ESCOLA DA VILA ― CONSTRUÇÃO DE UM ESPAÇO COMUM
Exposição comissariada por Madalena Vidigal e Diogo Amaro
Escola do Porto Santo — 25.06. 2021 — 31.12.2022

ESCOLA DA VILA
CONSTRUÇÃO DE UM ESPAÇO COMUM
exposição comissariada por Madalena Vidigal e Diogo Amaro

PROCESSO

No final da década de 50 do século XX, a Câmara Municipal do Porto Santo encomendou ao arquiteto Raul Chorão Ramalho (Fundão, 1914 - Lisboa, 2002), o projeto de arquitetura para a Escola Primária do Porto Santo (E.P.P.S.) — nome de registo em Licenciamento.
Raul Chorão Ramalho era à data um respeitado arquiteto, destacando-se entre muitas outras, as obras em curso de estruturas de apoio à rede hidroelétrica para a Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira, algumas destas últimas localizadas na ilha do Porto Santo.
O Projeto de Licenciamento foi entregue na Câmara Municipal em novembro de 1959, prevendo a construção de um corpo com quatro salas de aula em localização distinta da atual. Em junho de 1965, o projeto foi revisto considerando a relocalização do edifício para o terreno definitivo e a introdução de um novo corpo autónomo para acolher uma cantina.
As obras decorreram entre 1965 e 1968 e a escola abriu parcialmente à comunidade escolar ainda durante a execução dos trabalhos, no ano letivo de 1967/1968.
Passados alguns anos da sua construção integrou o ensino pré-primário e sofreu algumas alterações ao longo do tempo, já sem o acompanhamento do arquiteto, nomeadamente adaptações nas instalações sanitárias e as ampliações do gabinete dos professores, da sala da biblioteca e da arrecadação, sendo que a intervenção mais recente data 2001. As alterações, apesar de não terem colocado em causa a integridade do conjunto, modificaram a volumetria do edifício e a fluidez dos espaços exteriores.
Reconhecido o seu valor histórico, arquitetónico e artístico, para além do intrínseco valor afetivo para aquela comunidade,a partir de 2019, a PORTA33 inicia um trabalho de recolha e levantamento documental, em estreita aproximação à sua comunidade. Do qual resulta, em abril de 2020, a abertura do procedimento de classificação a Imóvel de Interesse Público.
Possibilitado pela cedência e reprodução dos documentos originais por parte do SIPA – Sistema de Informação para o Património Arquitetónico e dos Arquivos e Bibliotecas da Madeira, a “Escola da Vila” é hoje, objeto de análise e reflexão nesta mostra expositiva, que apresenta os desenhos relativos às duas fases de conceção do projeto: o Projeto de Licenciamento de 1959; e a sua revisão de 1965.
A exposição assinala a reabertura e reativação do seu edifício, com um novo propósito — um novo Espaço Cultural e de Residências Artísticas — promovido pela PORTA33, que agora inicia um processo de devolução à sua comunidade, em cumprimento do contrato de cedência da Escola da Vila pelo Município do Porto Santo.



CONJUNTURA

O edifício da Escola Primária revela uma influência, ao tempo atual, das novas tendências arquitetónicas europeias do pós-guerra, nomeadamente através da expressão algo "brutalista" da sua materialidade exposta, bem como da subtileza no desenho dos espaços de interlúdio, interior-exterior. No entanto, de forma suave, o edifício adquire uma escala doméstica, recuperando a escala humana e recusando a monumentalidade apregoada pelo International Style de Hitchcock e Johnson (1932). Esta dimensão humana aproxima o edifício da comunidade, oferecendo, através das suas qualidades espaciais inegável bem-estar aos seus habitantes. A tipologia "Escola❞ é sempre um desafio maior para o arquiteto, pela responsabilidade do desenho do projeto que em última instância representará, uma vez construída a obra, valores universais de base essenciais à formação humana. — No século XX, assistiram-se a grandes transformações na evolução da morfologia dos edifícios escolares, desde a conceção da escola open-air no virar do século à inclusão da pré-fabricação enquanto processo de resposta quase imediata à destruição do pós-guerra. Contemporaneamente vários arquitetos e intelectuais pensavam a nova escola The New School / La Nouvelle Ecole / Das Neue Schulhauna (Alfred Roth, 1957) - na Europa e no mundo, dos quais, Aldo Van Eyke, Giuseppe Terragni e o próprio Alfred Roth. Atento aos movimentos internacionais, estes conceitos não poderão ter passado despercebidos a Chorão Ramalho, que apresenta uma proposta de conceção inovadora no Porto Santo. A Escola Primária do Porto Santo é testemunho exemplar de uma arquitetura de vanguarda que se terá vindo a impor desde o 1.o Congresso Nacional de Arquitetura de 1948, em Lisboa, onde os "novos" arquitetos se opuseram firmemente ao "estilo" português suave. Teve ainda a particularidade de ter sido construída num contexto de grande insularidade e, por se encontrar longe dos círculos de maior notoriedade das artes e da arquitetura, passou despercebida à austeridade do Ministério das Obras Públicas, pela sua tipologia e linguagem contestou os modelos-tipo do Plano de Escolas do Centenário em vigor. Numa carta que se encontra no seu fundo documental, no Forte de Sacavém, em Lisboa, o arquiteto Raul Chorão Ramalho, testemunha: «Na mesma altura projetei outra Escola Primária para a Ribeira Brava, na Madeira, que foi aprovada pela Câmara mas reprovada pelo Ministro das Obras Públicas que não concordou com a forma arquitetónica e queria que eu fosse falar com ele. Não fui.>>
PANORAMA CULTURAL

O Regime tinha adotado o estilo "português suave", que supostamente recriava a identidade arquitetónica nacional e que assentava no uso de elementos arquitetónicos de gosto "tradicional" ou "histórico" sobre estruturas de engenharia moderna. O resultado representava o equívoco que esteve presente desde os anos 30 ao início dos anos 60, no entendimento entre expressão artística e expressão nacionalista.
Na sequência do Congresso de 1948 e como uma resposta direta à imposição do estilo nacionalista, conhecido como Português Suave, o Sindicato Nacional dos Arquitetos promove, entre 1955 e 1961, um inquérito à arquitetura popular portuguesa, resultando nos dois volumes da publicação Arquitectura Popular em Portugal. Na sequência da revisão crítica à arquitetura do Movimento Moderno, esta publicação alinhava-se numa corrente de interrogar a erudição, em confronto com diversas arquiteturas populares, como foi também exemplo a exposição e catálogo Architecture Without Architects (Bernard Rudofsky, 1964). Os dois volumes do inquérito à arquitetura popular portuguesa marcaram fortemente a geração de arquitetos daquela altura. Chorão Ramalho é também fortemente influenciado pela sua leitura sendo que o espírito que daí surgiu é evidente nos seus trabalhos. A Escola Primária do Porto Santo (Catálogo da Exposição Raúl Chorão Ramalho Arquitecto, Casa da Cerca Almada, 1997, pp. 28-110) é seguramente um caso paradigmático da arquitetura escolar no contexto nacional e europeu. O seu desconhecimento em parte, dever-se-á à sua localização, longe das vistas apertadas do Estado Novo. O seu desenho radical será também resultado da própria interpretação do contexto geográfico e da cultura local, incorporando, contudo, o cosmopolitismo do arquiteto. Importa, no entanto, recordar que outros seus pares contemporâneos, lograram também construir escolas primárias dentro deste espírito vanguardista. Alguns, poucos, tiveram êxito apesar das múltiplas contrariedades impostas pelo Ministério que herdara os modelos das escolas dos "centenários" dos anos trinta e quarenta, que continuaram em construção até aos anos sessenta do século XX. Importa realçar que esta escola é precursora de outras projetadas nas décadas de cinquenta e sessenta por arquitetos comprometidos social e culturalmente, com os movimentos culturais internacionais. Como também é justo recordar as experiências pioneiras de Manuel Laginha nos exemplos da Creche de Olhão, de 1950 e da casa da Primeira Infância de Loulé, construída entre 1952 e 1958.
De entre outros pioneiros e resistentes arquitetos modernos destacam-se: Victor Palla e Bento d'Almeida, com a Escola Primária do Vale Escuro em Lisboa, de 1953, e o Grupo Escolar dos Olivais Norte, de 1955. Outros exemplos de exceção são Fernando Távora com a Escola Primária em Vila Nova de Gaia, de 1957, Formosinho Sanches com o Externato Manuel de Melo no Barreiro, de 1963 e Maria do Carmo Matos, Augusto Brandão e José Costa e Silva com a Escola piloto de Mem- Martins, de 1967. E no Arquipélago da Madeira considera-se pertinente assinalar a Escola Primária da Nazaré no Funchal, de 1963, do arquiteto madeirense Rui Goes Ferreira.
Na década de 1960, destacam-se ainda as escolas projetadas e construídas nas ex-colónias por Fernando Schiappa de Campos, na Guiné, 1961, Rodrigo Viola em São Tomé e Príncipe, 1960 e Pancho Guedes, em Antioka, Moçambique 1964. Por fim, não se pode deixar de fazer referência à antiga Escola Comercial Pedro Nolasco, atual Escola Portuguesa de Macau, do próprio Chorão Ramalho, que embora nunca tenha sido Escola Primária, é considerada um dos expoentes da arquitetura portuguesa deste período.
Nos anos 50 e 60 do século XX, os arquitetos portugueses que se destacaram foram aqueles capazes de estabelecer pontes com a cultura construtiva local, analisando a espontaneidade da arquitetura popular e vernacular e desmistificar a ideia defendida pelo então regime autoritário de um estilo único nacionalista português. O Arquiteto Raul Chorão Ramalho aliou esta capacidade à possibilidade que o contexto insular potenciava para a realização de novas arquiteturas, conseguindo projetar no Porto Santo um case study que é, ainda hoje, de inegável importância e significado.

O Projeto de Licenciamento em 1959 foi desenhado para um terreno situado na "Zona Central da Vila", na Rua Cristóvão Colombo, mas a solução manteve-se sensivelmente inalterada até à sua edificação. A planta desenvolve-se num só piso e a organização é modular, extremamente racional e funcional, pensada para poder ser replicada e adaptada a diferentes contextos. As quatro salas de aula foram distribuídas em linha e agrupadas em pares, destinadas à separação de uma ala de raparigas e outra de rapazes. Os dois pares de salas são simétricos e a cada par corresponde um núcleo de instalações sanitárias onde se concentram as redes de saneamento. A dividir as alas, foi introduzido um elemento que funciona como eixo da simetria o gabinete dos professores. — Cada sala de aula estende-se através de amplos vãos a um pátio exterior orientado a sul. A presença de vegetação e arvoredo, as projeções das suas sombras, nos sucessivos espaços exteriores, alternadamente cobertos e descobertos, criam ambientes inspiradores, potenciando atividades dos mais variados domínios e estimulando a criatividade dos docentes e alunos. Os pátios são interligados por palas exteriores onde se fazem as circulações, tirando partido do excelente clima local, e servem também de sombreamento ao interior das salas, onde a iluminação e ventilação foram devidamente estudadas e controladas.
O edifício tem uma plasticidade distintiva, expressa nos jogos de aberturas na fachada sul do corpo da escola, mas também pelo contraste entre as paredes originalmente caiadas e a revelação dos elementos estruturais em betão à vista. Numa fase inicial da obra as paredes foram integralmente caiadas numa cor neutra, mas pouco tempo depois surgem elementos pontuais numa cor almagre, possivelmente resultado de uma mistura de cal com um pigmento de argila avermelhada, nomeadamente nos pilares e nas paredes divisórias dos pátios.
Este apontamento detém-nos sobre o tema da maleabilidade do processo construtivo, a espontaneidade e sensibilidade do arquiteto à orgânica do lugar cultural, revelando a presença constante do arquiteto neste processo e a especial atenção que terá dado às possibilidades da expressão artística na obra arquitetónica, tema este recorrente em toda a sua obra. No centro da fachada sul do corpo da escola destaca-se ainda a presença de uma peça quase escultórica, que simultaneamente acentua a simetria e compõe o alçado um pombal entretanto demolido. Poder-se-ia propor uma simbologia por detrás deste elemento, mas cingimo-nos a relembrá-lo na sua monumentalidade.
Salienta-se a utilização da "Pedra Branca do Porto Santo" (traquito) nas soleiras e ombreiras, uma rocha vulcânica porosa local de cor cinzento-clara.
Atento aos materiais, recursos e soluções da arquitetura vernacular madeirense, o arquiteto faz, nesta obra, uma interpretação e apropriação muito pertinente dos tradicionais tapa-sóis de madeira, da calçada escassilhada, de calhau rolado, e mesmo das coberturas de salão. Nesta obra ousa investigar a viabilidade da aplicação da solução construtiva local que recorre à terra “salão” como isolamento térmico das coberturas, adaptada ao clima seco e quente do Porto Santo. O arquiteto previu a utilização desta terra local sobre as lajes de betão para melhorar a seu comportamento - proposta que podemos imaginar que acrescentaria um sentido plástico e dissimulador muito particular à obra, quando vista em altitude. No entanto, nunca encontrou a viabilidade procurada, por razões que se desconhecem. Sublinha-se que até hoje ainda não houve nenhuma reintrodução contemporânea desta técnica.
Fortemente informada pelo contexto da arquitetura europeia que lhe era contemporânea, esta obra revela grande inovação tipológica, garantindo uma autenticidade e continuidade com a realidade envolvente. Assente na observação e análise cuidadas sobre as particularidades, materiais e recursos locais da Ilha do Porto Santo, procurou valorizar as potencialidades e características do seu território bem como a preservação da sua cultura construtiva.
O projeto para o corpo da cantina foi desenvolvido numa segunda fase de projeto, que data junho de 1965, mesmo antes do início das obras. Este novo corpo foi implantado a sul do corpo principal e amplamente aberto para esta orientação, desenvolvendo-se numa grande sala de refeições, de carácter polivalente, e adjacente a uma cozinha. Numa conceção inicial o novo corpo foi desenhado com telhado de duas águas, e posteriormente repensado e construído com cobertura plana, em continuidade com o corpo principal da escola. Entre os dois corpos foi desenhado o vazio de um grande descampado, que recebeu um reservatório de água, que suportaria os períodos de longas secas característica da realidade da ilha. Em todas as representações da planta de conjunto surge um muro que seria a expressão mais forte da separação entre as alas de raparigas e rapazes, imposta pelo Plano de Escolas do Centenário. No entanto, esta imposição foi dissimulada e nunca chegou a haver separação de género ou espacial no descampado da "Escola da Vila".

POTENCIALIDADES E FUTURO

A obra da “Escola da Vila” é, ainda hoje, um testemunho necessário para a perpetuação de uma arquitetura que celebra os valores culturais do lugar, de uma forma inovadora. Tão difícil de manter no panorama atual, quando, mergulhados num ambiente de dimensão mundial, tantas vezes perdemos a ligação ao que nos define e assistimos uma gradual homogeneização e empobrecimento da arquitetura das nossas cidades e paisagens.
As valências singulares dos seus espaços e plasticidades parecem convir bastante à sua nova apropriação. A mesma inteligência na observação e valorização das potencialidades do território empregue na arquitetura da Escola inspira o novo projeto a implementar. Será a partir da observação e análise cuidadas sobre as particularidades da ilha do Porto Santo e da leitura e escuta das características da sua comunidade que nasce um novo propósito para este espaço.
O exercício de consciencialização e afirmação continuada do valor desta peça arquitetónica servirão de mote a um trabalho promovido pela PORTA33, de sensibilização e reconexão da comunidade com a sua própria identidade e memória, procurando contribuir para o desenvolvimento sustentável do seu território. Este edifício-laboratório ou case study pretende continuar a ser fonte de inspiração e de investigação de novas formas de produção arquitetónica e artística.

organização, produção e coordenação
PORTA33

curadoria
Madalena Vidigal e Diogo Amaro

design
Dayana Lucas

inventário
Madalena Vidigal

apoio à produção
Região Autónoma da Madeira Governo Regional | Vice-Presidência Porto Santo
Município do Porto Santo
Sociedade de Desenvolvimento do Porto Santo, S.A.
Tintas CIN
Alfilux
Construções Melim & Melim

impressões
Promerch Publicidade

textos
Madalena Vidigal

com contributo especial de Victor Mestre e Pedro Ravara, e a partir dos testemunhos da comunidade Portosantense.

bibliografia seleccionada
FERNANDEZ, Sérgio (1988) - Percurso: Arquitectura Portuguesa, 1930-1974.
GASPAR, Emanuel (2010) - A Obra de Raúl Chorão Ramalho no Arquipélago da Madeira.
GASPAR, Emanuel (2002) - ILHARQ, n.o 2, pp.77-85.
MESTRE, Victor (1997) in Catálogo de exposição retrospectiva da obra de Raúl Chorão Ramalho.
MESTRE, Victor (1998) Islenha, no 23, p. 108-112.
MESTRE, Victor (2001) - Arquitectura Popular da Madeira.
MOURA, Jorge Croft de (1957) - Revista Arquitectura, n.o 61, pp.32-35.
SOUSA, Élvio; MENEZES, Fátima (2009) - Inventário do Património Imóvel do Porto Santo.
TOSTÕES, Ana (1997) - Os Verdes Anos na Arquitectura Portuguesa dos Anos 50.
TOUSSANT, Michel (1997) - Jornal dos Arquitectos, n° 170.

mecenato
Tintas CIN
fundo documental
O arquivo profissional do arquiteto Raúl Chorão Ramalho foi doado ao Arquivo de Património Arquitetónico da Direcção-Geral do Património Cultural, encontra-se no Forte de Sacavém, em Lisboa.

cedência de documentação
Direção Geral do Património Cultural | SIPA - Sistema de Informação para o Património Arquitetónico Região Autónoma da Madeira Governo Regional | Secretaria do Turismo e Cultural Direção Regional do Arquivo e Biblioteca da Madeira