ILHÉSTICO — APRESENTAÇÃO DO CATÁLOGO
um roteiro de arte contemporânea para a cidade do Funchal
Curadoria de Miguel von Hafe Pérez
PORTA33 — 18.12.2021

Não somos só nós
Texto para a gratidão


Este é o nosso corpo, mas não somos só nós. Há outras mãos que são e entram por esta Porta, por dentro do escuro e da claridade, limpas, vastas e íngremes como o fim que se não vê quando o corpo é inteiro e suporta o voo do pássaro lento, uma espécie de luz inaugural sobre a polpa do mar. Ou uma sombra incalculável que grita o seu nome próprio.

Não, não somos só nós. Há entradas de emergência que nos salvam de saídas inimagináveis; portas que dão travessia aos pés desassentes na terra e firme alento aos dedos da mão que sonha e não aprende o gesto da desistência - assim seja.

Somos gratos a tantos, pelo ar que nos dão a meio do cansaço e contra a inclinação dos dias mais impossíveis. Somos gratos pela escuta e pela crença, pela porta que no outro abrimos para a nossa Porta sem o temor de nos vermos despidos, tremendo do desejo e não do medo, nunca do medo, desde a fonte até à ponte. Aqui mesmo, lugar este onde nos mantemos de pé diante do rumor do mar que entra. Nós e os outros, nesses regressos que os outros fundam sobre o jardim que cumprimos, para sempre com os outros. É com eles que nos alargamos até ao fim das folhas e dos olhos dos gatos e abrimos as mãos para nascer.

A casa é um só corpo, o corpo é uma só casa. Luz a bater nas pernas e nos braços da nossa nudez. Como dantes.

E isto é tudo o que convosco somos. Só.
Obrigado.

Susana de Figueiredo

Ilhéstico, uma só palavra para o que se (des)faz até ao fim

Ilhéstico, uma só palavra para o que se (des)faz até ao fim

Ilhéstico. De quantas respirações nasce a arte? Que têmperas e que fôlegos empurram a porta? Com que mãos e com que bocas se constrói a vida por dentro da mais funda veia da criação, a casa? Esta; entremos. Eis o que nasceu e o que nunca se deixa matar, ou morrer, quando uma ilha é; quando uma ilha emerge qual corpo atroz do alto de tantos corpos, do calor benigno das mãos que partem, salvas que estão do frio da ausência. Eis aqui o encontro, o regresso à pele primitiva dos lugares eternos, ao útero da terra sempre por abrir. A vida toda crepitando daqui, do núcleo das mãos que não temem a sombra nem a escuridão das pedras, ou a nudez dos campos antes da imersão na cidade. Depois, talvez.

Ilhéstico, que palavra tão bela para dizer casa, que palavra tão certa para dizer ilha. Esta ilha-casa donde se sai para dentro, sabendo-se que nada que valha a pena se resgata do lado de fora. Eis este corpo voraz que será sempre herança e origem, curva, cura e vertigem para todas as coisas visíveis e invisíveis.

De quantas curas, afinal, se compõe uma paisagem, uma passagem, o milagre doméstico de um ramo quebrado que regressa ao cimo da árvore.

Ilhéstico, que palavra inesperada para filhos, os que regressam e os que ficam. Que palavra sagrada para partida. Para chegada.

Eis a porta para o corpo inteiro da cidade, a nossa, para as mãos e os olhos que a vêem, do chão ao alto, por dentro das ruas, do basalto, das flores e do sal. Estas mãos e estes olhos tão firmes, que guiam a casa até à primeira chaga no peito da rua, e para sempre devoram e se deixam devorar da casa e da rua, das duas seivas. Uma. Eis a alegria, e por vezes o profundo tremor, do encontro, uma luz de sangue apontada ao escuro. A obstinação de não mais largarmos a inocência aqui iniciada, porventura uma espécie de unção sobre a promessa de não adormecer, de não consentir nunca a palavra transformada em animal inofensivo.

Ilhéstico, uma única palavra para nascer. Uma só palavra para o que se (des)faz até ao fim.

Susana de Figueiredo

Trinta anos de salvação

Não sei como dizer que a urgência do encontro é sempre o maior dos desejos. Não sei como dizer que a vida, quando é a vida, só pode brotar de um único e implacável corpo: o desejo de encontro. Não sei como dizer que uma Porta é muito mais do que uma morada. Um princípio de fogo que as mãos vão ateando antes e depois da pele. Um lugar para viver e morrer. Uma e outra vez. De todas as vezes urgentemente.
São trinta anos de encontro, mas podiam ser já todas as vidas e todas as mortes. E talvez todas as brechas abertas e por abrir entre elas. Há portas que nunca se fecham; porque é quente e permanente a mão que pousa, a mão que encontra e afia o lápis, e atravessa para dentro e por dentro, até desenhar o corpo inteiro.
Este é o vosso corpo. Arde e convalesce, parte e regressa, abraça e traz para dentro o tempo esvaído de existência. A mão não abandona o corpo que é seu. Este é o vosso corpo desenhando a morada, pousado nas salas, nos quartos e no jardim. Só pode ser o corpo a abrir a Porta; por vezes tão despenhado de impossíveis que sucedem como pássaros remotos.
E nós? Nem sei como dizer-vos que nós somos os que entram pelas vossas irrepetíveis mãos, Maurício e Cecília. É só depois dos vossos olhos que nos vemos mergulhados no lago e nas sete vidas dos gatos, na antecipação das crianças. Na casa toda que a Porta abre.
Creio poder dizê-lo, é desse desassombro ininterrupto que queimamos os nossos olhos contra o escuro e a claridade. Se digo Porta 33 é porque são vocês a derradeira ternura exalada do sangue do último dragoeiro. O amor. Se não fosse o amor, não contariam os dias pela força inteira dos dedos. Não dariam vida à terra nem à linguagem dos gatos. Não olhariam uma flor pelo princípio do seu caule. Se não fosse por ele, pelo amor, não teriam veias prontas para o encontro; nem contariam os outros, cada um [tantos], como preexistência poética do desejo anunciado.
Saberemos ainda procurar o que vocês encontraram, inclinar-nos sobre a inquietude dos vossos dias e das vossas mãos?
Não sei como pedir-vos que nos salvem. Agora mais do que no princípio.

Susana de Figueiredo

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