Uma Porta aberta para o corpo inteiro da cidade

Entrevista a Nuno Faria, curador
Por Susana de Figueiredo

“Passar ao lado desta oportunidade seria desastroso”, afirma Nuno Faria, curador da exposição ‘Da continuidade das formas e do modo como pousam’, de Paulo David, que avança, no próximo sábado, dia 9 de março, para o segundo momento.

Sabia-se, desde o princípio, que a exposição ‘Da continuidade das formas e do modo como pousam’, do arquiteto madeirense Paulo David, seria uma viagem para experimentar “em vários tempos”. Assim, cumprido que está o primeiro momento, construído em torno de um olhar profundo sobre um extenso conjunto de maquetes assinadas por Paulo David, avança-se agora para um novo tempo, que se imbui de um novo olhar e de uma nova reflexão. Uma nova viagem até ao fundo do tempo que se segue. Outra construção que pousa sobre a sua antecessora, num processo consubstanciado sob a forma de uma linha contínua, porém, capaz de escalar ao cume de outros precipícios. Observando e reinventando. Sempre.
É neste contexto que acontece, já no próximo dia 9 de março, a tão aguardada segunda fase da exposição de Paulo David, seguida de uma conversa entre o autor e dois dos mais eminentes nomes da arquitetura universal: Gonçalo Byrne e Ana Tostões. Nesse dia, arrumam-se as maquetes e a Porta abre-se para dar entrada ao Atlas do Funchal, pensado e traçado pela equipa do Gabinete da Cidade, liderada por Paulo David, projeto municipal que surgiu na sequência dos incêndios que, em 2016, deflagraram na Região, destruindo parte da urbe.
Com curadoria de Nuno Faria, esta exposição/reflexão, toda ela concomitante ao seminário de desenho ‘Mais importante do que desenhar é afiar o lápis’, assume-se como uma espécie de pensamento inaugural em torno de conceitos como território, lugar, afetos. Uma forma de ser e estar no mundo, que procura absorver dos espaços, com tudo o que estes comportam e significam, quer em si mesmos, quer para os outros, o mesmo olhar que lhes devolve. É precisamente neste olhar que se detém Nuno Faria, enquanto recorda o “grande choque positivo” que teve, no dia em que pôde, por fim, conhecer pessoalmente Paulo David. “A equipa tinha acabado de fechar o Gabinete da Cidade, e ele [Paulo David] fez uma apresentação morosa, absolutamente incrível, sobre aquele projeto. Eu, como toda a gente, tinha acompanhado a tragédia dos incêndios, e fiquei muito impressionado com o trabalho desenvolvido naquelas circunstâncias, com a leitura que haviam feito sobre o Funchal. No fundo, percebi que aquele projeto tinha, também, uma relação muito forte com o desenho, que é uma linguagem que eu estudo, e pela qual eu me interesso há muito tempo. Mas não sou, nem de perto nem de longe, um especialista em arquitetura, por isso, digamos que a minha intervenção junto do Paulo David é homeopática. Trata-se de uma ligação estabelecida, sobretudo, a partir das lentes do desenho.”

 

A ideia era transportar a cidade do Funchal para a Porta 33.

 

O curador nunca teve dúvidas de que esta exposição seria desdobrável. “Quando começámos a pensá-la, vimos logo que seria uma exposição com mais do que um momento.”, sublinha, explicando que o principal objetivo era abrir a Porta 33 à cidade e manter vivo o fluxo dessa veia, mesmo depois de terminada a atividade expositiva. “A ideia era transportar a cidade do Funchal para a Porta 33, e, a partir da Porta, fazer irradiar reflexões e conhecimentos vários, ou seja, fazer com que a Porta e a cidade fossem vasos comunicantes entre si.”

 

Há todo um trabalho que o Paulo e a sua equipa fizeram que é revolucionário, que é absolutamente do seu tempo. Deste tempo que estamos a viver.

 

A 24 de novembro último chegaram as maquetes, dezenas de objetos cristalizadores de desejos, uns concretizados, outros por concretizar, disseminaram-se ao longo dos três pisos da Porta 33. O acervo inspirou uma série de conferências, leituras, debates, encontros e várias outras narrativas, que, ali, se predispuseram a nascer. E eis que, agora, o lápis volta a afiar-se para fundar uma nova veia cerzida à memória da primeira. Vem aí o segundo momento ‘Da continuidade’, mais um lugar onde pousar para ver. “Passar ao lado desta oportunidade seria desastroso”, salienta Nuno Faria, a propósito de uma exposição que (des)constrói o corpo ao território, desnudando-o. “A intervenção que o Paulo [David] propõe é uma intervenção que comunga do espírito do desenho, pensado enquanto prática ecológica, ou seja, trata-se de uma intervenção cujo espírito é o de retirar, mais do que acrescentar. Trata-se de olhar para os vazios, de pensar que os edifícios também são pontos de observação, de pensar a cidade como um espaço de afetos, de encontros, e não só como uma soma de edifícios. Neste sentido, há todo um trabalho que o Paulo e a sua equipa fizeram que é revolucionário, que é absolutamente do seu tempo. Deste tempo que estamos a viver. É por isso que eu considero que passar ao lado desta oportunidade seria desastroso.”

 

vamos entrar pelo Atlas adentro e pensar de forma mais estruturada”.

 

Nuno Faria acredita que esta visão límpida é o caminho certo, e lamenta que, no Funchal, ainda persista outro tipo de paradigma. “Infelizmente, continua a existir, no Funchal, um paradigma de acrescentar. O exemplo do hotel Savoy é completamente inacreditável. Não dá para acreditar como é que, nesta altura, se está a fazer aquilo. Já estamos numa antecâmara de uma nova visão do mundo, e, no entanto, ainda há este estertor, que é o último estertor desta lógica cumulativa, capitalista, de fazer em grande, fazer muito, fazer em altura, com muitos quartos, etc., quando se percebe, pelo trabalho do Paulo David, do João Favila e de outros arquitetos, que conhecem bem o território, que já estamos noutro paradigma: o paradigma do lugar, com a compreensão íntima e profunda do mesmo, trans-histórica. É precioso que haja alguém com esse conhecimento, que não existe nos livros. É por essa razão que este projeto é certeiro; é o projeto certo para o lugar certo, no tempo certo. E a Porta 33, que sempre ocupou um lugar muito importante na cidade, é cada vez mais reconhecida como uma plataforma de produção de conhecimento e de reflexão.”

 

Nós temos o olhar muito viciado, e aquilo que o Paulo faz é criar as condições para que haja uma clarividência, uma limpidez do olhar.

 

Nuno Faria promete que, no próximo sábado, na abertura deste segundo momento da exposição, “vamos entrar pelo Atlas adentro e pensar de forma mais estruturada”. No fundo, poderemos absorver a narrativa no seu todo, ver melhor para dentro da cidade, “olhar para as praças, para os bairros, para os vazios”, esclarece o curador, que se diz esperançado na contaminação positiva do olhar de Paulo David. “Espero que, a partir da Porta 33, saia um conjunto de visitas guiadas ao Funchal, que as pessoas saiam daí mais informadas, acompanhadas. Nós temos o olhar muito viciado, e aquilo que o Paulo faz é criar as condições para que haja uma clarividência, uma limpidez do olhar. O trabalho dele está, de facto, muito ligado ao desenho, existe muita precisão e uma sensibilidade aguda às pequenas mudanças. É um trabalho de atenção, de conhecimento profundo do território, do lugar, dos hábitos, das crenças, da topografia. Não é o trabalho de um construtor, é o trabalho de um desenhador.”

 

Sobre Nuno Faria (Lisboa, 1971)
Curador, é atualmente diretor artístico do CIAJG - Centro Internacional das Artes José de Guimarães. Entre 1997 e 2003 e 2003 e 2009, trabalhou no Instituto de Arte Contemporânea e na Fundação Calouste Gulbenkian, respetivamente. Viveu e trabalhou no Algarve entre 2007 e 2012, onde, entre outros projetos, fundou (em Loulé, em 2009) o projecto Mobilehome - Escola de Arte Nómada, Experimental e Independente. É professor na ESAD - Escola de Artes e Design das Caldas da Rainha.