Sem pretender fazer uma biografia do poeta, pois são muitos os testemunhos que já foram dados pelos seus amigos e contemporâneos, é apesar de tudo útil recordar às novas gerações uma parte do seu percurso intelectual. Viveu o surrealismo português com alguns dos criadores mais marcantes, como por exemplo Mário Cesariny, ou mais desviantes como Luís Pacheco.
Tanto em Portugal como no estrangeiro viveu uma vida de aventura, entregue a muitos trabalhos que lhe permitiram conhecer por dentro o submundo dos explorados, do operariado, e até o dos prostíbulos (de Antuérpia) de que a dada altura se fez guia entre marinheiros que ali chegavam, para sobreviver. Vivia assim entre a luz e a sombra, o dia e a noite, na penumbra das palavras contadas.
Ler OS PASSOS EM VOLTA, ou APRESENTAÇÃO DO ROSTO, exige que se reconheça que houve ali muito caminho andado: o da vida que empurra e o de um imaginário à solta que a mão livre e as associações ainda mais livres da Escola freudiana de Breton iriam ampliar até à dimensão do que chamamos Génio Criador.
Há uma genialidade própria, na obra de Herberto Helder, na poesia como nesta prosa quase hermética de tão densa, porque a sua escrita é permanentemente atravessada pela vida vivida, mais até do que sonhada. Nele o sonho é uma provocação, diferente do que lemos em Pessoa (o sonho como absolvição). A Obra de Herberto é uma obra de viagem, feita de passos em volta e muito caminhar por dentro, como em Rimbaud ou em Lautréamont, os outros criadores que me ocorrem quando penso no nosso poeta.
Era grande a sua formação cultural, apesar dos trabalhos “menores“ que lhe permitiam, a espaços, ganhar a vida. Mas era uma vida ganha sem favor, feita de grande liberdade e independência. Estudou Direito em Coimbra, Letras em Lisboa, e depois, por um tempo, saiu do seu país. Aí a vida caiu-lhe em cima, e ele em cima da vida.

Em 1963 publica OS PASSOS EM VOLTA, em 1966 a APRESENTAÇÃO DO ROSTO.
O Modernismo experimentalista já dava sinais, em Portugal, em pequenos círculos de poetas amigos que se liam entre si, enquanto os assombrava o fantasma da Censura.
A ortodoxia literária mantinha por isso uma presença indiscutível, e os autores que surgiam, inovando, tinham muito que esperar, enquanto caminhavam. Eram passos em volta... de si mesmos, dentro dum país ainda muito hostil.
Como abordar então, na crítica, no meio académico, ou na arte da ilustração, um autor assim, feito de rasgos ora líricos ora desafiantes, ou mesmo chocantes para os leitores aprisionados num imaginário rudimentar, sem verdadeira abertura intelectual? Em Portugal, naqueles anos, pouco ou nada se lia que trouxesse marcas de diferença. Ou lia-se às escondidas, bem como muitas vezes se escrevia mais nas entrelinhas do que directamente nas linhas...

O interesse de uma criadora como Mariana Viana, propondo-se ilustrar os Passos em Volta, diz muito da mudança dos tempos e da permanência da Obra de um autor que há anos se tinha remetido a um desaparecimento quase total dos meios literários, por cansaço e por desinteresse.
Na sua escrita densa batia um ritmo que era de Joyce, nos pormenores descritos, em cada canto, de cada lugar, e rasgavam-se os horizontes de um Álvaro de Campos ou de um Rimbaud frenético e ávido de embriaguez. Uma prosa interpelante, e tentadora.

Mariana Viana, tão de outra geração, a dos jovens que já cresceram livres e entregues às suas escolhas, sem impedimento, soube destacar, de cada conto, de cada canto, de cada recanto mais sombrio da alma, a pulsão que guiava aquela escrita: por vezes o negro mais perverso, ou pelo contrário, outras vezes, o sopro condutor mais luminoso: passos em volta, de facto, de um tumulto central, cuja explosão podia ser temida, como a de um buraco negro que explodisse, contrariando a sua natureza.

Mariana Viana buscou a animalidade de arquétipos como o dos cães, como o da aranha-mãe, tão significativo de uma relação com o feminino nunca por completo resolvida, ou ainda como o dos peixes, proliferando de várias formas da qual o coelacanto é a mais expressiva, remetendo para o tubarão-fêmea de Lautréamont, ou a baleia de Moby Dick, de Melville, figuração da impossível luta, desigual, do Homem, com os elementos de que ele mesmo faz parte integrante. Lutar é desintegrar-se. Mas o poeta, eterno marinheiro, nada teme.
Terra e água surgem, nesta obra, como elementos primordiais: o espaço por onde se caminhou, por onde se viajou, por onde o corpo tantas vezes se perdeu para que a força da alma se encontrasse.
Para os cães, figurações divinas desde os antigos egípcios, pintou a artista uma árvore que podia ser da Vida. Introduziu, com intuição criadora, o elemento Ar no conjunto dos animais escolhidos. Espiritualizou a energia dos cães, nesse seu quadro, em que até algumas cabeças voam, como que desejando soltar-se da forte coluna que os prendia ao real quotidiano. Não pertencem a um qualquer Hades conhecido, são antes ideias-força (como gosta de dizer o filósofo José Gil) que num vôo onírico de facto se libertam.

De que modo pode um ilustrador abordar a obra que escolheu? Julgo que de todos os modos que o inspirem, à medida que vai lendo e meditando, que é como quem diz ouvindo, a voz que veio de um outro. E no caso de Herberto, a quem se aplicaria facilmente, com sua aprovação, o célebre Je est un autre, de Rimbaud, por maioria de razão, Ilustra-se como alter-ego, como reinvenção da obra que é dada a conhecer.
Daí que o recurso a uma prática onírica, em Mariana Viana, complete de modo perfeito a figuração arquetípica, quase sempre, da narrativa que flui.

Herberto Helder, aqui, na prosa como em tantos poemas, afunda o pensamento e o seu dizer numa torrente de consciência avassaladora para quem lê, e mais ainda para quem deseja que se visualize a escrita e o escrito, numa ilustração adequada: que não limite, que redescubra a raiz primordial e a amplie, abrindo espaços e tempos no nosso imaginário.

Há nos quadros de Mariana um supreendente Bestiário, quase ao modo das descrições medievais, mas na verdade resultante da muita cultura actual, surrealista e post-moderna da pintora, que não deixa de ser impressionante, e nos força por vezes a revisitar o texto.
Peixes que nos atordoam, soprados, voadores, aranhas que assustam, na representação tão evidente do feminino negado, e em todos as formas desenhadas uma espécie de fina alusão, uma ironia feroz, contraditória porque quase transparente, que distancia quem olha, como no texto, ao modo brechtiano, o dizer do narrador nos distancia dele mesmo e do mundo que narra.
Herberto Helder não escreve para que o sigamos, mas para que nos distanciemos.
E Mariana Viana, nas escolhas que fez não quis afirmações, não quis tranquilizar, mas deixar em aberto, sobre o branco desafiador da folha que teve em frente, um mundo imaginário, carregado de sentidos, portador dos elementos base dos textos que foi lendo.
Tomemos como exemplo a TEORIA DAS CORES:
Mariana reúne aqui, como numa súmula do dito, do visto e revisto, ao modo alquímico dos sábios mais antigos, o Sem-Fundo de que falavam Boehme, no século XVII e Paul Celan, no nosso tempo, o grande peixe abissal, do Antigo Testamento, de boca gigantesca deixando ver as formas da criação futura, já presente, e no repuxo expelido da cabeça mais outro turbilhão, um cardume de peixes, a sublinhar deste modo que o elemento em que a obra mais se manifesta é o da Água primordial, onde tudo se forma e de onde toda a futura vida nascerá.
Entre o poeta e a mão que o ilustrou: uma fusão de alquimista, ele que num pequeníssimo texto de 1978 ( O CORPO O LUXO A OBRA) alude no fim à bua de Esmeralda de Hermes Trismegisto, mostrando que sabe do que fala, quando escreve, tal como Mariana sabe do que encontra, quando ao pintar des-articula, desmonta e por fim nos revela nas imagens os mais ocultos segredos.

Y. K. Centeno
Lisboa 2017