KITSUNE
JOÃO PENALVA

ARCO MADRID | PORTA33 — 2001

KITSUNE

O Espírito da Raposa | The Fox Spirits



As propostas de João Penalva (Lisboa, 1949) elegem sempre a dimensão do imperceptível, daquilo que aparentemente nos escapa, como estímulo à reinvenção. Compactam fragmentos da vida privada, da sua esfera íntima e auto-referencial, e transformam a riqueza dessas contingências subjectivas num sedimento metonímico de experiência cultural. São “objectos comunicantes” que cruzam facto e interpretação, realidade e ficção, encenando uma ambivalência sedutora e inquietante que nos oferece possibilidades de deslocação mental, imaginária.
Kitsune (2000), o mais recente trabalho de Penalva, concebido de raíz para esta exposição, confirma uma vez mais a eficácia das “narrativas” caleidoscópicas que estruturam a sua obra. Trata-se de uma projecção vídeo cujo único enquadramento (um grande plano que recorta a paisagem de uma das serras da Madeira) se anima com o movimento furtivo do nevoeiro e ganha substância no desenvolvimento de um diálogo em “voz off” entre dois actores japoneses, aos quais se juntam ainda os sons naturais da ilha. São vários os aspectos cúmplices entre o filão narrativo e encantatório de Kitsune - transliteração dos ideogramas japoneses para “Raposa” - e o seu cenário idílico e sublime: desde a própria condição geográfica, como metáfora do isolamento (aqui extensível ao envelhecimento); até à morfologia sinuosa, ao mesmo tempo bela e assustadora, da paisagem que se desvela ou oculta ao sabor das intempéries (aproximável da complexa relação entre consciência e experiência). Neste encontro entre duas personagens apenas audíveis é o medo universal e construído (fantasmático) que está em xeque, o alimento primeiro da superstição. Uma e outra personificam a inteligência esquiva da raposa, dramatizando o seu significado popular na mitologia asiática ao ritmo da respiração sábia que associamos ao Oriente. Com Kitsune, Penalva confirma-nos a sua mestria na “arte de narrar” (no sentido benjaminiano), movendo-se entre a estoria, o mito e a (auto)biografia numa exigência actuante de liberdade do pensamento e vitalidade criativa.

Lúcia Marques