Desenhos em Volta de Os Passos de Herberto Helder
Na viagem que me propus realizar pela obra Os Passos em Volta, procurei, enquanto ilustradora e intérprete, a natureza das coisas e as ideias puras existentes no texto, que servem de inspiração aos desenhos, os quais, neste caso, pertencem ao universo onírico que decidi investigar. A viagem torna-se clara quando os elementos que encontro nos vários lugares descritos pelo poeta formam um fio condutor que os liga e os combina. Lugares estes que serão representados nas ilustrações por figuras, (umas humanas – poucas – outras antropomórficas e híbridas e uma série de animais), as quais não necessitam de contextualização geográfica.
Os Passos em Volta viajou "no meu bolso" durante os quatro anos dedicados à tese de doutoramento. Numa primeira fase, lia e relia os vinte e três textos de forma ininterrupta e constante, sem me deixar seduzir pelos detalhes "ilustrativos" e apelativos que teimavam em distrair-me. Num acto impulsivo, desenhava diariamente num caderno, desta vez sem a necessidade de olhar os textos. As imagens fluíam desenfreadamente, da mão para o papel, quase sem eu dar por isso, sem pensar. Saíam obsessivas e não fazia ideia para onde iam. Durante os dois primeiros anos deixei que essas imagens tomassem forma e não me apressei a saber o que fazer delas. Muitas tinham uma relação directa com determinados contos, noutras, essa ligação não era tão evidente; certo é que, depois de uma considerável produção, dei-me conta de que o conjunto de todos os desenhos (produzidos a lápis de grafite e lápis de cor) ilustravam a obra como um todo. A existir uma narrativa, ela encontra-se de conto para conto, não tanto de imagem para imagem pois, ao condensar as leituras de todos os contos numa só leitura, como se de um único conto se tratasse, essa sequência era inevitável.
Os elementos desenhados são sobretudo figuras de animais, ou antropomórficas, em vez de figuras humanas, como se de um Bestiário se tratasse. Alguns animais estão explícitos no texto (o touro de "Aquele que dá a Vida", o celacanto de "O coelacanto", as vacas de "Holanda", o cão de "Cães, Marinheiros", a mãe que se transforma em aranha em "Trezentos e Sessenta graus" ) os restantes, surgem mais dissimulados: formas que viajam de lugar em lugar, metamorfoseando-se ao longo de um fio condutor que se renova e que evoca um novo lugar. Ao transformar os animais em figuras antropomórficas, híbridas, bizarras, pretendo criar uma dimensão fantástica/onírica, de forma a apresentar mundos e lugares que se encontram em constante transformação, recomeçando e regenerando-se. Estas imagens que produzi representam o meu olhar sobre Os Passos em Volta que, no meu entender, está tão próximo da realidade tal como a conhecemos como também de um mundo de sonho e alucinação. Relativamente à escolha da figura do animal, este representa no homem a sua pulsão instintiva e a sua natureza mais complexa.
A palavra "Lugar" em Os Passos em Volta aparece ao longo da obra para descrever os espaços físicos ou psíquicos onde os contos se desenrolam. A casa ou o quarto enquanto lugares, segundo Bachelard1, são lugares eleitos para a inspiração, lugares onde a musa actua, lugares para sonhar; são também lugares onde se regressa para morrer, como lemos no conto "O Quarto": "E fico no quarto sem soalho e deito-me no chão (...). Depois encosto a cara à terra profundíssima para escutar o seu húmido sussurro atravessando-a toda e pas¬sando por mim. E então poderei morrer."2
Procurei descobrir alguns desses lugares poéticos herbertianos, despidos de artifícios, sem inibições, como nos sonhos, criando em cada conto, cada espaço, um tempo próprio. Cada um dos contos refere um espaço único, embora alguns elementos de contos diferentes comuniquem entre si e viagem de uns lugares para outros, como se de uma máquina do tempo se tratasse. Nos textos de Os Passos em Volta dá-se uma transformação constante desses lugares; num mesmo texto descobrimos uma metamorfose do espaço por ele descrito: um mesmo espaço pode transformar-se em diferentes lugares, do passado, do futuro e do presente; é quase mais importante o processo da transformação do lugar do que a descrição desse mesmo lugar.
Os espaços fechados, são aqueles sobre os quais eu mais me debruço, aqueles que servem de inspiração aos desenhos. Ao contrário dos espaços abertos, em que encontro descrições de diferentes paisagens (reais ou não reais), nos espaços fechados, ocorrem as reflexões dos narradores, revela-se o universo interior daqueles personagens.
Procurei identificar lugares da mente, da memória, da alma e de reflexão, mais do que lugares físicos. Mesmo quando os lugares parecem tão reais como a casa da velha avó ou dos pais, da sua infância, ou a casa que constrói para morrer, ou as cidades por onde deambula, interessam-me sobretudo os pensamentos que advêm dessas deambulações. Os valores daquilo que é íntimo, essencial, é o que verdadeiramente me absorve.
As imagens que surgem ao ler estes contos são muitas vezes antagónicas e sugerem duas ou mais interpretações, onde os mesmos elementos aparecem regularmente nos diferentes contos, misturando-se e fundindo-se com outros novos. Ao revelarem-se, as imagens de Herberto Helder são surpreendentes, sobretudo porque rejeitam aquilo que está estabelecido como normal. São imagens que eclodem umas atrás das outras, como num sonho.
Podemos imaginar que o fio condutor que liga todos os contos será o mesmo fio do bordado da mãe
descrito em "Trezentos e Sessenta Graus". O personagem da mãe que se transforma numa grande aranha e
se mantém a fiar pela vida fora "E a mãe recomeça a trabalhar mais depressa, porque o bordado inútil
é cheio de utilidade, de sentido."3 A
imagem que retenho da transformação daquela mãe é inesquecível e quimérica: talvez uma metamorfose
como acto de castigo – como aconteceu à jovem Aracne, transformada para sempre em aranha pela deusa
Atena. Porém, apesar do eventual castigo, esta metamorfose é também um acto de salvação, pois o
filho, ao transformar a mãe em aranha, dá-lhe a vida eterna.
Uma aranha assustadora ou excessivamente protectora, numa referência à figura primordial da mãe. O arquétipo maternal é de todos o mais antigo e ambíguo: ora protege, ora mata, como a Grande-Mãe dos ritos primitivos.
"Trezentos e Sessenta Graus", é o último dos contos em Os Passos em Volta. A frase "Porque somos como as árvores, presos a um lugar"4, justifica o regresso do narrador à casa da mãe, dos pais, como se o único lugar que sempre existiu fosse o primeiro, aquele onde nascemos, aquele que nos protege e abraça, mas também aquele que mata. Lugar este simbolizado aqui pela imagem que imediatamente me assalta, de um ninho da teia de aranha que a mãe vai bordando, e que o envolve.
Os espaços físicos dos contos representam um único lugar; são a árvore da vida, com as suas raízes bem profundas, em perpétua regeneração. Esta regeneração revela-se numa transformação que se dá no ser, no animal que vive dentro de cada um, no seu inconsciente. O animal, enquanto arquétipo representa as camadas profundas do inconsciente e do instinto. À figura deste ser, dei-lhe o nome de lugar ou lugares em transformação: lugar interior e íntimo de cada um. O lugar da mãe aranha é o mesmo da árvore, fixo e velho; a mãe, presa pelas raízes, espera o filho, que vai herdá-las. Aí sim, o novo ser fixa-se à terra, à origem, e regenera-se.
1- BACHELARD, Gaston – La poétique de l'espace. 11éme
édition. Paris: Quadrige/Presses Universiretaires de France, 1983.
1re édition: 1957, p. 24.
2 - HELDER, Herberto – "O Quarto". In Os Passos em Volta, p. 143.
3 - HELDER, Herberto "Trezentos e Sessenta Graus". In Os Passos em Volta, p. 192.
4 - HELDER, Herberto. "Trezentos e Sessenta Graus". In Os Passos em Volta, p. 190.
Mariana Viana, 2017
Mariana Viana é doutorada (PhD) em Artes Visuais pela Universidade de Évora. Mestrado em Illustration as Visual Essay, na School of Visual Arts, em Nova Iorque. Designer gráfica em diferentes empresas, entre as quais, a PPS, Project for Public Spaces, em Nova Iorque. Em regime de freelancer actuou como designer e ilustradora para instituições como o Museu Nacional de Arte Antiga e a Fundação Calouste Gulbenkian. Actualmente é docente na ESE de Lisboa e Coordenadora da Pós-Graduação em Ilustração da UAL/ESTAL, em Lisboa. Dedica-se à ilustração e a outros projectos artísticos.