JOÃO QUEIROZ
PINTURA E DESENHO
PORTA33 — 07.06.1994 — 16.07.1994
INSERTS

... é só uma questão de saber como uma coisa particular pode decompor outras coisas fornecendo-lhes uma relação consistente como uma outra relação própria, ou, pelo contrário, como se arrisca a ser decomposta por outras coisas. Mas agora, é uma questão de saber se as relações (e quais) podem combinar directamente para formar uma nova e mais “extensa” relação, ou se as capacidades podem combinar directamente para constituir uma capacidade, ou poder, mais “intensa”. Já não é uma questão de utilizações e capturas, mas de sociabilidades e comunidades.

Gilles Deleuza, Ethology: Spinoza and Us

Os processos de classificação constroem o nome das coisas. Há objectos, em arte, que denunciam uma recusa particular em relação aos processos de classificação e, portanto, são remetidos para o campo do que não é nomeável. O que é uma coisa que não tem nome? Qual a natureza de uma coisa que não é nomeável, que não tem limite de reconhecimento? Estas questões podem ser legitimamente levantadas a propósito do trabalho de João Queiroz, destas suas obras recentes. Porquê?

A pintura é um processo aditivo. A construção da pintura obedece a uma lógica de sobreposição de camadas, através da qual se obtém uma superfície mais ou menos espessa, uma máquina do encobrimento – no sentido em que o processo mecânico é também um processo de transfiguração. Este mecanismo da pintura serve um aparelho de definição de uma transformação de um suporte, que codifica uma relação espacial.

As obras que João Queiroz agora apresenta, dificilmente podem ser consideradas pinturas – só por escassez nominativa lhes podemos chamar assim. O seu processo constructivo é subtractivo, consistindo na dedução de camadas cromáticas e matéricas, até a superfície se transformar numa película cuja cor já não o é. Ou seja, o desgaste da superfície define um limite de contacto com o seu exterior que faz com que o quadro não se defina pela sua quadratura (pelo limite bidimensional do seu suporte), mas também, ou sobretudo, pela relação frontal da sua superfície.

Neste sentido, a forma que se inscreve é só uma definição informal – metaforizada por uma espécie de proto-desenho – onde o valor do “bom traço”, ou da “boa queda”, da força gravitacional que provoca, pelo menos em termos simbólicos, a definição de percurso ou de uma inscrição neutra no seu valor gráfico, limita a superfície epidérmica que a cera antropomorfiza.

Estes inserts orgânicos, atravessados por um processo mecânico de revelação, aproximam-se de alguma vaga noção de “corps morcellé”, de um corpo dilacerado colocado em plaquetas. A virtude do artifício afirma-se a dois níveis – no carácter subjectivo que, pela gestão de um jogo de proximidades, instaura uma relação com as obras de “arms length” e na objectividade do isolamento de exemplo, de amostras. Trata-se, portanto, de um trabalho realista, na medida em que cria situações literais de criação de corpos fragmentários, mas verosímeis.

Por outro lado, o carácter não analítico que atravessa todo o trabalho, e, mais uma vez, situa João Queiroz no meio de Spinoza (para citar Deleuze), reside na recusa de qualquer serialidade, em função de “um campo comum de imanência”. Estas obras não operam a partir de nenhuma noção de esgotamento, mas a partir de um princípio sintético de complementaridade, no sentido da divisibilidade do corpo, da interrelação de afecções.

Talvez por isso, uma recordação do filme “O Silêncio dos Inocentes” me surgiu persistentemente quando vi pela primeira vez estas obras. A imagem persistente do psicopata que fazia um vestido com a pele das suas vítimas, querendo vestir o vestido da natureza feminina.

Também estas inomináveis pinturas tentam vestir a pele de uma Natureza que só é a sua pela natureza dos modos que constituem a sua função.

Delfim Sardo
Lisboa, 7 de Julho de 1994

VER MAIS: