Conversa com Edgar Martins e Margarida Medeiros

PORTA33 — 23.10.2009

Edgar Martins: quando a luz escondeu as sombras

“L’essence de la photographie est un écart”
Jérôme Thélot 1

As imagens produzidas por Edgar Martins transportam consigo aspectos críticos que implicam, no seu interior, toda uma consciência dos processos perceptivos bem como da complexidade da nossa relação com a fotografia — e com a realidade convocada por esta.

Quando nos aproximamos destas imagens, vazias, frias, deceptivas na sua planura e na sua repetitividade simétrica, nada nos distrai. O sujeito que as olha é irremediavelmente preso, desfolhando uma série de perguntas, apropriadas ou não, mas incontornáveis: Como fez? O que estou a ver? Para onde devo olhar? Serão estas imagens “fotografias”? Serão elas “verdadeiras”?

Esta insidiosa incerteza provocada pelas fotografias de Edgar Martins coloca as mesmas no limiar do passado da história da fotografia, como da sua actualidade e futuro. Poderíamos mesmo dizer que desde início da fotografia, há quase duzentos anos, a questão do falso a trabalha e a estrutura, por todas as formas e feitios. Quando uso o termo estrutura quero dizer exactamente isso: é a sua essência, a forma como as suas manifestações se efectivam e se nos mostram. Não admira portanto que, se as imagens de Edgar Martins são desde o início carregadas por um certo mistério anti-fotográfico, a polémica em torno de uma falsa etiqueta com que as mesmas foram apresentadas nas páginas do New York Times tenha, de alguma forma, trazido ao de cima o recalcado de um conjunto complexo de operações envolvidas nos processos fotográficos — mas das quais o espectador só capta uma aparência final. A História da Fotografia inscreveu-se sempre nessa complexidade semiótica, desvalorizando assim a questão dos modos de produção da verdade face à possibilidade, infinitamente mais interessante, de aparência da mesma. Vejamos apenas alguns exemplos.

Na sua publicação The Pencil of Nature (1844) William Fox Talbot convoca o automatismo da fotografia, a sua suposta objectividade absoluta, por diversas vezes, nos comentários que faz às imagens escolhidas para publicação — nomeadamente reiterando a ideia de que a câmara não poderia recusar o registo do que está na sua frente. Assim, a ideia acalentada ao longo desta obra de tom panfletário sobre as mais diversas utilizações da fotografia para o campo da captura objectiva do real, associa decisivamente, como aconteceu com outros escritos desde o início, a invenção da fotografia ao que Jacques Derrida designou como ‘mitologia branca’2. Michael Charlesworth, no seu artigo “Fox Talbot and the ‘white mythology’ of photography”, analisa em particular a imagem “A scene in a library”; trata-se de uma imagem de uma estante de livros, cujo comentário não se refere, ao contrário do que se passa com as outras, à imagem propriamente dita, mas a uma divagação sobre a possibilidade de fotografar objectos no escuro. O que é interessante na análise de Charlesworth, é o facto de provar que a imagem realizada por Talbot é, contrariamente à tese sustentada pelo mesmo ao longo de todo o livro, uma mentira. A estante não fora fotografada no seu lugar, no interior da casa, mas no exterior, já que as luzes reflectidas pelas lombadas dos livros demonstram a necessidade de luz natural, até pelo facto de nelas se inscreverem vigorosas sombras apenas possíveis de captar, à época, no exterior. Assim, conclui, “esta imagem mostra que a fotografia é simplesmente uma mentira, que ocorre no interior de um livro dedicado à verdade e, em particular, dedicado a forjar uma equação ‘natural’ ou inevitável entre verdade e fotografia” 3.

A questão da falsidade na fotografia, se sempre esteve presente desde o início, não esteve sempre presente no discurso, e, pelo contrário, é em torno da sua objectividade incontornável, da construção de um visível ‘transparente’ na sua relação com a realidade, que a poética da fotografia se foi construindo, bem como a sua abordagem filosófica. Charles Baudelaire referia, justamente, o carácter ‘obsceno’ da fotografia como um dos principais motivos da repulsa que esta lhe suscitava, pelo que, dada a sua natureza, literal e supostamente não mediadora do real, deveria o seu uso ser restrito às ciências e às técnicas4. Mas isso não significa que os manuais não referissem, sistematicamente, as técnicas mais elaboradas para construir uma boa fotografia …do real. É conhecida a técnica das nuvens: em diversos manuais e revistas técnicas, entre as quais a portuguesa “Arte Photograhica”, se explicitava que a ‘produção’ de uma bela paisagem com nuvens deveria ser realizada em separado, pelo que, para obviar essa dificuldade, deveria o fotógrafo ter sempre um conjunto de clichés já feitos anteriormente só com nuvens, dado o diferencial de exposição necessário entre as mesmas e a restante paisagem.

Todos estes episódios e répères técnicas se inseriam numa rotina de produção no interior da qual o que interessa na fotografia é, como afirmava André Rouillé, a produção do visível, ou seja, o facto de que o fotográfico se instala numa cultura apta e ávida em lidar com uma realidade que é delegada e produzida nas imagens de si mesma. Deste modo, o falso não seria mais do que o desenho de um intervalo entre a produção pela luz da realidade e a escrita produzida pela mesma numa superfície sensível. E embora esse intervalo seja tudo o que é preciso para podermos falar de ilusão, de construção ou de falso, não restam dúvidas de que é o seu estatuto como representante da «realidade» que incutiu originalidade — bem como problematicidade — à fotografia. O termo fotografia, que surge do radical grego fós (luz, phai-nen significando ‘colocar à luz’) junta-se a graphein, escrita e foi justamente Platão quem chamou a atenção para o lado ambíguo da escrita que associava ao pharmakon (remédio e veneno, simultaneamente): a escrita introduzia uma distância entre o seu escritos (o Sofista) e o seu leitor (o membro do Senado para o qual o discurso fora escrito), tornando esta última um processo potencialmente inautêntico e transformando o discurso num jogo de aparências.

Este jogo distanciador — que Barthes denominou de ‘o quase’ da fotografia — parece inscrever-se no seio da verdade fotográfica contra qualquer apelo, nomeadamente do mito, construído ao longo da estreita relação produzida, durante o século XX, entre Fotografia e História, ou entre Fotografia e Actualidade. Este mito do realismo fotográfico, que permitiria a ausência de mediação entre o sujeito e o mundo, assenta na crença das propriedades automáticas do médium, que recusaria discriminar o objecto e se transformaria no principal veículo da sua apresentação objectiva. No entanto, como salientou ainda Charlesworth, é perfeitamente possível uma câmara recusar-se a ver o que está na sua frente: “esta recusa aconteceu, por exemplo, na fotografia de uma movimentada rua principal de Agra, na Índia, tirada por John Murray em 1856-57. Uma grande exposição reduziu a presença das pessoas que circulavam na rua a vagas manchas desvanecidas de um tom pálido.” (Charlesworth 1995: 109).


2. A necessidade de invocar estes exemplos históricos — ou outros, poderiam ser infindos — é suscitada pelo trabalho de Edgar Martins, cuja leitura convoca e invoca todo esse passado mais ou menos ‘embrulhado’ que a fotografia acarreta na diversidade das suas práticas. Trata-se de um trabalho que evidencia de forma obsidiante os aspectos construídos da nossa percepção. Quando falo de construídos não me refiro apenas a uma certa forma de representar o mundo, herdeira do renascimento e da perspectiva, que Edgar Martins procura contrariar e suavizar, mas também a aspectos físicos que determinam os limites da percepção subjectiva e que tornam o acto de percepcionar visualmente um facto filosófico de grande complexidade. “When light casts no shadow”, título da exposição presente na Porta 33 entre Outubro de 2009 e Janeiro de 2010 reúne obras de diferentes séries produzidas pelo autor; séries que pressupõem diferentes modos de produção (mais ou menos manipulação digital, uso ou não uso do Photoshop), consoante o conceito que determina a série e as necessidades para a sua exploração visual. No entanto, em todas estas imagens, mas sobretudo nas que exploram simetrias espaciais (as pistas do aeroporto, por exemplo, ou dos seus pilares) ou uniformização cromática, remetem o espectador para um sistema de representação que deteriora o vulgar sentido de ‘ver uma fotografia’. Edgar Martins coloca o sujeito numa posição incómoda, porque nem sempre este sabe o que está a ver representado, ou se esta representação corresponde a alguma coisa ‘real’. Se na imagem da biblioteca de Talbot nos é apresentada uma estante que afinal não foi captada onde parece ter sido, nas imagens de Edgar Martins o processo é ao contrário. A imagem pode ter sido captada lá, mas é como se não tivesse sido, porque a forma como organiza os elementos significativos no interior da imagem (o mar em gradação de cor, ou as paredes de cimento construindo um espaço fechado e abstracto, a paisagem que se des-substancializa na noite) rouba ao espectador a segurança tradicionalmente fornecida pelo dispositivo e desmente, assim, o mito da transparência.

Mas não é apenas este aspecto perceptivo que é problematizado de forma sistemática e desestabilizadora nas imagens de Edgar Martins. O vazio que instala com o despojamento e opacidade das suas imagens parece pretender estabelecer um contraponto — ou uma resposta critica — à fluidez e desmaterialização do mundo contemporâneo; um mundo onde a economia de mercado instaurada desde a modernidade pelo capitalismo, e que o século XX não fez senão aumentar tem vindo a dominar e condicionar toda a relação que estabelecemos com a realidade.

Assim, o que Edgar Martins nos traz não é a realidade através da fotografia (uma das grandes linhas de acção desta), de forma mais ou menos interessante; o que traz é a fotografia em si mesma, através da realidade. O que resulta daqui? Que os problemas que coloca não se referem à realidade externa ao sujeito, à forma como a questiona ou denuncia, como a resolve ou a dissolve no interior da imagem. Referem-se prioritariamente ao modo como nos relacionamos com a realidade externa através da fotografia, isto é, ao modo como fomos descentrando o nosso olhar para o consumo de uma plataforma de imagens e nos fomos (des)equilibrando; assim, problematiza-se nestas imagens o lugar que as mesmas ocupam na produção do sujeito que as faz e as contempla; o lugar do sujeito numa cultura que produziu formas de percepcionar a realidade e de a representar que não fazem mais do que acentuar o seu progressivo afastamento desta. No limite, a fotografia, como diz Jérôme Thélot, é sempre “um desvio” da realidade. Ao desviar a fotografia de uma realidade saturada pela sua mediação em imagens, E. Martins sublinha o esvaziamento identitário produzido na hiper-estimulação da cultura moderna e contemporânea. Como se à hiper-estimulação que se vive no mundo actual, cercado de sobre-informação não-pensada, acriticamente recebida, fosse necessário devolver o pensamento. Assim, o trabalho deste autor vem sublinhar o esboroar das fronteiras identitárias que essa cultura produziu, apresentando-nos um sujeito que ao excesso do visível produzido pela fotografia contrapõe a encenação do seu aniquilamento interior. “Quando a luz não produz sombras” interpela o excesso de exterioridade — e de visibilidade, supostamente — a que nos fomos sujeitando, propondo-se sair para fora desse jogo de verdade no qual a fotografia apostou e denunciando o paradoxo por meio do qual, sendo o dispositivo da luz, se transformou sobretudo no que recalca as sombras.

Margarida Medeiros
Lisboa, Janeiro 2010




1. Jérôme Thélot, Critique de la Raison Photographique (Paris, Éd. Les Belles Lettres, 2009): 38.
2.Cf. Jacques Derrida, “La Mythologie Blanche”, in Poétique (Paris, Éd. du Seuil, 1971): 1-52. Neste texto Derrida realça o paralelismo estabelecido entre a luz e a verdade que atravessaram toda a metafísica ocidental e se insinuou, desde o início, na forma como a fotografia foi enquadrada no jogo metafórico da luz e das sombras. Esta visão, para além de Talbot, foi desde o anúncio da fotografia enunciada também acerca do daguerreótipo pelos seus arautos, levando mais tarde Oliver Wendell Holmes, em “The Steroscope and the stereograph” (1859), a designar este último como um ‘espelho com memória’.
3.M. Charlesworth, “Fox Talbot and the ‘white mythology’ of photography”, Word & Image, vol. II, nº 3, July-September 1995: 214.
4.Cf. Charles Baudelaire, “Le Public moderne et la Photographie”. Écrits sur l’Art. Paris: Le Livre de Poche, (1859)1992.

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