João Lima Pinharanda
Teoria Particular das Imagens

(para a beatriz, a leonor e
também para o martim)

.tenho uma memória de uma coisa que tive. de um sítio em que ainda não/já estive mas podia já/não ter estado. tenho ideia que se não tive nada disto que digo ter tido. podia ter tido tudo aquilo que digo ter tido. um urso que nunca me deram e eu vi numa montra. uma aventura adolescente numas ilhas possíveis.

.faço colecções de memórias minhas. quero dizer de coisas da minha memória. é a minha maneira de (me) organizar (n)o mundo. a minha memória é um caixote velhote onde junto as coisas onde guardo as coisas onde escondo as coisas onde deixo as coisas. ou esse caixote é a minha memória. mas também faço as minhas colecções de memória. quero dizer que as invento. que faço meu o que me é alheio. que torno dos outros o que me cabe. que por vezes invento memórias de raiz. ponho-as na minha vida a primeira vez como se sempre lhe tivessem pertencido ou pretendo esconde-las como se isso fosse possível – apagá-las. afinal apenas as cubro escondo-as atrás de outras memórias.

.no meu sistema cada memória pode ser representada por uma coisa. em princípio, essa coisa é uma forma. digamos, uma imagem/figura. ou, mais basicamente ainda, um "boneco". esses bonecos articulam-se entre si arrumam-se no espaço do meu pensamento e no próprio espaço físico que lhes destino. nada é definitivo e cada uma das referidas imagens pode alterar-se constantemente em cada momento da construção destas minhas memórias reunir-se a outras de modo inesperado mudar de forma e de sentido de cor e de papel. nem sequer ando à procura de nada de definitivo de estável de certo apenas a tentar variantes alternativas jogos de recreação da imaginação e decoração da realidade. às vezes sei o que vou fazer e faço-o – raramente. outras começo sem saber nada, continuo cego durante muito tempo. desisto retorno insisto. é frequente encontrar-me diante de uma ideia que acabei de construir ou de que prevejo a imagem final e sentir-me feliz. posso dizer alegre – dão-me vontade de rir os resultados de algumas associações de cores gestos formas matérias. ou não não dão.

.não há, portanto, muito de espírito no tipo de trabalho que pratico. o que há, fundamentalmente, é acção, a acção do corpo nos vários momentos de escolher o modelo (o que é já capturá-lo), de o capturar (o que é já registá-lo), de o registar (o que é já alterá-lo), de o alterar (o que é já transmiti-lo). é difícil separar os elementos deste processo. é uma vertigem. em que pensas quando te precipitas no abismo quando és tragado por uma vaga? o que sentes enquanto sossegadamente pensas num novo problema quando achas a solução de um problema? fica tudo junto fica tudo ao mesmo tempo – não se distinguem os raios da roda que roda. tenho medo de me esquecer das coisas das pessoas dos tempos. tenho que construir uma memória. e tenho uma memória que quero guardar. (de) que não (me) quero perder. que quero deixar. mas ninguém pode saber senão eu. se não eu ia sentir-me tão frágil perdido sem poder olhar ser olhado. é tudo para mim o que faço – para os outros esta sinceridade oferecida roubada cifrada. o mundo fica mais claro assim. toma novas formas. e mais livre por isso e secreto enfim no meu coração. e tenho medo que a inteligência não me chegue ao coração.

.eu sei o modo como faço valer estas imagens. e sei que nada disto vale para ninguém o que vale para mim. ou não vale mesmo nada. e que para mim não sei o que valerá para além de valer a minha vida.

joão lima pinharanda, 10 de maio de 1993

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