RUI CHAFES
PORTA33 — 10.07.1998 — 20.08.1998

BOLOR PÓLEN

A HARMONIA DO FERRO
João Miguel Fernandes Jorge

Tudo se passa ao redor de duas séries escultóricas: "Harmonia" e "Bolor Pólen". Não sei qual delas devemos distinguir, mas admito que "Bolor Pólen" seja discípula de "Harmonia".
"Harmonia": uns sapatos de ferro. Uns sapatos de palhaço que já insinuei pertencerem à armadura guerreira de Lancelot. Para Lancelot, para os palhaços e para os guerreiros estão abertos extensos portais do céu; encontram-se abertos à obscuridade que silenciosamente desliza arrebatando a terra como um cráter sem fundo. Todos eles têm pleno domínio da história – foram cavaleiros teutónicos para quem se ergueu a ponte levadiça do castelo de Toompea na Estónia ou os monges Cister que partiram um dia de Santa Maria de Aguiar, seduzidos pela defesa de Lugares Santos, para a mais alta torre de Crac des Chevaliers no Condado de Tripoli.
O passado também lhes serve de presente e confunde-se com o mais distante futuro. A névoa que envolve o passo dos seus cavalos ou o rodado das suas carroças de saltimbancos desfaz-se e alguns eleitos podem ver o seu eterno progredir ao longo da ordem do tempo.
"Todos eles têm uma cultura histórica?"
"Mesmo o palhaço para quem Chafes inventou uns sapatos como se se erguessem, no extremo de uma morte enforcada, o dourado ramo mais alto de um cipreste?"
Sim. Mesmo o palhaço pertence à raça desses senhores vindos desde a Alta Idade Média. Que se deixaram entretecer com o saber dos tempos e que, de quando em quando, de onde em onde, irrompem como se pertencessem a um relevo narrativo de Andrea del Verrocchio ou fossem, eles próprios, o elegante e negro perfil do seu "David". E, se repararem bem, o palhaço traz suspensa de uma das mãos a cabeça de Golias – Donatello deu-lhe lugar em bronze. Mas em ferro sob um tom de voz ferroso, ouviremos o palhaço, quando na distância circular da arena os espectadores gritam: "Canta." " Palhaço, canta." Ouviremos o palhaço responder: "Cantarei com o espírito, e cantarei também com a inteligência." (Epist.I Cor. 14.15)
"Harmonia" e "Bolor Pólen": estruturas erguidas diante da porta de um jardim que está guardado no interior do castelo teutónico ou na obscuridade húmida que protege do deserto os cavaleiros em Crac des Chevaliers. São como árvores. Não árvores de arrogância, mas árvores de moderação. O pinheiro, o cedro e o cipreste representam estas esculturas. Não têm notáveis flores nem sequer frutos comestíveis. Os seus frutos são estéreis e adstringentes. Eles têm a capacidade de ligar, de prender, de estreitar de um modo áspero, seco. Não são frutos agradáveis de apanhar nem adequados para um prazer imediato dos sentidos; frutos esféricos, como esféricas são as bolas de golfe aprisionadas em "Bolor Pólen".
Assim como se nos apresenta, esta escultura, sob uma ampla cultura histórica, a qual parece ensinar-nos, com Hölderlin, que "a vida divina e o céu do homem se fundem, numa unidade, com todas as coisas". Também desenvolve uma antipatia inata em relação a um dogmatismo catecúmeno. Por isso haverá quem se encontre sempre incomodado pela rude presença crepuscular. No caso, sob o domínio do ferro, não andará longe de poder representar, sob o reflexo de tormentosas nuvens, os frios desertos da obscuridade. Como se para se para além dela restasse o medo (e o não medo) de um cerrado horizonte tecno-escatológico, a um tempo de pez e fogo.
Os sapatos de "Harmonia" introduzem isso mesmo: Harmonia: grande e sombria selva em que repousa a água, o bolor, sobre cujo florescer se morre; e o pólen em que se enreda a nascente, a errante e obscura vida. E, em "Bolor Pólen", humedecidas pela água, num corpo em que se funde a razão e os sentidos, as bolas de golfe trazem encarceradas as suas asas embrionárias, sombrias. Podem simplesmente rodar, como se fosse um tenebroso rio sobre si mesmo correndo; nocturnas aves que sofrem a pena silenciosa de uma circular e terena noite.

O percurso da obra de Rui Chafes ergueu-se sob uma compreensão do espaço. Um espaço ampliado pela "descoberta" dentro do horizonte da sua escultura, de outros e novos e consequentes espaços. A descrição das suas flutuações apresenta uma evidente importância e pode ser seguida, desde o seu início, através dos seus livros Würzburg Bolton Landing (1995) e Harmonia (1998).
Percorrer esse folhear de imagens escultóricas uma eleição da especificidade que se deixa bifurcar por escalas temporais. Elas procuram, sob o olhar do escultor, um final estável. Cada uma das esculturas e cada um dos desenhos (veja-se, para estes, Fragmentos de Novalis, 1992 e O lugar do poço, 1997) organizam flutuações de equilíbrios. Um percurso de variáveis e distribuições e probabilidades desenvolvem-se como se continuamente se aproximassem de um determinado fim, sem contudo o alcançar jamais. E a tradução que Chafes deu ao "VIII fragmento" de Novalis, nas suas palavras finais – " As plantas são pedras mortas, os animais são plantas mortas. Estamos sós com tudo aquilo que amamos" – sugere bem o sentido da sua obra. Uma arte que se realiza tal como um ponto que se afasta para o infinito sobre a distância de uma curva. (Vejam-se as linhas curvas de "Bolor Pólen". Como tendem para uma simétrica distribuição de todo o seu equilíbrio orgânico e para a expressão descritiva e esquemática dos seus mecanismos materiais e físicos.)

"Harmonia" e "Bolor Pólen" surgem como comunidades que revelam o carácter hermenêutico (latente) de um método, de uma gramática, de uma voz reflexiva que procede, em paralelismo, com a sua própria ampliação imagética. "Bolor Pólen" organiza-se a partir de uma concepção de verdade, da qual se torna omissa uma cadeia de processos ontológicos. Apesar da (sua) existência ser dominante e de, na natureza da sua forma, da sua criação, se tomar como primeiro argumento uma representação vibrante e profética. Existência que tem uma ressonância tão detectável como a própria espessura do ferro, através do qual se ergue de um modo absoluto. Como se "Bolor Pólen" e o exercício da sua "Harmonia" coincidissem num ponto de excesso (e de simultânea razoabilidade) comum ao pensamento de Hölderlin e de Schelling. Esse momento oferecer-nos-ia, no equilíbrio geométrico das esculturas, um absoluto que se espelharia num outro absoluto. E, no entanto, a questão do ser parece encontrar-se cada vez mais distante, cada vez mais substituída por um corpo enegrecido, um corpo físico que se deixa enlaçar por uma construída paisagem.
Paisagem, não de um ser que faz atrair para si novos horizontes, novas "harmonias", mas percorrido por um sentido ordenador do trágico e de uma dimensão histórica, na qual a "experiência" da própria obra serve de paradigma. As bases que se erguem do solo ou do tecto ou de uma parede surgem como troncos enegrecidos, mesmo que a sua espessura se situe muito longe dessa dimensão vegetal. Formam-se ramos que, entre si, convergem e que a partir de um cerrado núcleo se irão afastar. Desenvolvem-se sobre um rosto de cinza. Ameaçam as planuras sombrias, oferecendo-lhes a mais luz do escuro.
Por entre remoinhos de vento as bolas de golfe enclausuradas dispõem-se a uma rotação em torno de si mesmas. O que nunca irá ter lugar, porque clausura implica imobilidade. O corpo maior em que estão encerradas decide da sua "verdade", comporta-se como um espesso muro obscurecido, mesmo não passando de uma rede. Contra esse muro as usadas bolas de golfe batem a lentidão do seu mover – e, sob um branco de cinzas, inscrevem a festiva e perdida luz dos campos. Mas a verdade que cada um dos corpos escultóricos de "Bolor Pólen" decidiu é sempre a sua "verdade", uma conexão que permanece obscura. Contra a obsessão de um método, a ideia de uma pura fusão de horizontes é o que resta – uma fusão de harmonia. E cada uma das esculturas constitui um mundo, uma história dentro da história, uma significativa cultura. Daí o seu sentido trágico, impermeável como o ferro. As linguagens humanas e de interpretação escapam-lhe porque são e representam exactamente o seu contrário; permeáveis, despedem as largas solidões e quietudes. Trágico e não trágico, à vez, a escultura e o humano: poços de azul resplendor que rompem horizontes repentinos. Um círculo de fogo e de ferro.
Os últimos versos de um poema de Ernest Maria Richard Stadler, "Viagem Nocturna Sobre A Ponte Do Reno Em Colónia", dão bem melhor do que todas as palavras o exacto sentido desta "Harmonia" e deste "Bolor Pólen". "E fervor e ímpeto/ até ao final, a bênção. À festa do sexo./ Até à voluptuosidade./ E a oração. E ao mar. Até ao ocaso."
"Ocaso" ultrapassa em muito o sentido da geografia É, sobretudo, perda, destruição e ruína. Também por isso a minha anterior afirmação de que não haverá neste trabalho, como na generalidade da obra de Rui Chafes, uma entrega ao ser e a um princípio ontológico, mas às vozes da tradição. Uma tradição trágica que se estende de Ésquilo aos cavaleiros teutónicos e aos que se perderam na defesa de castelos dos cruzados; e que nos traz, num vertiginoso "cantar" do tempo, de von Kleist, de Beckett ou desse contador de pequenas histórias sobre o deserto do humano que é Paul Bowles.
Se a "secura" das esculturas admitisse um diálogo, ele passar-se-ia deste modo:
"Vous attendez un miracle?"
"Je n´attendes rien."
Assim, em francês, para que se pareça com o clima de um filme de Bresson. Realizador que, creio, Chafes nunca admitiu poder ver. Mas Bresson sabe como ninguém conduzir o esplendor de uns sapatos de ferro.
A tradição do trágico refere-nos um mundo hostil à luz, e como sabem distribuir a luz esta "Harmonia" e "Bolor Pólen", erguidos como que um fundo numerológico herdado dos caldeus, de Numénio de Apameia, de Plotino, dos gnósticos – uma torrente material onde há morte, agitações e naturezas violentas, putrefacção; obras que fluem.

Será necessário avançar um pouco sobre o afastamento ontológico que refiro. Sempre entendi a escultura de Rui Chafes como um facto inamovível. Uma obra que se "suspende" a ela própria e que vai passando como uma "memória" ao longo da sua tão intensa produção, iniciada em 1986. Uma arte que traz como primeiro elemento vinculativo o não ter (nunca) perdido o segredo; e que progride na sua ordem de realização, no seu território e modo de agir.
Há no seu percurso de memória uma forma pensada que a cada momento se renova a partir de um impensado continente. É nessa região sombria que vai actuar a memória, primeiro deixando de ouvir as vozes da tradição que, no corpo de saberes e no (próprio) imaginário de Chafes, recorre a múltiplas presenças de inovação que podem dar pelo nome de Tarkowsky, Dreyer, Bergman, Fassbinder, Caspar David, Otto Runge, Beuys, Smith, Brancusi, Hölderlin, Novalis, Serra, Nauman… A lista de tradição será como sempre que se exerce o pensamento, como um actuar das sombras e da luminosidade da memória, infindável e não se deixa prender a qualquer necessidade ordenadora.
Memória que sabe reduzir das formas e dos materiais do gótico ao seu anterior romântico, encontrando na secura dos seus escurecidos e massificados silêncios, o traço que o conduzirá à esquemática estrutura e à geometria dum templo grego. Estes momentos levam, no cruzamento dos seus elos de razão, de emotividade e de sentimento, a momentos da arte tão distantes como à representação em mármore de "Immanuel Kant" (1808), de Gottfried Schadow, às colunas triunfantes da "Nova Casa da Guarda", Berlim (1817-1818), de Karl Friedrich Schinkel, ao "Apolo Terrorista" (1988), de Finlay e Alexander Stoddart; ou à escultura "Horas de chumbo" (1998) do próprio Chafes, que se encontra no Parque Expo´98. Essas duas extensas tubagens de ferro, nas suas aberturas plenas de sonoridade, talvez tenham sido erguidas para que através delas se enovele e amplie o eco de um fragmento de Paul Celan: "Enterra a flor e põe o homem sobre esta campa." Ele próprio, Celan, personagem maior desta cadeia rememorada.
Será aqui que se situa a memória como pensamento, como instrumento "roubado" a um continente impensado que vai surpreender e "trazer" o que procede de um poço escuro e que chega até ao domínio do ferro. Forma que rompeu o esquecimento e que se manifesta, agora, de um modo inteiramente novo, muito para além das iniciais vozes de uma tradição – que sempre guarda uma cadeia de eleitos - , resplendor sobre a "mostrada" ocultação de "Harmonia" e de "Bolor Pólen".
Dirão: " Neste momento o resultado que a obra apresenta rodou sobre si mesmo, trouxe a outra face do círculo: "Harmonia" e "Bolor Pólen" devem a sua luminosidade ferinte não a uma natureza subjectiva ( que implicou directamente entre as coisas esquecidas e entre o "desenvolvimento" dos nomes eleitos e amados), mas a um modo objectivo. E de que se reveste, a que se refere, a que região pertence essa objectividade?"
Pertence ao domínio da acção. Àquilo que está na (exacta) origem do que foi esquecido, àquilo em que consiste o resplendor da manifestação "habitada" pela "Harmonia" e por "Bolor Pólen": "coisas" fabricadas pelo escultor e que procedem desse anterior e longínquo poço escuro a forma de o dizer e de o pensar e de o actualizar é o desvelamento do ser – de um ser enquanto arte e enquanto princípio de individuação. Portanto, ontológico. Sem que, no entanto, haja entrega à sua dominante exclusividade. Somente esse "ser" foi golpeado através de analogias e de metáforas e de não contradições.
"Os Caminhos do Bosque" heideggerianos falam desse lento e, por vezes, violento e vertiginosamente rápido desocultamento. Mas as esculturas estão aí, como aquilo que Rui Chafes, o escultor (e agora também o "ferreiro", como por mais de uma vez tenho ouvido chamar-lhe, com o sentido daquele que saúda com o fogo o solestício de inverno) determina, sob o fogo, aquilo em que consistiu a essência da linguagem velada quer para os gregos quer para os seus eleitos do romantismo.

imagens

(O Rui Chafes trouxe-me um dia, de mistura com um desenho do esquema geométrico do "Tecto de Ouro" da Domus Aurea romana, três postais de túmulos régios do panteão da catedral de Saint-Denis. Eram fotografias de esculturas funerárias de Beatriz de Bourbon, de Ana da Bretanha e de Henrique II.
Os olhos e os lábios dessas estátuas jacentes deram os primeiros versos de um longo poema que tenho a intenção de escrever sobre os reis portugueses Leonor e Fernando I. Foram amantes infelizes que, a par de um amor de algum desvario, deixaram crescer ao seu redor a flor sem cor do ódio e da traição. Diziam estes versos; diziam, porque não sei se algum dia sairão deste texto acerca da "Harmonia" e de "Bolor Pólen": "Não procures nos meus olhos o/teu olhar nem nos meus/ lábios a tua boca."
O "tecto de ouro" deve-se a um artista gnóstico e o desenho que Rui Chafes me trouxe era uma cópia do tecto de Fabullus feita por Francisco de Holanda. Interessava-lhe a geometria do desenho e as divisões simétricas a que se sujeitou o quadrado. Assim como lhe interessavam, particularmente, as caixas rectangulares que suportavam as esculturas funerárias e que continham o que restaria dos corpos dos personagens régios. Todavia, os três rostos eram de uma correcta simetria: o de Ana da Bretanha é de um tão grande dramatismo que parece presidir aos movimentos celestes e, por seu intermédio, à fortuna dos homens; o de Henrique II traz a força de um diagrama e move-se, na sua imobilidade coroada. O rosto está envolto num tocado de malha de armadura. Assemelha-se, nos lábios que anunciam um sorriso, a uma composição geométrica baseada numa flor de lótus. Pétalas que se abrem guardando sucessivamente uma Vitória alada, Diana, Ceres, Vénus, Pala Ateneia, Tyché e, mesmo, Medusa. Desfeito o toucado, milhentas serpentes povoariam o lugar dos seus cabelos. O que quereria dizer não ser menos real o perigo tomado somente como imaginário.
Três túmulos reais. Três estátuas jacentes que guardam a temível santidade dos reis, que proíbe o contacto com as suas sagradas pessoas. Deixemos que permaneça esta crença de antiguidade, que perdurou como uma ilusão até ao antigo regime. Também em Esparta era ilegal tocar com as mãos a pessoa do rei. E sobre o piso que ficasse o quarto do rei ninguém poderia dormir. Por isso o "tecto de ouro" da Domus Aurea. Acima desse tecto, o abismo do céu.
Também o ferro guarda na sua estrutura de elemento químico formas rituais exemplares – o ferro puro, que é um metal branco e brilhante. Entre os ovibundos, no sudoeste africano – creio que parte do seu território coincide com as fronteiras angolanas – quando faltava um pedernal cortante, a circuncisão executava-se com um ferro. Que depois era enterrado como a imagem de um santo de uma igreja medieva cujo mau estado de conservação levava à sua substituição nos altares. Também essa imagem de madeira ou de pedra era enterrada sob o altar, emparedada ou colocada sob uma lágea do adro. E a raça dos elfos e dos duendes sujeitava-se a que cravassem nas portas dos seus tugúrios um ferro poderoso.
Dá-nos o ferro a estrutura do círculo que sustenta a cúpula do universo. Sobre ela assenta a intenção cosmológica do Arquitecto. De um deus arquitecto. Sob a cúpula o ferro aceita a folha de ouro. Nesse ouro se gravou a memória e os caminhos da sua sombra.)
A "Harmonia" construiu-se sob a extensão de uns sapatos de ferro. Estão a par: o sapato do pé direito e o sapato que pertence ao pé esquerdo. São duas nuvens que entre si chocam e organizam uma poderosa tempestade. Dão desse modo soberano lugar e razão (de lugar) ao espírito das coisas. Conservam igualmente essa capacidade de golpe as esculturas de "Bolor Pólen", ao estabelecerem no seu interior a distinção entre o feminino e o masculino: duas percepções, uma globalidade do corpo escultórico. Também ele capaz de transportar duas nuvens que, entre si, chocam e projectam uma confrontação de imagens – de imagem e de recordação.

João Miguel Fernandes Jorge, 1998