram vistos e celebrados em igrejas e palácios” 8 .
A arte estará assim em sintonia com a cultura democrática actual em que “não se pode ser celebridade sem se ser louco”, sendo que a celebração é indispensável à manutenção da actual política democrática. A verificação disso exclui qualquer propósito de crítica da arte actual, pretendendo apenas ser verificação de uma situação que coloca a arte como desvelamento do “poder soberano oculto por detrás da obscura transparência da ordem democrática” 9 . Essa ausência de crítica é um pessimismo quanto ao poder do pensamento: “ Afinal, o objectivo da arte não é mudar as coisas – de qualquer modo, as coisas estão sempre a mudar por si mesmas.” 10
Há várias ambiguidades que permanecem nesta conceptualização do estado de excepção, a primeira das quais diz respeito às “coisas mesmas” – importaria saber a que se refere essa expressão. Se tudo, incluindo portanto o estado de excepção, vem da mudança das coisas por si mesmas, o legislador não é soberano, mas apenas um fantoche das coisas, as coisas são “o soberano”. Daí que toda a performatividade, da arte, do discurso crítico, etc. seja afinal o cumprimento de um ditado das coisas, a verificação desse ditado.
A concepção do soberano como Um, legislador absoluto, de que o artista é apresentado como cópia, ou modelo, corresponde á afirmação de um sujeito forte, isto é, de um sujeito uno e exterior ao mundo, como se no intervalo em que a democracia se instala não houvesse mundo e portanto fosse concebível um legislador fora do mundo. A essa subjectividade deve contrapor-se que, não podendo o humano ser pensado sem mundo, uma vez que mundo é a condição do sentido (e não de um sentido), a instalação de políticas supõe a heterogeneidade da partilha sem pertença e não uma lei, a lei do soberano, que venha impor-se por violência divina.
Que o viver mínimo, o do alheamento da transformação do mundo pela automatização da actividade, pelo seu tornar-se independente da produção de sentido – como seria produzir escritos e imagens para colocar na internet na indiferença em relação à situação que faz com que não sejam lidas – corresponda a um “universalismo fraco” compreende-se pois como um acentuar do modo de existência contemporânea da arte como pretexto para a “pessoa média” se dar a ver em lugares onde as outras “pessoas médias” se dão a ver, isto é, para fabricar comunidade, proporcionar con(solos) sempre variáveis.
A “pessoa média” é aquela de que as coisas não fizeram uma celebridade, é o resultado de uma engrenagem – não aprendeu nada com os artistas de vanguarda, mas repete o seu messianismo fraco quando o tempo chega ao fim, e, sentindo que não tem tempo, abdica de aprender e entrega-se a uma actividade cega, como se os outros não existissem e por conseguinte fosse ela própria um fantasma em busca daquele transcendental que lhe dita os passos.
Sair desse sistema que tende a fossilizar-se não é de modo nenhum apenas questão de um fazer artístico que teria como objectivo a transformação do mundo e por si só introduziria o movimento de ruptura. Mas considerar desvelamento aquilo que se impõe como arte numa articulação de soberania e instituição é ao mesmo tempo retirar à arte uma dimensão criadora e reforçar aquilo que se pretende que ela desvela, uma vez que se lhe atribui um poder idêntico ao do legislador.
Decidir entre a construção de uma perspectiva da arte como criação e a construção de uma perspectiva da arte como desvelamento não é algo que se possa fazer em termos estritamente lógicos ou empíricos: é uma questão irrefragável de promessa ou desejo de futuro. A criação, invenção, não pode ser comandada, pois só há invenção do outro e o outro e por isso a invenção não é programável. Nesse sentido, afirmar a invenção é sempre desestabilizar as instituições e a sua função legitimadora. Abrir passagem não é abrir passagem a alguma coisa, mas transformar-se, transformar o mundo nessa abertura, inventar-se, a “várias vozes”, heterogéneas, sem origem comum, sem síntese. Num mundo sem primeira palavra, não é o sujeito forte, soberano, que é criador, pois a criação é sempre individuação, afirmação do singular plural em relação com o plural singular: encontro do heterogéneo, sem comunidade, sem (con)solo.
A arte não está separada das outras invenções humanas, daquilo que não é regulado pelo fim à vista; nem a potência criadora alguma vez pode ser referida a técnicas, processos, conhecimentos de qualquer tipo cuja falta exclua alguns da possibilidade de fazer arte. Fazer arte é uma das maneiras de aprender a viver desprendendo-se de si como sujeito e criando nesse desprender-se um movimento de aproximação dos outros no seu desprender-se. Essa maneira, de uma singularidade absoluta, não é nunca a proposta de um universal, de novas figuras, mas a intensidade, sempre contingente, que entre signos e através deles introduz o devir-outro.
Se faz sentido pensar a arte contemporânea (não apenas a que se faz actualmente, mas a arte enquanto ela é sem contemporaneidade e sem simultaneidade, pois existe na diacronia das relações) na história, isso supõe desde logo a necessidade de se afastar da concepção de historia como um fio necessário onde tudo encontra a sua determinação – hipótese que negaria a criatividade da qual ela é manifestação. Falar de potência criadora é desde logo entender que não há nexos causais entre aquilo que, nas diversas áreas da actividade humana, se inventa. Há ressonâncias, tensões, adopções, composições, diferenciações, que são abertura ao (do) mundo, a sua não totalização. A arte só é possível porque o mundo não pode ser deduzido, porque sentir e pensar estão em permanente desajustamento, em permanente divisão. Essa dimensão poética da existência, pela qual os humanos se não esgotam no comunicável, liga-os dividindo-os, sendo o mais íntimo do humano a experiência dessa ligação que apenas se dá no respeito da singularidade absoluta. A ideia stendhaliana da arte como “promessa de felicidade” não tem necessariamente um sentido messiânico, se a entendermos como afirmação de um vazio de conteúdo e aproximação do outro nesse vazio, que não é um deixar de fazer sentido, mas a sua não totalização enquanto promessa que permanece promessa, confiança no futuro. A intensidade do sentir, aisthesis, é iminência de sentido, abandono do reconhecimento, perda do sujeito e das suas representações, certeza do incerto. Enquanto maneiras de tornar iminente o sentido, performances e obras de arte guardam (a efemeridade das primeiras não anula a sua persistência no tempo do mundo) uma força de afecção que não é uma força de comunicação ou contágio, porque não há nada a passar de um lado para outro, mas que é algo como a interpelação de não-destinatários, relação de desconhecido a desconhecido. As criações artísticas resistem ao conhecido; se forem comprimidas em circuitos que estabelecem exaustivamente os seus percursos e os seus possíveis não têm condições de existência, pelo que o problema que se põe actualmente é o da saída desses circuitos.
E se há uma linha que do aproveitamento da arte para “instruir e divertir” conduziu às indústrias da cultura e ao “mundo da arte”, não é menos importante verificar-se que o aparecimento da arte como arte na época moderna não foi menos o desfazer dessa linha através da exposição da possibilidade de algo se expor expondo a transformação do mundo: fazer nascer o mundo fora das suas representações. Num texto em que pensa o impacto da descoberta da arte africana sobre a arte das vanguardas, Philippe Lacoue-Labarthe nota que a ligação a esses objectos de arte indicava que “alguma coisa se tinha já fendido na autoridade estética, quer dizer metafísica, de modo que começava a paralisar-se o poder de controle ou de vigilância que a filosofia tinha exercido, durante mais de dois milénios – ou, sob este ângulo equivale ao mesmo, a teologia” 11 . O que está em jogo com o aparecimento da “Arte negra”, é que através dele se dá a “ irrupção do ateísmo moderno”, entendendo-se atheos, como em Sófocles no sentido de “privado de deus”, “em falta de deus”. Dir-se-á que, separados de qualquer função ritual, os “objectos artísticos” que naquela se integram são a presença viva do enigma da figuração sem nada que a suporte: nenhuma forma de vida anterior e exterior é figurada naquilo que não representa e para o qual não existem limites ou enquadramentos.
Retomando a questão da fórmula “qualquer homem é um artista”: não é necessário que esta se esgote num esquema que coloque em alternativa a des-profissionalização da arte enquanto acabar com a profissão de artista e a des-profissionalização como uma forma sofisticada de profissionalização. Admitindo, como o pretende Groys, que esta última solução se concretizou ao mesmo tempo que a tradição do actual “mundo da arte” se começou a formar, tal não demonstra que isso fosse necessário, isto é, que “qualquer homem é um artista” tenha sido uma palavra de ordem que inevitavelmente tivesse conduzido ao pesadelo da “corporação capitalista”.
A fórmula “qualquer homem é um artista” pode ser tomada como ideia de resistência à redução da criação artística a trabalho escravo, trabalho que se esgota numa finalização. Não se tratando de acabar com as profissões, nem sequer com a de artista, mas de as desviar a todas de constituírem mundos fechados que, ao centrarem-se na simples eficácia, se condenam à autodestruição. Tratar-se-ia então de pensar o fazer dos artistas, profissionais e não-profissionais, como não sendo inteiramente separável do que acontece não só fora das profissões mas também em outras profissões. Se o mundo transformado em “mundo da arte” seria efectivamente um pesadelo, isso não significa que seja a existência de obras de arte que o desencadearia. Seria, isso sim, a imposição delas e a extensão dos pressupostos de fechamento desse “mundo” ao mundo.
Daí que o problema que os actuais meios tecnológicos de comunicação nos colocam quanto à arte não seja o de o ela ter caído na rua e, perdida a raridade das produções artísticas, ser preciso encontrar uma justa medida entre o que seria uma “máfia” de negócios de arte e uma convincente distância da arte e da vida. É que através desses meios a vontade de comunicação asfixia o que poderia ser libertador no sair da alçada das estratégias da estética tradicional enquanto aquilo que se costuma designar por “sacralização da arte”, sua integração num sistema sacerdotal, parte de um paradigma pedagógico reactivo. A vontade de comunicação torna-se o modo como esse paradigma pedagógico se reconverte recuperando o seu poder: colocando-se como pontos de emissão de informações nas formas que constroem, os indivíduos reforçam a sua condição de sujeitos, isto é, de participantes de uma função unificadora, homogeneizadora.
A perda de controle da disciplina estética, concretizada no vale-tudo para dar forma à “estetização da existência,” com cada um a pretender tirar proveito dos meios de divulgação que lhe concedem a oportunidade de ser mais um (e, com sorte, um “mais”) a aceder à “volúpia e glória”, não pode ser contrariada senão por aquilo que retira a arte aos mecanismos de controle, acima de tudo, à sua transformação em informação, circulação, isto é, conformação.
Quando se põe de parte a pretensão de encontrar causas para o “fazer arte” vai-se no sentido da perda da hierarquização. A arte importa a quem quer que seja, e não apenas a artistas, comissários, críticos, teorizadores pela aprendizagem que desencadeia, aprendizagem de resistência à morte, de abertura de futuro: aprendizagem que é acção e não recolha de informação. Na perspectiva da linguagem, na qual toda a aprendizagem se dá, a atenção ao obscuro é promessa de esclarecimento na sua impossibilidade mesma, naquilo que ensombra, ou explode, a reflexividade. Aprender, traduzir, contra-assinar, enviar: é a isso que muito impropriamente se pode chamar mediação. Uma mediação que não facilita o transporte de conteúdos ou de formas, que não existem como tal, mas apenas na perda do solo comum, do consolo.