PORTA33 — Martinho Mendes | Ilhéstico. Um Roteiro de Arte Contemporânea para a Cidade do Funchal

ILHÉSTICO — MARTINHO MENDES
um roteiro de arte contemporânea para a cidade do Funchal

Curadoria de Miguel von Hafe Pérez
PORTA33 — 05.09.2019 - 14.03.2020

Torre do Edifício dos Paços do Concelho - Câmara Municipal do Funchal.
5 Setembro — 2 Novembro 2019

Edificada em 1940 na reconversão do palacete barroco em Edifício dos Paços do Concelho, a Torre desenhada por Raul Lino e Carlos Ramos proporciona uma das mais impressivas vistas do Funchal, com a abertura do campo de visão do visitante a trezentos e sessenta graus, abarcando deste modo o horizonte marítimo, o rendilhado urbano e a paisagem montanhosa.
Ao subir a escadaria que dá acesso à sala que encima a torre, uma pintura assinada pelo alemão Kiekeben que o artista desloca da sua localização habitual define conceptualmente um território de investigação, que lhe é recorrente: ao pendurar a obra justaposta a três desenhos de bordado da Madeira em papel vegetal remete para a particular história das indústrias artesanais da ilha, muitas geridas por estrangeiros (tal como é o caso do autor da pintura, que detinha uma fábrica de tapeçarias, produto que durante um certo período floresceu paralelamente ao bordado da Madeira). Na sala com vista a trezentos e sessenta graus deparamo-nos com um painel com dezenas de desenhos (riscos, é o termo tecnicamente mais utilizado pelos próprio artesãos) de monogramas para lenços em bordado da Madeira. No entanto, a presença de uma forma de um azul profundo e de difícil referenciação domina o espaço com assertividade. Entre um rochedo flagrantemente artificial, um inusitado meteorito ou alguma remanescência de um passado ainda não apreendido, esta não-criatura metamorfoseia-se em ilha dentro da ilha, em evocação do mar a cobrir montanhas e, principalmente, em monumento informal à história da injustiça laboral que permissivamente atravessa a história menos edificante, mas não menos real, de uma tradição artesanal que ainda sobrevive numa estrutura piramidal de poder.
Tão benigna – na sublimidade da paisagem irradiante que difunde quando reflete o olhar para o exterior -, quanto maligna – quando convoca a história dos desapossados -, esta entidade plástica patenteia qualidades cinematográficas. Carismática e polémica. Sobretudo capaz de desvelar na sua feérica cor azul anilada a relação com intra-histórias que passam pelo suor e lágrimas esquecidos nas montras onde exuberantes resultados finais ignoram murmúrios de sofrimento quotidiano. É evidente que nem tudo passa por aí. Mas que muito foi elidido das narrativas oficiais é algo que novas gerações começam a discutir. Martinho Mendes condensou memórias pessoais com uma consistente investigação individual que tem vindo a desenvolver há vários anos. E assim cumpre, exemplarmente, um dos desígnios fundamentais da arte contemporânea, isto é, a de reivindicar um lugar operativo para atitudes para-científicas na ultrapassagem da pura visualidade.
Da condição de ver navios é um tríptico que desemboca num volante na PORTA33 com uma escultura onde a dicotomia alicerçada em trabalho e sofrimento se evidencia com cristalina clareza, contrapondo uma imagem espelhada e orgânica da transparência dos vidros e desenhos decorativos (dos bordados) à agressividade dos metais aí dispostos.

Miguel Von Hafe Pérez

Built in 1940, during the renovation of the original baroque palace that preceded the city hall, the Tower projected by Raul Lino and Carlos Ramos offers one of the most impressive views of Funchal, a three-hundred-and-sixty-degree panorama that encompasses the maritime horizon, the ur- ban skyline and the mountainous landscape.
When climbing the staircase that leads to the room on the top of the tower, the visitor can see a painting signed by the German painter Kiekeben. Displaced from its usual place by Martinho Mendes, the painting opens up a field of research: by hanging the painting besides three drawings on tracing paper, depicting patterns of the traditional Madeira embroidery, the artist refers to the particular history of the island’s craft industries, many of which were managed by foreigners (as was the case of the author of the painting, who owned a tapestry factory, a product that, for a time, flourished in parallel with Madeira embroidery). In the room with the three-hundred-and-sixty-degree view we come across a panel with dozens of drawings of monograms for Madeira embroidered handkerchiefs. However, the presence of a strange deep blue shape dominates the space with decisiveness. A flagrantly artificial rock, an unusual meteorite or some remnant of a past that has not yet been grappled with, this non-creature transforms into an island within an island. An evocation of a sea that swallows mountains, it is an informal monument to the history of the exploitation of labour in a traditional craft that, to this day, survives within a pyramidal structure of power.
So benign — in the sublimity of the radiating landscape it diffuses as it reflects our gaze outside — as it is malign — when it invokes the history of the dispossessed — this plastic entity has a certain cinematic quality. Charis- matic and controversial, its feisty blue indigo colour reveals stories of sweat and tears, the forgotten murmurs of daily suffering we pass by in shop windows where their exuberant final works are in display. Of course, not all the stories are the same, but the fact that much has been erased from the official narratives is something that new generations are beginning to discuss. Martinho Mendes condensed personal memories in consistent individual investigation that he has been developing for several years. Exemplary, he fulfils one of the fundamental aims of contemporary art: to claim an operative place for pa-ra-scientific practices that go beyond pure visuality. Da condição de ver navios it is a triptych in display at PORTA33, a sculpture that highlights the dichotomy of work and suffering, contrasting a mirrored and organic image of the transparency of glass and of the decorative embroidered designs with the aggressiveness of metal.

Miguel Von Hafe Pérez

Martinho Mendes nasceu na Madeira (1981) onde vive e trabalha. Formou-se em Artes Plásticas, na Universidade da Madeira, e em Educação artística, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Paralelamente à criação artística, coordena o serviço educativo do Museu de Arte Sacra do Funchal onde exerce funções técnico-pedagógicas e de programação cultural no Serviço Educativo. As suas principais áreas e interesses de investigação são a educação artística em museus e centros de arte, assim como a criação e a experimentação artística no cruzamento com os territórios da pedagogia, dos estudos insulares, das ciências naturais, a etnografia e a espiritualidade, explorando e combinando diferentes meios expressivos como a instalação, o desenho, a pintura e a fotografia. Realizou as seguintes exposições individuais: Geografia do Risco, Sismógrafo, Porto (2018); Do Bom Despacho ao Livramento, Museu Etnográfico da Ribeira Brava(2018); Orgânico, Perene, Galeria dos Prazeres, 2014; Cheerfulness, Museu de Arte Sacra do Funchal (2013); Em trânsito, Museu de Arte Sacra do Funchal (2012); Sobre a mesa, Galeria ASVS Porto (2011); Do litoral - Echium nervosum, Espaço Infoarte da SRTC, Funchal (2011); As nossas memórias nos mentem; Galeria ASVS, Porto (2009); A Casa na Encruzilhada, Colégio dos Jesuítas, Universidade da Madeira, Funchal (2006).

Destaca-se a participação nas seguintes exposições coletivas: Em Viagem , Quinta Magnólia, Funchal (2019); Derrocada/downfall, parceria com Mihal Krenz, Casa da Cultura de Santa Cruz, Madeira (2018); Por entre flores e pedras, parceria com Bruno Corte no Museu Geológico de Lisboa (2017); Between Islands, festival internacional de vídeo-arte, TEA-Tenerife Espaço das Artes, Tenerife - Canárias; Centro de Inovação cultural El Almacén, Lanzarote – Canárias, 7o FIVAC - Festival Internacional de Video Arte de Camagüey – Cuba; Tabakalera. Donosti - San Sebastián; Festival Internazionale Video Arte 56 Viareggio, GAMC Lorenzo Viani de Viareggio – Itália; Centro Cultural de España en Nicarágua – Nicaragua, Ex-Teresa Arte Actual - Mexico; Gran Canaria Espaço Digital, Espanha; Museu de Arte Moderna de Santo Domingo – República Dominicana (2016-2017); Experiência da Forma- Um olhar sobre o Museu de Arte Contemporânea II, Mudas – Museu de Arte Contemporânea da Madeira (2015); Alguns Endemismos e outras Naturezas, parceria com Sílvio Cró e Dina Pimenta, Fortaleza São Tiago – Museu de Arte Contemporânea do Funchal (2014); Labirinto de Memória, Colégio dos Jesuítas, do Funchal (2013); Linha/Line na Porta 33, Funchal (2013); 1988- 2013: algumas doações na Fortaleza São Tiago – Museu de Arte Contemporânea do Funchal (2013); Sobre Pedras, entre muros, Colégio dos Jesuítas do Funchal (2005); Mundos e Modos, Teatro Municipal Baltazar Dias, Funchal (2005); Seis artistas plásticos madeirenses na Bélgica (2004), De um lugar extremo e nulo, parceria com Alice Sousa, Fortaleza São Tiago – Museu de Arte Contemporânea do Funchal (2004); 7o Prémio Fidelidade Jovens Pintores, Casa da Companhia, Porto e Abrantes (2003); Galeria em grande, exposição coletiva de pequeno formato, Galeria da SRTC, Funchal (2002).

Instagram: @martinho_p_mendes/

‹ ›