PEDRO CALAPEZ
de dentro e de fora — trabalhos sobre papel, 1992-1998
PORTA33 — 11.12.1998 — 30.01.1999

De dentro e de fora
Pedro Calapez
trabalhos sobre papel, 1992-1998

Existe uma mulher. Ela odeia-me. Sombra, é assim que ela me chama.
Diz-me por exemplo isto: Sombra, tu! Aqui? Andas por estas paragens?
Ou então isto: Sombra, temos couves para o almoço. Apetece-te?
Noutras alturas brinca: Deito uma sombra. Trata-se de mim, sou eu que sou visado.


Péter Esterhàzy, Une femme

Pedro Calapez, um dos pintores mais importantes da geração que agora anda pelos quarenta anos, realiza uma pequena antologia de obras suas sobre papel e escolhe entitulá-la “de dentro e de fora”. Trata-se de um conjunto de obras relativamente recentes, realizadas entre 1992 e 1998. Contudo, será o titulo que nos importa aqui reter, porque ele traduz uma atitude comum a todas as obras, um conceito que subjaz à própria obra de Pedro Calapez, seja ela realizada sobre papel, onde a possibilidade de criar e representar o espaço adquire características semelhantes à da escultura, ou sobre tela, com todas as potencialidades que a matéria da pintura proporciona. Dentro e fora: as duas palavras implicam a existência de um lugar original, a partir do qual tudo se passa. Implicam, também, a existência de um sujeito que estabelece a relação de interioridade e de exterioridade com esse lugar. Um sujeito que será sempre, em primeiro lugar, o pintor. E, no entanto, o espectador, que vê a obra a partir do ponto de vista de quem o criou. O pintor: Pedro Calapez é um pintor que escreve, e bastante, sobre a sua obra. Não se esquiva nunca a dizer como a realiza, a falar e a demonstrar as condições materiais da sua criação. Sobre os desenhos de 1995, intitulados genericamente “interiores”, conta, por exemplo, que procurou um papel que oferecesse “uma superfície lisa mas ao mesmo tempo com grão, suavemente texturada, como se tivesse recebido ao longo dos anos uma camada de pó, colorido neste caso. Depois de obtida esta camada uniforme esfregando primeiro pigmento por sucessivas vezes na superfície do papel, foi possível começar a riscar.”

Riscar: este é o verbo que o artista utiliza para definir o seu gesto. Não é um verbo inocente: riscar quer dizer desenhar (chegou-se a chamar aula de risco à aula de desenho), mas significa também gravar – gesto que não será estranho a todos os que conhecem a pintura de Calapez, onde a matéria tantas vezes aparece fisicamente sulcada por traços que a cortam. E gravar, se se trata de facto da reprodução de um desenho sulcado numa chapa de metal, é o primeiro passo da possibilidade de reprodução. Riscados, porque feitos com traços que sulcam uma camada de pó, ou porque resulta, de uma actividade frenética da mão que traça espaços sobre espaços, os desenhos de Calapez reproduzem sempre uma imagem original: imagem mental, apenas existente na sua própria memória visual, ou imagem apropriada, como se o fenómeno físico do eco possuísse o seu equivalente em pintura. Digamos que este processo de reprodução e apropriação mental, quer se exerça sobre imagens de Dacosta ou paisagens de Silva Porto, possui uma correlação material, no duplo traço que nunca é mimético, mas quem como uma sombra, evoca a imagem (ou o traço) primeira. A obra de Pedro Calapez apresenta-se sempre, assim, como representação da representação, como um trabalhar infinitamente em abismo sem que o abismo tenha alguma vez fundo. Nos desenhos mais recentes, datados de 1998, e intitulados “cenas domésticas”, este processo de trabalho da sombra sobre a sombra, enriquece-se de um outro trabalho, o da escolha das imagens díspares que se associam livremente, interiores e exteriores, de dentro e de fora da imagem mental inicial.

De dentro e de fora: depois do trabalho e do modo de trabalho do pintor, a expressão implica ainda as ideias de interioridade e exterioridade que subjazem ao conceito de paisagem. É de dentro que se apreende o espaço que nos rodeia; é de fora que se representa esse mesmo espaço. Como um espectador frente a um cenário onde tudo se passa, um cenário que é evidentemente o lugar de um drama próprio e pessoal. Calapez não se tem furtado a realizar cenários para peças de teatro, numa atitude evidentemente pós-moderna, que recupera uma antiga tradição da pintura. São cenários, antes de tudo o mais, os enigmáticos estudos perspécticos que pintores do Quattrocento italiano nos deixaram. A “Cidade Ideal” de Piero della Francesca, para além de um magistral e tecnicamente impecável estudo de geometria, é um espaço desolado e vazio, envolto em edifícios que apenas aparentemente são de pedra e mármore. Eram também cenários de uma impossível vida as ruinas das gravuras de Piranesi, artista que fascina particularmente este pintor. São cenários estas últimas obras, onde nada se passa, numa melancólica espera de que algo se passe ou alguém chegue. De dentro, com o pintor. De fora, com o espectador também.

Luísa Soares de Oliveira

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