história secreta da aviação
PORTA33 — 20.06.1997 — 19.07.1997
Só depois de secas as sementes voam.
(...)
Todas as sementes que cruzam os ares, todo esse intenso tráfego aéreo,
é movido por uma necessidade absoluta,
dirige-se sem intenção própria, mas com surpreendente sensibilidade,
respondendo à mais ligeira aragem, lendo as mais ínfimas diferenças de pressão, reagindo à
luminosidade,
à temperatura...
(...)
Na semente que voa, é o equilíbrio entre o peso do grão que tende a descer e a sensibilidade da asa
que
tende a subir, que realiza o voo.
Se a asa não tivesse lastro, elevar-se-ia como a labareda.
Se o lastro não tivesse asa cairia como a chuva.
(...)
história secreta da aviação
um reparo sobre o equilíbrio da sensibilidade para pôr em órbita uma aspiração comum
Os modelos que desde sempre representaram a natureza da realidade — visões do mundo —
sucederam-se
ao longo das épocas,
exprimindo o essencial do espírito, imprimindo no indivíduo e na sociedade profundas alterações,
quer físicas quer também
psíquicas e éticas. Os efeitos foram e são múltiplos, o mais significativo diz respeito à noção de
ordem universal.
Os antigos Gregos representavam a Terra a meio do Universo. Sete esferas celestes eram-lhe
concêntricas em ordem de perfeição
crescente. O todo era como um organismo integral. Todas as actividades tinham significado. O homem
tinha uma importância
capital, a sua conduta tinha implicações no equilíbrio e harmonia geral do Universo.
Hoje a Terra é representada como um grão de pó perdido num imenso universo — uma “ruga” — composto
de outros grãos de pó:
átomos, estrelas, galáxias... que, estando separados inter-relacionam-se como as peças de uma
máquina, na qual o homem se
encontra — sem se encontrar — privado que está de significado.
Hoje sabe-se o preço que o homem paga por ao se ter feito rodear ter com isso se separado do que o
rodeia; a destruição do
equilíbrio natural; a poluição; a demografia; o nacionalismo; o terrorismo; a desordem económica e
política à escala mundial; a
criação de um ambiente geral que não é nem fisicamente nem mentalmente são para a maioria das
pessoas que nele vivem.
Do sistema geocêntrico passou-se ao sistema egocêntrico, contudo, mesmo assim, é neste mundo e não
noutro por onde tudo —
que diz respeito ao homem — passa.
Motivados pela insegurança fixa-se e ensina-se que, para se saber, tem de se analisar separadamente.
No primeiro passo, divide-se o
que é indivisível para no passo seguinte se unir o que não é unificável. Ensina-se a saber não se
ensina a aprender.
A separação, o divórcio, a dualidade, a fragmentação encontra essencialmente origem no facto de desde sempre se terem fixado as representações gerais da ordem cósmica e da natureza da realidade (res = coisa) que formam as nossas visões do mundo, seguindo apenas os modos de pensamento mecânico, rotineiros e habituais sobre esse sujeito, (mesmo se houve vozes que se fizeram diferentemente ouvir, o que o estado actual da desordem prova é que não foram escutadas).
Indo a realidade original — incomensurável — para lá de tudo o que pode ser contido em tais formas fixas de medida, essas visões só podem acabar por ser inadequadas e fazer nascer formas várias de confusão e conflito. Porém, quando o campo inteiro de medida — o que se considera — está aberto à funda visão interior, original e creadora sem nenhum limite fixo, sem nenhuma barreira, então as nossas vistas gerais do mundo cessarão de ser rígidas, o campo de medida tornar-se-á harmonioso, e no incomensurável estará contida a causa que forma a medida, da mesma maneira a separação chegará ao fim.
Assim que tal forma prevalece o homem pode então não só ter uma percepção do sentido da
plenitude,
mas mais, e o que é mais
significativo ainda é que ele pode constatar a verdade dessa abordagem em toda a fase e aspecto
da
sua vida.
Será que podemos existir sem nada fixarmos?
Todas as formas fixas são da mente e por isso estendem-se a todos os domínios. Também a fixação
de
uma visão sobre arte, alimenta
o antigo programa que a insegurança incessantemente convoca ao longo de gerações, através dos
carris
da tradição, seja-se por
ou contra ela.
A arte ou ordem, não só acusam a presença desses carris como forçosamente têm de descarrilar —
sair
dos eixos — porque de facto
onde as Coisas se passam não é só aí.
Na PORTA33 a história secreta da viação, ao reparar na sensibilidade e equilíbrio das sementes que voam, sai naturalmente dos eixos e abre-se à plenitude indivisa sem ruptura nem limites do significativo acto de ver — para o acordar.
Ver, ver tudo — o que está a ser — porque há tudo para ver. Ver sem deixar passar nada, é possível quando o pensamento se cala, e em silêncio bebe-se o que se vê. Ver mesmo, sem guardar nenhuma imagem, sem esperar por nenhuma imagem, ver sem esperança nem fixação, ver do silêncio, no silêncio em silêncio sem comparar, nunca poderá ser velho, nem feio. Estas rugas, que agora nos cobrem o rosto, são novas. A beleza é uma modesta e secreta expressão da natureza da realidade, onde ela está não está o “eu” que diz ou pensa ver. Quando há ver, só a visão fluí, não há ninguém que veja.
Ver é desconhecer, avançar através do desconhecido é descobrir. A atenção que vê e que escuta, o que vê? O que escuta? — ordem e silêncio. Silêncio, sem o registo da memória, sem o tempo que afinal apenas é pensamento. Ordem, que nos relaciona sem o espaço que parece separar-nos do todo, mas que afinal apenas é nome.
M.Z.
“Cair em si”
Voar.
voar é próprio do povo aéreo, e de tal modo é que algumas espécies enquanto voam
acasalam,
ou cantam, ou caçam, ou comem, ou defecam.
no que diz respeito ao homem, porque estaria “voar” apenas relacionado com os engenhos
que ele inventa e com os sonhos que ele tem?
por serem produzidos por ele?
porém, mesmo se inventou o automóvel ainda anda, mesmo se inventou o barco ainda
nada, mesmo se sonha ainda dorme.
porque não voará?
porque não se poderá elevar ligeiramente, um pequeno palmo, e depois pousar um pouco
mais à frente?
sem grande espalhafato, com jeito,
ou até mesmo desengonçado e com uma certa dificuldade
não se trataria de fazer voos transatlânticos, seriam só um metro ou dois!
se o homem se desloca na água — nada — porque não se deslocará no ar?
por ser mais anfíbio que aéreo?
mesmo se a água está fria, ele despe-se para nadar,
porque teria, para voar, de vestir qualquer coisa, que o iria tornar ainda mais pesado?
sem imitar os peixes, é-lhe possível usar as mãos não como barbatanas,
porque será que para voar teimará em imitar os pássaros, usando-as como asas?
ou será que ainda não chegou a compreender o pleno uso das mãos?
ou será que por estar tão carregado de lastro (sempre com o cérebro ocupadíssimo
produzindo os tais engenhos) já não tem mãos a medir?
o que de resto lhe propicia “voos” cada vez mais requintados,
à medida que se lhe vai adormecendo a sensibilidade, que é muito mais leve que o ar.
no momento crucial em que ele descola as duas mãos do chão, deixa de gatinhar —
ergue-se,
apoiado pelos grandes põe-se de pé, sustentado pelo mundo chega-se mais ao céu —
aprende a andar.
daí a aprender a correr é um passo.
mas à força de andar por hábito, de imitar o andar e as correrias de outros, rapidamente cai
na tradicional competição para se tornar o melhor de todos — o
campeão.
e afastando-se deles, isolado, vence (ou perde) separado de tudo.
por isso luta violentamente — para vencer — um campeonato.
então, se é que voar ainda tem algum significado, significa apenas velocidade,
força voraz e aceleração para fazer mover e elevar a própria carga que transporta, e que de
dia para dia com o registo de tantas vitórias e derrotas, torna-se
cada
vez mais
pesada,
sobretudo a carga do porão da consciência.
a montante de qualquer engenho ou voo engenhoso fabricado pelo homem: foguetão,
aeroplano a vapor, aeróstato ou asa de cera,
há e haverá sempre, mesmo moderada pela inércia, a “atracção para cima”,
a atracção para esse lado,
senão, nunca o homem teria a apercepção da maçã que “cai para baixo”.
nem tão pouco teria podido adaptar a linguagem de modo a descrever isso aos que ainda
não se tinham apercebido.
(que saiba a história, foram precisos dezoito séculos para que fosse aceite a proposição de
Aristarco de Samos: pôr a Terra na condição de satélite do Sol).
após ter saído — tecnicamente — do sistema geocêntrico, onde os corpos
“perfeitos” eram
os celestes, e os “imperfeito” eram terrestres,
descentralizado o relacionamento do planeta, rejeitada a aparência, parecendo cair em
si,
tudo levaria a crer que se tornaria menos egocêntrico,
mais modesto, e naturalmente mais respeitador daquilo aonde desde sempre está
inevitavelmente inserido, e que ele próprio é uma das suas
inúmeras
expressões
— o universo inteiro.
mas tal não aconteceu, a saída foi meramente técnica.
aos celestes epiciclos sucederam as mecânicas equações,
à razão do diabo sucedeu o diabo da razão.
o seu problema central (
eu, poder, perfeição, nação, raça, medo, segurança,
desconfiança,
orgulho, ódio, inveja, ambição, violência
) não só se
mantém como
progride.
prova-o a facilidade com que ainda hoje se mata entre si, ou com que mata outros seres
vivos, a facilidade com que se torna predador,
a facilidade com que encara a matança organizada que é a guerra.
a leviandade com que chama paz a guerra que faz à guerra,
perpetuando a guerra.
— e o que não torna mais insensível que a guerra!—
aí, as ideias são de tal forma diabólicas e cegas, de tal forma banhadas em irracionalidade
e
demência,
que na primeira experiência atómica, os instrumentos que a deviam medir e que foram
colocados longe da deflagração, desintegraram-se com ela, “o que
em si é
uma
medida”.
mas justamente graças às ideias, graças às ideias de perfeição e imperfeição de um
louco,
graças à guerra,
graças às duas últimas guerras mundiais
a aviação progrediu,
e com a maior das naturalidades, permitiu de tal forma a expansão do caminho da máquina,
então já em curso,
que o homem pôs de lado qualquer outra possibilidade de se relacionar de facto com o
meio aéreo
desenvolvendo somente a possibilidade mecânica,
na construção de aeronaves e elevadores.
a aeronáutica permite ao homem a sustentação a deslocação e a direcção no meio aéreo,
mas será que ele voa?
quando se desloca de automóvel não diz que caminha, quando se desloca de barco não diz
que nada,
porque de facto o que anda é o automóvel e o barco,
mas quando se desloca de avião — voa — diz ele.
não! seja tripulante ou passageiro, o homem que “voa” num avião de facto não voa, o que
voa é o avião.
a prova é que se a máquina cai, mesmo contra a sua vontade ele cairá com ela.
(por isso, logo desde o princípio, antes do pára-quedas, ele mune-se da protecção de um
santo padroeiro,
um homem são, inteiro, um “pobre de espírito” cujas sensíveis demonstrações dos fortes
laços com o ar — do céu — o santificaram:
o obediente Giuseppe da Copertino).
e, chegados aqui, voltamos a perguntar: se até a máquina voa, porque é que ele não
voará?
mas, refastelado que está, deslocando-se segundo a sua vontade, sentado numa cadeira
“bem pensada” (mesmo se durante o voo há alguma turbulência)
pensa,
que outra coisa não é possível, nem necessário.— andar de avião! isso basta, para lhe
garantir a expansão do seu domínio do ar
que até já conseguiu “condicionar”, “comprimir” e “liquefazer”, segundo a sua vontade.
é por isso que se encontram tão poucas disposições em procurar as provas do contrário—
do desconfortável e desconcertante desnudamento do
impensável.
a superfície da terra é imensa profundidade,
não é necessário ir mais fundo
à superfície da terra encontramo-nos com o céu infinito — em todo o sítio.
mas na realidade, esse tão simples encontro, não é fácil, nem confortável, nem seguro.
para que servem as promessas ou as esperanças de uma vida um pouco mais fácil de ser
vivida,
se se mantiverem os ruidosos e tensos apetites desse “eu” que nervosamente, quer
interminavelmente sempre mais e mais,
sobretudo poder mais, para poder cada vez mais “puxar para si”,
sem poder “cair em si”.
(com ventos favoráveis, o avião aterrou no aeroporto de Lisboa quinze minutos mais cedo,
mas a escada para fazer descer as pessoas chegou só à hora prevista.)
história secreta da aviação
o desfazer do tempo
Imersos na característica humidade dos 23º — à sombra — da acolhedora cidade do
Funchal, ao entrar
na Rua do Quebra Costas, logo no começo da subida, já se lê lá ao longe, escrita na vertical, a
palavra “exposição”. Mais perto, por baixo do mesmo painel, quase a chegar ao número 33, lê-se o
nome do que é exposto: “história secreta da viação”.
Entro na Porta 33. Uma galeria sub-tropical, atraente e branca que se desenvolve em dois pisos com
uma agradabilíssima esplanada emoldurada por bananeiras (do vizinho). Na véspera já lá tinha estado.
A exposição deu-me bastante que pensar, sem contudo ter conseguido enquadrar as peças apresentadas
num qualquer movimento geracional, numa corrente, num estilo ou numa evocação. As representações
voadoras — que tratam não da fauna, mas da flora — fizeram-me lembrar certos trabalhos de Leonardo
da Vinci ou de Hans Inuit, um artista contemporâneo esquimó. De uma maneira geral o contexto onde se
inscreve este trabalho, é de caracterização obviamente objectiva e, até didáctica. Porém, mesmo se a
leitura é evidente, mesmo se formalmente as peças são analisáveis através de modelos de
reconhecimento imediato, não são relacionáveis num devir histórico e movimentacional, dir-se-iam
antes pertenceram a um colapso cuja (in)temporalidade ou hiato nos interroga exponencialmente sobre
algo que se perdeu — a inocência, por exemplo, diz-nos o autor — sem que, também segundo o autor,
nunca nada se tenha desprendido de nós.
Vi demoradamente a exposição, que de resto convida à demora — tudo é exposto na penumbra e iluminado
com frugalidade, há muito lugar vago convidando ao repouso. Depois falei com o Director da Galeria
que gentilmente combinou um encontro com o Manuel Zimbro, o autor dos desenhos, das esculturas e do
livro ali expostos, que desde logo nos disse não ter sido ele o autor:
Diário da Estação Polar de Svalbard
: Mas não foi o senhor que fez isto? Estes
desenhos, estes...
objectos, este livro?... Por exemplo, quem deu o nome à exposição?
Manuel Zimbro
: Não sou o autor, mas se lhe respondesse afirmativamente, também não
lhe mentia!
D.E.P.S.: Então em que ficamos? Desculpe-me a franqueza, mas o que acaba de dizer não faz
sentido.
M.Z.
: Em primeiro lugar, digamos que não fui só eu, o que já torna bem diferente a
questão da
autoria, depois..., mas..., diga-me lá: estará o seu jornal interessado em considerar também aquilo
que não faz sentido? Haverá no seu jornal espaço para ser ocupado, e talvez perdido, com aquilo que
normalmente não se pensa — e que talvez por isso não faça sentido? Pagá-lo-á ele por e para isso? Ou
não esperará de si um “papel compreensível, lógico e coerente”, apto a ser entendido por toda a
gente. Um “papel” que possa conquistar mais leitores e não o contrário, não é verdade? Enfim, mesmo
que ninguém perceba o que você irá escrever, a sua entrevista não terá obrigatoriamente que
“passar”?
D.E.P.S.: Em princípio, esta entrevista é para ser publicada na coluna cultural do Diário da
Estação
Polar de Svalbard no Ártico. Muito embora esta publicação seja subsidiada por essa comunidade
sou
livre de escrever o que quero, reservando-me no entanto a obrigação de tudo fazer para
internacionalizar essa Estação que no próximo ano vai promover a F.A.C.A., a primeira Feira de
Arte
Contemporânea do Ártico...! Bom, dito isto, importa-se de explicar melhor onde quer
chegar?
M.Z.
: Estava a referir-me ao significado dos nossos condicionamentos em geral,
e
aos da linguagem em
particular. Linguagem essa que descreve, que escreve, que comunica, que informa, que fala,
etc...
com palavras. Palavras essas que já não são enérgico sentido... talvez só transportem ideias e
fins
a atingir. Têm uma data limite — de consumo — depois perdem validade e como qualquer artigo,
também
perdem vitalidade. Entretanto, vai aumentando a distância que parece separar o sujeito que
descreve
do objecto por ele descrito.
O que é a compreensão? Independentemente da língua que falamos; independentemente dos nossos
modelos
de pensamento; das possíveis visões que temos do mundo, será que falamos na mesma
linguagem?
D.E.P.S.: A língua que falamos, a portuguesa, forma a nossa linguagem, e eu que o diga,
filho de um
emigrante... vivi na Venezuela, estudei em Paris e agora moro no Pólo...
M.Z.
: Não! Não! Não me estava a referir à linguagem da tribo, da nação, da
pátria,
do club, do
grupo, etc...! Está a ver como não falamos na mesma linguagem. Primeiro temos de acordá-la para
depois nos entendermos.
D.E.P.S.: Acordar a linguagem?
M.Z.
: Sim, despertá-la em conjunto — não é essa a acção do autêntico
diálogo?
D.E.P.S. E do ancestral sentido que levou tantos anos de formação, que custou anos e
anos à
nossa
Tradição, graças a eles comunicam...
:
M.Z.
: Tudo o que forma é fixo, e por isso deforma. Ora justamente, uma língua,
qualquer língua; a
portuguesa; a chinesa; a alemã, etc., se a fixarmos numa forma matamos a linguagem, que
essencialmente é fluidez feita de tudo, vinda de toda a parte — inclusivé, e sobretudo, da
escuta
dos silêncios que vêm não se sabe donde, não acha?
D.E.P.S.: Mas temos que nos entender!
M.Z.
: Porque teríamos? Em domínios utilitários claro que temos, seria pueril
que
tal não ocorresse,
mas esse processo torna-se inadequado para abordar outros domínios…
D.E.P.S.: Quais?
M.Z.
: Os que são meramente utilitários ou imediatos, os da alma, os
sensoriais, os
psicológicos, por
exemplo, invisíveis por excelência. É inadequado escutar da mesma maneira o cantar de um pássaro
e o
falar de um técnico de verificação tributária.
D.E.P.S.: Com essas palavras até parece favorecer o desentendimento.
M.Z.
: Espere! Espere! A observação das nossas necessidades utilitárias não
esgota a
natureza da
realidade. Se nos entendemos não é porque somos obrigados ou porque temos o dever. Entendemo-nos
quando prevalece uma qualidade impessoal inerente à nossa consciência particular, mesmo que seja
a
meio dos nossos desentendimentos. É ela, e não outra coisa, que transforma não só a nossa
relação de
uns com os outros, como também preside ao aparecimento dessas relações — quer sejam, repito, de
desentendimento ou não. Pior do que nos desentendermos é fazermos de conta que nos entendemos,
indo
ou avançando nos nossos propósitos deixando isso por clarificar. As raízes do verdadeiro
desentendimento mergulham e alimentam-se desse “fazer de conta”, que por sua vez é alimento de
ilusões. Olhe, por exemplo, da imagem essencialmente perfeita que fazemos de nós próprios — o
ego. E
é graças a ele, ou a isso, que temos a hábil capacidade de podermos “fazer de conta”.
D.E.P.S.: Porém, se é o que eu estou a entender, aquilo a que chama natureza da
realidade
também
terá de comportar esse “fazer de conta”.
M.Z.
: Sim, mas rapidamente transforma-se numa conversa de surdos, sem lucidez,
onde
irá prevalecer a
força da argumentação. Deixe-me dizer-lhe: claro que não é só desse desentendimento que surge o
conflito e a desordem, no entanto, ele é um dos promotores. Com ele emergem a luta, o violento
combate da competição, a supremacia, a autoridade, e por aí fora... É o que acontece, não é? O
que é
que aprendemos? Estando “eu” separado do “outro” “eu”, imediatamente o que quero? Quero
dominá-lo,
obrigá-lo, submetê-lo, mesmo ao preço de o aniquilar, mostrando que a minha força é mais forte
que a
dele. Sobretudo é o tradicional poder que se alastra e se instala ao longo de gerações,
socialmente
arrastando-nos como se fosse uma fatalidade. Tão antigo é e tão viçoso está — o poder — que não
me
parece ter havido sérias e profundas preocupações com as causas e a erradicação dessa velha e
prodigiosa doença.
D.E.P.S.: Mas sem poder como avançarei?
M.Z.
: O poder a que se refere a dominação não é só “poder de aceleração”,
“poder
político” ou “poder
de isto ou de aquilo”, é antes uma bagagem, trouxa psíquica, um estado de alma que não só
antecede
como domina a própria acção, impedindo-a de ser pura, frontal, directa, espontânea.
D.E.P.S.: Toda a montanha tem o seu cimo!
M.Z.
: Um homem cheio de poder — não é necessariamente um homem que pode, ou
que
ainda pode — é um
ser dominado pelas suas próprias ideias. E de tal modo é, tão inseguro está, que pode mesmo
chegar
ao ponto de abusar do poder — que de facto não tem.
Relativamente a avançar: se você não tiver nenhum modelo para imitar, nenhum objectivo a
alcançar,
nenhum fim a atingir, despreocupadamente você avançará — e com toda a naturalidade.
D.E.P.S.: Não foi isso que nos ensinaram!
M.Z.
: Também nos ensinaram que é preciso “lutar pela vida” — se o fizermos, se
incondicionalmente
fizermos e adoptarmos o rumo de tudo aquilo que nos ensinaram, arriscamo-nos a perder mesmo até
a
vida, tornando-nos combatentes de uma qualquer absurdidade.
D.E.P.S.: Então, se não é necessário fazer tudo isso que nos ensinaram, gostaria de lhe
perguntar
onde vamos parar?
M.Z.
: É desnecessário fazer prognósticos. Basta ver onde já chegámos ao fazer
tudo
o que nos
ensinaram. Hoje sabe-se o preço que o homem paga por ao se ter feito rodear por tudo, ter com
isso
se separado de tudo. Veja a destruição do equilíbrio natural, a poluição, a demografia, as
doenças
terríveis, o nacionalismo, o terrorismo, a desordem económica e política à escala mundial, a
criação
de um ambiente geral que não é nem fisicamente nem mentalmente são para a maioria das pessoas
que
nele vivem...
D.E.P.S.: Parece-me um quadro demasiado negro, e depois imputar aos nossos antepassados
culpas sobre
certos acontecimentos actuais...?
M.Z.
: Os nossos antepassados estão aqui connosco! O que somos nós? Esta
actualidade
não é fixa.
Nesta impermanente actualidade o que questiono não é a evolução, o progresso ou o
desenvolvimento —
se é que se podem chamar assim — mas o modelo adoptado, o rumo seguido.
D.E.P.S.: Bom..., já estamos a falar há um pedaço e ainda não lhe perguntei nada sobre a
sua
exposição. Porquê a “história secreta da viação”?
M.Z.
: Sobre a história secreta da exposição digo-lhe tudo, sobre a da
aviação...,
pois bem..., ela
está aí — exposta — veja.
D.E.P.S.: Então o que há de secreto na exposição?
M.Z.: A visão! Já viu?
D.E.P.S.: Já vi o quê?
M.Z.: A exposição.
D.E.P.S.: Sim, claro que já vi! Mas vamos lá por partes: qual é o significado da sua
exposição? Por
que a fez? Quando é que começou a sua actividade e em que corrente a
inscreve?
M.Z.
: Há uma questão que já ficou para trás, e permita-me que a vá lá buscar,
pois
nela está
implícita uma boa parte da resposta à sua pergunta...
D.E.P.S.: Mas não fuja.
M.Z.
: Não, não fujo, é para acordar a linguagem. A questão é a do autor.
Geralmente entende-se por autor “a causa primeira ou principal de alguma coisa”. Mas havendo
mais do
que uma acepção do termo, na prática a diferença entre o “autor do livro” e o “autor do crime” é
feita pelas “coisas” — actos — que o “autor” pratica, ou seja, pelos efeitos, não pela causa.
Ora a
causa é inseparável do efeito (a coisa) como a água do pingo é inseparável da água do mar. (De
resto
são a mesma palavra, apesar de juridicamente “coisa” passar a ter o sentido de res realidade).
No
entanto, quando se diz que a “água é inseparável” na realidade separa-se, porque apenas se está
a
olhar para os efeitos, considerando-se não a água, mas o pingo e o mar. E isto, talvez, porque
só os
efeitos contam, ou porque só contamos os efeitos...? Enfim, aquilo que digo é que a “causa” e a
“coisa” são a mesmíssima coisa e têm a mesmíssima causa. Não há princípio nem fim,
consequentemente
não há dualidade. Tudo depende de tudo. Tudo o que sustenta é também sustentado, por isso, e
volto
atrás, onde está o autor de qualquer coisa?
D.E.P.S.: Muito bem, mas é importante identificar o criminoso para o impedir de praticar
mais
crimes! Assim como é importante assinar um quadro.
M.Z.
: Ou um cheque! Eis os domínios úteis, mas mesmo aí, muitas vezes são
inadequados. Deter o autor
do crime, na maioria dos casos, não erradica o crime. O pagamento da multa, o cumprimento da
pena,
mesmo a condenação à morte, são medidas dissuasoras que nunca vão à causa do problema,
justamente
por ser entendida separadamente do efeito. Daí que, a figura do autor apenas tenha mera validade
social, verbal ou jurídica, essa figura serve um determinado fim, mas não é factual, não é real,
(da
mesma maneira a placa de trânsito que indica a cidade do Funchal não é a cidade do Funchal).
D.E.P.S.: Então, neste caso, qual é a figura real?
M.Z.
: Neste caso é o facto de sermos violentos. Mas isso, além de não ser
considerado nem tratado em
profundidade, é pelo contrário estimulado nesta sociedade competitiva: pela educação; pelo
emprego-desemprego; pela televisão; pelo desporto; pela política...
D.E.P.S.: De acordo, a componente técnica ou negociável é observada em detrimento da
psicológica, no
entanto, por exemplo, graças às impressões digitais, que não são uma mera
impressão...
M.Z.
: Desculpe-me interrompê-lo, mas não nos demoremos no domínio
utilitário.
A impermanente figura do ser, apesar da social identificação, nunca é idêntica, esse é o facto
real.
No entanto, é isso, e não a alteridade que ainda hoje é considerado real. Essa insidiosa
confusão
gera uma reacção de insegurança e os consequentes abismos de complexidade em que a vida se
tornou e
onde o ser se debate e o espírito se aliena. Não há ninguém que o ignore — prova-o a sede de
segurança, as correrias — mas são poucos os que querem ver.
D.E.P.S.: Já percebi, quer dizer que não só os meios estão trocados pelos fins, como
também
são
inadequados quando aplicados noutros domínios. No todo a separação...
M.Z.: A fragmentação...!
D.E.P.S.: …A fragmentação é a pior das causas e tem o pior dos efeitos! Bom, mas também
me
parece
ter percebido que todos esses fragmentos são preciosos.
M.Z.
: Exactamente, só que por muito preciosos que sejam não são a realidade
fundamental, como já se
disse, são um processo adequado em certos domínio utilitários. Se se divide um pão aos bocados é
para caberem na boca.
D.E.P.S.: É cómodo dividir o pão e não o comer às dentadas.
M.Z.
: Será por comodidade, ou não será porque a boca tem uma determinada
dimensão?
D.E.P.S.: Sim certamente, mas também porque desse modo os produtos tornam-se mais
acessíveis
e a sua
conservação mais facilitada. Agora penso: será que a fragmentação tem implicações directas
com a
pureza das coisas?
M.Z.
: Continuemos a considerar a comida como exemplo: quando comemos, por um
lado é
estimável que os
alimentos se encontrem intactos, se já estão mastigados rejeitamo-los, não os comemos. O acto de
comer implica que a comida se encontre inteira, intacta, — mesmo que se divida o peixe às postas
ou
o tal pão aos bocados —. Por outro lado, esse facto implica da nossa parte o suplementar
trabalho
que dá o acto de desfazer aquilo que está inteiro. Esse é o apreço pela frescura. A frescura não
tem
preço. Porém, se hoje o acto de mastigar cai no desemprego, é porque há tendência em adoptar o
que
já está mastigado, talvez por ser mais confortavelmente ingerido. A frescura não tem preço nem
data
limite — em profundidade, é pura gratuidade. Respondi à sua pergunta?
D.E.P.S.: E isso é aplicável à arte?
M.Z.
: O acto de consumir, não o de comer, pressupõe que comemos coisas
desfeitas,
mas certificadas
por conceituadas instituições que garantem e fiscalizam a origem da sua elaboração, enumerando
minuciosamente os ingredientes e datas limites de consumo
D.E.P.S.: A arte é consumível?
M.Z.
: Considerar, fazer atentamente seja lá o que for, tem inevitavelmente como
consequência o
constante descobrimento da realidade — a novidade — quer exteriormente quer interiormente. A
esse
descobrir chamo arte e, com essa descoberta encontra-se ordem.
A arte não se faz, emerge, e passa pela vida grande, não pela grande vida; passa pela
vulnerabilidade das ideias e não pela sua fixação. Não passa por habilidades e astúcias, sejam
socialmente animáveis ou não.
Não sendo ofício nem profissão, a arte está por inteiro onda está o homem inteiro, seja pintor,
padeiro, médico, aviador, pedreiro... Se bem que signifique fazer, nos seus estados mais
invisíveis
e imóveis (nos que antecedem a acção) a arte é a capacidade de escutar a voz interior, vocare:
chamar — a vocação.
Por tudo isto, e para responder à sua pergunta: a arte, como a água, não pode ser consumível,
visto
também não ser um produto.
D.E.P.S.: Mas na prática a água consome-se, por isso existem os contadores que a
contam.
M.Z.
: Como sabe, o senhor Duchamp teve a ideia, não sei se a realizou, de
fazer
contadores para
contar o ar que se respira... Uma coisa é contar o que se gasta outra é gastar. Quando se olha
só
para a contagem, então aí, o que se gasta transforma-se em produto e em consumo. Esse processo
ao
ser aplicado em todos os domínios ajuda a criar as relações tacanhas e mercantis que temos com
as
coisas e com os seres. Prova-o, a paranóia do consumo, e a asfixiante incapacidade em fazer
desaparecer o lixo produzido por ela.
D.E.P.S.: Também estou de acordo.
Mas o artista tem de viver! É por isso que existem os mercados de arte? Por isso as instituições
fazem imensos esforços...
M.Z.
: Os mercados de arte referem-se à prodigiosa arte de contar. Duvido que
existam para responder
às necessidades das pessoas, como é o caso, por exemplo, dos mercados de hortaliças. Se as
instituições criam as “grandes-superfícies culturais”, certamente é porque já estão criados os
super-mercados.
D.E.P.S.: Já que dá tanto ênfase ao fazer, diga-me uma coisa: contar não é
fazer?
M.Z.
: A computação era uma contagem que servia para calcular, por cômputos, as
festas móveis do
calendário dos cristãos. Hoje, é uma divindade que serve para fazer tudo — enquanto isso, as mão
caem no desemprego e o fazer adoece.
D.E.P.S.: Mas o artista faz contas..., e às vezes negócios.
M.Z.: Que artista?
Sabe, ter uma folha de papel branco à frente para lá descobrir o desenho: da pintura, da
escultura,
da arquitectura, do automóvel, do vestido, seja lá do que for. Desenhar. Responder com um gesto
à
pergunta do papel branco, fazer um sinal, traçar — um risco — não é um negócio, é a própria
negação
do negócio, é a afirmação do ócio. O ócio, a desocupação, o aprender, a arte são naturalmente
isso.
Se estamos ocupados com o que fazemos, não fazemos nada, só se faz quando se ama o que se faz.
Descobrir um desenho, desenhar, só vê o dia com essa imensa disponibilidade, quando não há
qualquer
fim a atingir, quando não nos ocupamos com isso.
D.E.P.S.: Mas para se ver uma coisa ela tem de estar feita.
M.Z.
: Não se descobre o desenho como se descobre o caminho marítimo para a
Índia —
de resto o
caminho esteve sempre lá, o que permitiu que a direcção, para a Índia, fosse encontrada — O
desenho,
que essencialmente é a acção de desenhar, nunca está lá. É como os passos: Vão sendo feitos à
medida
que são desfeitos, e com isso avança-se.
D.E.P.S.: Avança-se, muito bem, mas insisto: e com que meios?
M.Z.
: A sustentação daquele que questiona o significado da sua existência com
tremenda seriedade,
inevitavelmente passará por aquilo que chamo: arte de viver — aí tudo está implicado, a arte de
viver não tem moldura. Contentando-se com pouco, a sua vida é inteiramente dedicada a procurar:
primeiro, a pergunta que só ele e mais ninguém pode fazer, e depois dar-lhe a resposta que já
vislumbra muito para lá dos tradicionais horizontes que lhe foram impostos. Isso é para ele um
caso
tão sério, que nunca lhe passará pela cabeça fazer quaisquer piruetas a favor ou contra os meios
de
subsistência disponíveis pela sociedade em curso. Percebe?
Esse é o caminho (que de resto não é seu, no sentido da autoria) e dê lá por onde der é por lá
que
ele avançará.
D.E.P.S.: No entanto ele está inserido numa sociedade que também
avança!
M.Z.: Numa direcção única!
D.E.P.S.: Mas mesmo assim propiciando-lhe inúmeras formas de expansão.
M.Z.,: Para que servem? O que ele quer é libertar-se de todas elas.
D.E.P.S.: Não me diga que, por exemplo, uma feira de arte não confere prestígio, fama,
cele...
M.Z.
: Mas qual fama, qual celebridade! Já lhe disse que o que ele quer é
libertar-se, e de todas as
formas. Ver a realidade de facto, essa é a prioridade.
D.E.P.S.: E a valorização do trabalho?
M.Z.
: O valor que as coisas têm, sobretudo as feitas de dentro, não é possível
de
ser acrescentado,
muito menos por um jogo social, sejam acções da Bolsa ou nomes na História. Só a virtude
luminosa no
que está feito conta. Pessoalmente acho que essa virtude chega mesmo a ser terapêutica, porque
essencialmente essa luz é portadora de ordem.
D.E.P.S.: Mesmo que essa luz não possa ser vendida, será bom para ele vender alguma
coisa!
M.Z.
: Claro que sim, mas não cairá na armadilha da contagem e da rentabilidade,
porque a resposta
que quer encontrar e essa luz são a mesma coisa. Posteriormente essa luz pode adaptar-se a
inúmeras
causas e sujeitar-se a inúmeros efeitos — mesmo póstumos — mas o carro não foi posto à frente
dos
bois, ou seja, nada foi valorizado.
D.E.P.S.: Já está a concordar um pouco comigo.
M.Z.
: Acha que sim? Olhe que tanto as “feiras de arte” como as “guerras santas”
são
coisas
igualmente incompreensíveis.
D.E.P.S.: Mas diga-me lá, como é que se sabe que aquilo que se vê tem a tal virtude
luminosa?
M.Z.
: Isso não se sabe, vê-se. A arte não pode ser ensinada na escola que
capitaliza conhecimentos;
os valores não são apanágio das “grandes-superfícies culturais”; o julgamento não é dos que
escrevem
sobre isso; a luz também não é dos que fazem isso. Todos esses factores são impessoais. Não
pertencem a ninguém.
D.E.P.S.: Espere! Espere! Não estou a perceber. Importa-se de recapitular? Primeiro há a
coisa
feita. Depois temos a luz...
M.Z.: Ou não temos!
D.E.P.S.: Sim! Depois há a luz, que para si é o valor real…, mas…, essa luz não é de
ninguém!?
M.Z.: É de todos.
D.E.P.S.: Espere, não vá tão depressa! Se não é de ninguém, então como teremos a
consciência
da sua
existência?
M.Z.
: A luz que temos na consciência não é nossa, porém, comporta e dá
claridade à
consciência que
temos da luz. É a luz que vê, é a luz que faz!
D.E.P.S.: E se não me referir apenas ao que faz? E o que vende? E o que
vê?
M.Z.
: Porque os separa? Todos os que vêem fazem, sejam visitantes, vendedores,
compradores ou
fazedores, o problema é se eles vêem — esse é que é o facto.
D.E.P.S.: Então relativamente a factos, e depois de termos dado tantos saltos deixe-me
dar
mais um,
para falarmos de voar? O Senhor voa?
M.Z.
: Porquê o Senhor voa? E porque não o Senhor vê? De onde faz essa pergunta?
Fa-la-á a partir das
noções que o formam, de um lugar dominado pelos seus conhecimentos onde só os aviões e os
pássaros
voam, ou fa-la-á — e admirar-me-ia muito que o fizesse — de um lugar desconhecido, com toda a
liberdade? Sem esperar pela resposta que gostaria de ouvir e que está implícita na sua
pergunta.
D.E.P.S.: Acha que o homem poderá deslocar-se no ar sem apoio material?
M.Z.
: Os pássaros e os aviões não voam da mesma maneira, porque teria o homem
de
voar como eles, ou
deseja saber se “se pode atravessar o abismo sem passar pela ponte”? O que deseja saber
colocando
essa questão?
D.E.P.S. Se os homens poderão voar, independentemente do voo
transportado.
M.Z.: Os homens não voam porque nunca os ensinaram.
Mesmo depois de milhares de anos e de ciclópicos trabalhos em todos os domínios, mesmo depois de
todos os prodígios tecnológicos, o rumo, como já dissemos, seguindo sempre dentro dos mesmos
eixos,
como pode o homem — que segue nesses eixos — “pensar” uma coisa realmente genuína que não conste
nesse velho e limitado programa?
Mas, voltando atrás a qualquer coisa aparentemente mais trivial, permita-me corrigir a sua
pergunta...
D.E.P.S.: “Os homens vêem”?
M.Z.
: Exactamente era isso mesmo que lhe ia pedir? Vejamos se o que parece ser
uma
evidência, de
facto o é. Vejamos se podemos sair dos eixos — e do programa.
D.E.P.S.: E os homens não vêem?
M.Z.
: Ver e pensar que se vê são duas coisas diferentes. Ver é ver. Ver é sem
experiência, sem
mistura com nada contido na memória. Ver é incomparável. Ver é desconhecer.
D.E.P.S.: O quê?!
M.Z.:
Sim! Ver é desconhecer. Avançar através do desconhecido é
descobrir!
D.E.P.S.: Mas..., e aquele que vê?
M.Z.
: Quando realmente se vê não há ninguém que veja, ou seja, não há o centro
a
partir do qual
diz-se que se viu.
Pensar que se vê, é o hábito de comparar o que se está a ver com o que está gravado na memória,
que
é a recordação do que se viu. Normalmente impomos essa imagem ao que estamos a ver e distorcemos
a
visão.
D.E.P.S.: Mas esse é o processo adoptado.
M.Z.
: Porque desse modo, vendo só o que se quer, lisonjeia-se o “eu” da visão.
Assim, mecanicamente
no acto de ver forma-se o hábito de ver.
D.E.P.S.: Chegar-se-á a ver alguma coisa?
M.Z.. Ver é um acto directo, fulminante, tão forte que o hábito some-se quando se vê — o hábito
de
ver não vê.
D.E.P.S.: Quais são as relações entre ver e fazer? Há uns momentos atrás julguei
perceber
que para
si são a mesma coisa.
M.Z.
: Em si, a visão vem do profundo silêncio, da imobilidade psicológica, onde
nem
o tempo nem o
espaço nem o pensamento se podem mexer, sem que todavia as coisas deixem de ser como são. Há o
homem
tal como é, há a árvore tal como é, os rios as montanhas os mares são tal como são. Mas as
coisas
são como são graças a não serem nem fixas nem permanentes, caso fossem não teriam sequer
aparência.
Quer isto dizer: tudo é como é porque está sempre — sem pausa — a deixar de ser como é. Todas as
coisas são incessantemente uma coisa outra, outram-se. E serem uma coisa que se outra, vazia de
identidade, confere-lhes infinita grandeza — o que poderiam ser mais?
D.E.P.S.: Mas para fazermos, para sermos, precisamos de tempo.
M.Z.
: Está-se a referir a prazos, não é? Mas deixe por uns instantes os
domínios
utilitários, e
convido-o a ver se uma árvore precisa de tempo para crescer.
D.E.P.S.: Então? E não precisa?
M.Z.
: Se precisa é porque está a pensar em cortá-la. Não precisará antes da
água?
Da terra? Do ar?
Do sol?
D.E.P.S.: Está bem, mas eu preciso de tempo para a ver crescer!
M.Z.: Precisa de esperar, precisa de fazer tempo.
D.E.P.S.: Isso mesmo, preciso de fazer tempo.
M.Z.
: Quando se faz tempo, não se faz nada, espera-se. De facto para se fazer
qualquer coisa temos
que desfazer o tempo. O desfazer do tempo é um processo que não requer nenhuma capacidade
especial,
ele ocorre quando se está plenamente atento e se é inteiramente a acção de fazer, ou ver. Assim
que
desfazemos o tempo, desfazemo-nos dele... e aí vemos a árvore.
Mergulhados na contrariedade de uma espera, ou na tortura de uma esperança o “tempo” parece que
não
passa, o que não quer dizer que o tempo esteja desfeito.
D.E.P.S.: E quando está ele desfeito?
M.Z.
: Quando, como já dissemos, em vez de nos ocuparmos do que fazemos, amamos
o
que fazemos. O
trabalho tortura-nos quando nos ocupamos com ele. Só a acção liberta do trabalho, a ocupação do
trabalho não faz nada. Amar não é ocupação.
D.E.P.S. Queria perguntar-lhe agora, sobre que assunto — para si o mais importante —
gostaria que
lhe fizesse uma pergunta?
:
M.Z.: Sobre o clima!
D.E.P.S.: Então como acha que está o tempo?
M.Z.
: Ainda não chegamos à Primavera, mas na semana passada fez um calor
excessivo
para a época. O
ar estava seco. As serras sobranceiras ao Funchal arderam durante três dias. Devido aos ventos
fortes o aeroporto esteve condicionado. Felizmente que o tempo não é fixo. Já choveu um pouco. E
hoje está um dia lindo, não está?
D.E.P.S. — Ilha da Madeira, Primavera de 1998
“história secreta da visão”
Manuel Zimbro, Lourdes Castro, PORTA33, 1997. Vídeo Hi8.
Produção — PORTA33
Agente secreto — Lourdes Castro
Assistentes de realização — Cecília Vieira de Freitas e Maurício Pestana Reis
Montagem — Pedro Clode
Os estúdios “Camara Sutra” agradecem a colaboração de José António Dantas
Realização — Manuel Zimbro
Exibição do video:
Livraria Assírio & Alvim II (Cinemas King), Lisboa, 1998
O que é secreto é desconhecido e o que é desconhecido é novo.
o que de facto é, só pode ser novo.
Nada se repete!
nada é mais imprevisível, mais sagrado, mais misterioso que a novidade.
seja o que for do passado do presente ou do futuro, não é novo — o que é novo não é do
tempo,
e só será do agora, se for inteiramente descondicionado e livre.
o agora é fulminante.
“não há nenhum tesouro escondido no universo”.
a novidade floresce na paisagem interior, como o fogo nos cozinhados dentro de um forno.
sem pausa sai do que é exterior para entrar num interior que nunca é absolutamente
interno.
imperturbável, mas muito acordada, a sensibilidade responde a todas essas modificações,
em equilíbrio.
As rãs, os melros e outros, imobilizam-se para escapar ao perigo,
e de tal modo, que parecem sem vida.
a figueira deixa-se comer os figos pelos pássaros
sem um pio.