(...) O Céu físico é anterior ao seu conceito matemático, é uma aquisição da longa mentalidade colectiva de
gerações de devaneios nocturnos (...)
Geneviève Mogan
Cerimónia Nocturna
O mundo não é o território, sabemo-lo. O cachimbo representado numa tela não é um verdadeiro cachimbo, também o sabemos. Magritte escreveu-o em letras aplicadas por baixo do objecto que ele mesmo pintou e Foucault deixou-nos sobre isso um dos seus textos mais brilhantes.
Os mapas do mundo têm ar de descrever com precisão o recorte da costa, os acidentes do terreno,
os
lagos e os mares mortos, as sinuosidades caprichosas dos rios ou os trajectos que nos permitem
ir de
Paris a Lisboa, de Tallin a Moscovo, de Los Angeles a Nova Iorque, de Damas a Ispahan.
Servimo-nos
deles e isso funciona. Podemos, graças a eles, enviar um míssil sem grandes erros ao sítio onde
é
preciso, podemos estudar um traçado de auto-estrada, a construção de uma barragem, ou
identificar o
nosso itinerário para as próximas férias na Toscana.
Mas, mesmo transportados de avião da Europa para a Ásia, lá veremos então, na maior parte dos
jornais locais, uma representação do mundo que faz vacilar a nossa compreensão. Mediante uma
simples
descentralização do ponto de vista, a nossa habitual visão encontra-se desorientada,
estupefacta.
Antes disso, dentro do próprio avião, teremos podido descobrir uma tentativa de representação do
globo terrestre que faz valsar a extremidade dos continentes e engordar-lhes o ventre. Só não
estaremos perdidos graças aos grandes pontos encarnados ou pretos associados aos nomes de
cidades e
às linhas curvas que desenham as rotas aéreas por onde passa o serviço da companhia.
Os mapas são ficções. Assim como são os sistemas filosóficos ou científicos, a visão atómica de
Lucrécio ou quântica de Niels Bohr.
Os mapas de Geneviève Morgan têm a exactidão viva e alegre das ficções, o seu esplendor dourado.
Eles abrem-se para o turbulento infinito do sonho e encantam-se de um suplemento de verdade que
falta algures.
Estes mapas não são intangíveis, emparedados no seu silencio e fixos. Eles dão-se a ver em
irresistíveis derrubamentos de luz onde a pintura verte o dia na noite e a noite no dia.
O azul celeste enche-se de negro e forja as estrelas no obscuro que se estende e se abre até ao
infinito.
Magias das cerimónias nocturnas.
Magias do esplendor estelar.
“Se as estrelas são sóis, porque é que a soma de todas as suas luzes não ultrapassa o brilho do
sol”
interrogava-se Képler.
O mundo apaga-se, as suas referências desaparecem. De repente tudo oscila e, do coração da
noite,
levanta-se o encantador deslumbramento de sóis longínquos e da sua luz fóssil.
MICHEL NURIDSANY – le 18/09/98 13:56:44
Contra o empobrecimento do céu sem estrelas
A extensão do céu próximo não é invisível, mas a humanidade do séc. XX tem tendência em fazê-la
desaparecer, em tapá-la, em isolá-la no recuo longínquo das galáxias inacessíveis.
O empobrecimento do céu sem estrelas vai de mãos dadas com o aumento do valor comercial do Sol.
O desfile das Constelações nocturnas que obrigava os Antigos à contemplação da nossa imersão no seio
do tropel das estrelas e que nos contava no número da manifestação, é-nos encoberto pela redução
prática da nossa posição espacial na contagem dum tempo humano de quartzo onde a mobilidade do
ponteiro dos segundos apenas alegra o espaço local, mas falta fazer-nos ressentir a nossa posição
específica de pertença ao espaço ou ao tempo do nosso ambiente celeste natural.
A vinda ao mundo da humanidade, por muito breve que seja, procede do conjunto da manifestação, e
torna-a por este facto interdependente do seu ambiente estrelado.
Solidão impensável da noite sem estrelas.
Não haverá um perigo em se fazer ocultar as estrelas, como quem se encobre a face para não ver, para
ignorar o que nos olha.
Derrubamento da aporia da Leibnitz, porquê um mundo em vez de nada em porquê nada em vez de um
mundo. Se o essencial do conteúdo do projecto diurno levado pela corrente actual da individuação dos
seres parece guardado no segredo dos limbos, não estamos nós já a ver a metamorfose criada pelo
colectivo desde os últimos clarões vesperais, cada noite transformada para o olho do nosso planeta
em mega-boîte nocturna onde a humanidade nascente, isolada e auto-assombrada pela super-produção de
Luminárias eléctricas, já não reconhece como realidade senão as próprias produções do seu espírito
como o havia anunciado Borges.
Suprimir o visível do céu não consistirá em acordar positivamente o seu esquecimento, em engendrar a
indiferença e o sono vazio dos neurónios apagados.
O planeta azul de dia refere-se ao único Sol. O medo do escuro criou uma ancestral observação do céu
de noite, e a consciência das estrelas é uma metáfora do saber dos Antigos. A denegação das
referências estreladas, parece ligar a contestação da profundidade do céu à profundidade da
história.
O céu físico é anterior ao seu conceito matemático, é uma aquisição da longa mentalidade colectiva
de gerações de devaneios nocturnos.
De noite, sobre o seu planeta eléctrico o humano técnico corre o perigo de perder o Norte.
A consciência do céu não pode passar sem a ostentação do seu aparatoso manto estrelado.
É esta aparência estrelada cuja proximidade nós queremos restituir.
O elogio da noite.
GENEVÈVE MORGAN – La Bretonnerie, Dezembro 1983
O Peso do Céu
“É a polifonia que se vai lançar da base cantante da noite.
Se o homem existe, é porque o universo o suscita, assim como suscita tudo o que existe para ele
mesmo existir. Por isso, tanto um como outro são indispensáveis; ou seja, não podem ser pensados
separadamente.
As estrelas entre si têm diferentes intensidades de luz. Em primeiro lugar é difícil de
representar-se o corpo que elas compõem. E para mim uma necessidade vital conhecer a autonomia
desse
corpo e de o construir à minha volta. Para o habitar. Pois que, habito tudo o que está ao
alcance
dos meus sentidos (habito mesmo, e esse é o ponto onde começo a fundir-me, tudo o que está ao
alcance da minha inteligência).
A visão do céu faz-me sempre as suas proposições.
O corpo que as estrelas compõem contêm-me. Rodeia-me, dela faço parte.
Não se pode conceber nada tão pequeno que possa estar separado do universo. Não se pode conceber
nada tão grande que dele possa estar separado.
Esta via láctea que contem as nossas cidades, as nossas fábricas, os nossos pequenos empregados
bancários, contem sessenta e cinco biliões de sóis, quero dizer, que contando um sol por
segundo,
seriam precisos seis mil anos, dia e noite sem parar, para os contar.
Furacão imóbil de biliões de sóis suspensos no tempo.
A via láctea resume-se a estrelas. A distância que nos separa desse amontoado de estrelas anula
a
distância entre elas, e nos abismos que iluminam com a sua mistura de luz, elas traçam diante
dos
meus olhos como que um ribeiro de uma bruma de leite. Entro no primeiro grande corpo nebuloso do
céu. A explicação é-me enfim dada com palavras imensas que não posso conter, mas o meu coração,
como
um pequeno animal quente instintivamente enrola-se nessa espiral de primavera.
O passado, o presente, o futuro, esmagados por esta lama de fogo, são a lama de fogo.
A noite está agora contra mim com todas as suas constelações, é preciso abreviá-las e abreviar
ainda
o seu resumo. É preciso reduzi-las até serem pontos sem dimensão. Então, serão legíveis e
visíveis,
mas tornaram-se semelhantes a nós próprios: o universo, e eles contêm-no, mas tão logicamente
sujeito à sua estatura que continuará infinitamente na sua matéria o inapreensível infinito.
Vejo o espaço no abismos que a existência do sol escava no espaço.
É a consciência interior da minha participação neste abismo que bruscamente o escava à minha
volta
com toda a sua verdade. A verdade que me é acessível. As medidas não acrescentam nada. Nunca
falarão.
Só o universo exprime o universo.
A luz é imóbil. Os cento e quarenta milhões de anos que ela gasta para atravessar, até mim, o
espaço
dos amontoados nebulares da coroa boreal, bem percebo que à volta deste abismo hajam biliões de
abismos, e que a luz ficará embaraçada com tantos zeros de biliões e biliões de anos, que, enfim
terei autoridade para dizer que ela está perfeitamente imóbil tanto lá adiante como aqui. Assim,
este ensinamento que está lá adiante no universo, também está igualmente aqui onde moro, ao meu
alcance. E esta verdade está em mim como todas as verdades universais estão em mim.
Por mais que me diga que a luz se move a trezentos mil quilómetros por segundo, não tem nenhum
significado. Sobre a terra onde habito, a luz era a imobilidade, tanto a sua velocidade
instantânea
a apertava sobre si mesma.
Já então, esta verdade me ilumina: as minhas medidas não têm nenhuma realidade. Não as posso
aplicar
ao universo.
Antares é cem milhões de vezes maior que o sol. Ela fica por ser um ponto sem dimensão da
constelação de Escorpião; quando ela está amplamente estendida sobre o horizonte da terra,
ocupando
todo o espaço do largo palco diante de mim, de amendoeiras em flor, Antares é um ponto vermelho.
Uma
flor de amendoeira exausta e enervada pelo vento, esconde-o.
O presente da luz, que me vem do centro do meu sistema, é um passado velho de trinta mil
anos.
O meu objectivo futuro é este extraordinário amontoamento de microrganismos e de raios cósmicos
no
qual me arrasta o remoinho da via láctea, aproximando-se de mundos que me irrigam (riqueza do
meu
coração, coloração da minha alegria, raízes dos meus sentidos profundamente agarrados à volta
das
estrelas como raiz das árvores sobre suculentos torrões de terra) afastando-me de mundos que
carregavam o meu sangue de uma particular compreensão do universo, de uma particular utilização
do
seu paladar e, nestas extraordinárias distâncias, bruscamente expludo e apago-me ao mesmo tempo,
sem
nenhuma duração, utilizando em relâmpagos traços imponderáveis.
O sentimento da nossa absoluta segurança cósmica apenas existe devido à nossa duração
efémera.
O universo é só vivo. Chamamos morte ao momento em que a matéria que nos compõe entra numa série
de
transformações, e essas transformações já não podem mais comover o nosso espírito. A nossa
concepção
da morte é a prova da nossa sujeição absoluta. Esta concepção está exactamente adaptada ao nosso
egocentrismo. Ela não se poderá acordar com nada que não seja o que consideramos como a nossa
identidade impermeável. A palavra morte é puramente subjectiva. Não poderá nunca ser empregue
num
sentido objectivo: o que ela designa não existe no universo. Uma célula, um átomo não morrem:
transformam-se. O encadeamento destas transformações, o espaço e o tempo que ele cria são o
universo.
O verbo criar não tem passado nem futuro no universo: essencialmente é presente.
Não há nenhum primeiro nem sétimo dia, há o preciso instante da criação e é o tempo espacial.
O tempo sobre o qual se exerce a memória total da humanidade não conta para o universo; ele
serve-se
do tempo espacial.
Aí não pode haver passado, ou seja, não pode haver formas sem futuro, ou seja, haver tempo sem
formas. A vida inteira vive no tempo das formas; é uma vida absoluta num presente
absoluto.
A quatro quilómetros de altitude, o céu é azul-mar. A oito quilómetros é violeta sombrio. A dez
quilómetros, o céu é negro e poeirento como um desmoronamento de fuligem. A vinte quilómetros de
altura, o céu é mais negro que o céu da noite mais negra apesar do esplendor do sol, e apesar do
sol, grossas estrelas verdes rasgam-no. A cinquenta quilómetros de altura, o céu é apenas um
tecto;
é o interior de um oceano de trevas. O enorme sol não esconde nada. Ele é um globo de labaredas
exactamente cercado pela noite eterna. Dez mil quilómetros: o globo terrestre afundado na noite
até
ao meio, flutua, rola, fazendo de um lado crepitar auroras e do outro ferver a noite
eterna.
A luz descobre a minha íntima mistura com o universo. Já não tenho necessidade de fazer fugir os
deuses; instalo-me a meio deles.
Aqui a luz já não posa sobra nada: ela é. Elemento do mundo, ela existe em si, ela compõe a
noite
eterna. A noite, agora igual como um som profundo...
Mas, agora que tentei medir e depois de ter escolhido a imobilidade como unidade de medida,
estou em
presença de dimensões que ultrapassando todas as minhas dimensões espirituais, reduzem a minha
escala total à minha única matéria. A minha própria imensidão não está para além da minha vida:
ela
é a minha vida.
O universo não está separado em duas partes: nós de um lado e do outro lado o resto, nós somos o
universo e a sua paixão é a nossa paixão.
Não há nada no universo que possa ser outra coisa que o universo.
Constato que não sou escravo do universo, que participo em todas as suas liberdades. O universo
não
me esconde nenhuma verdade. Todas estão em mim e diante de mim. E, com efeito, é preciso que
assim
seja, é preciso que assim seja, pois que, não posso viver falsamente num mundo real. Possuo
mesmo
tão completamente estas verdades que lhes obedeço maquinalmente, como obedeço maquinalmente à
contracção do meu coração (um acto que precisamente é uma verdade universal).
O céu pesa igualmente sobre todos os homens.”
JEAN GIONO – O Peso do Céu (extractos), Manosque 1983.