DA CONTINUIDADE DAS FORMAS E DO MODO COMO POUSAM — ARQUIVO
Conversa com Paulo David, Nuno Faria, João Favila, Ricardo Carvalho
PORTA33 — 24.11.2018
"Eu preferia não o fazer".
Herman Melville, "Bartleby"
Talvez por assistir ao singular e persistente trabalho que a Porta 33 promove e por reconhecer este exercício como um reduto de serena resiliência, proponho a ideia de "Resistência" para pensar um pouco sobre o desenho, a arquitectura e o trabalho do Paulo David.
Enquadra-se esta categoria na proposta do seminário: o desenho como "prática ecológica" onde mais
importante que desenhar é afiar o lápis. "Afiar o lápis" é um momento de paragem no acto de
desenhar, um momento de distância. É o momento em que não estamos lançados no gesto mas suspensos.
Proponho pensar a Resistência como prática ecológica: um esforço de limitação, de contenção. Entender a acção
artística, o exercício da arquitectura, como uma praxis filosófica. A acção de resistir como
um território partilhado entre a arte e a filosofia.
A palavra Resistência transporta, na sua estrutura, a sua identidade: O prefixo "re" que
traduz a repetição, como em re-fazer, em re-parar, parar para ver melhor. A
este prefixo associa-se a raiz latina "sistere" que é comum a suster,
existir, com o sentido de firmar-se, permanecer, segurar-se de
pé. Re-deter-se num lugar.
A proposta da palavra, na sua etimologia, é a de que nos detenhamos, não nos apressemos. Suspender,
conter, para ver melhor.
Neste sentido trago um exercício que o João Queiroz propõe aos seus alunos:
"escreve o teu nome completo. Mas escreve-o da seguinte maneira: de forma a que cada momento
pudesses suspender a escrita, mesmo que seja a meio de cada letra".
Pretende-se que suspendamos o mais antigo acto de escrita da nossa memória. Uma criança começa por desenhar a
sua letra (desenhar e não escrever), depois o seu nome, transformando esta acção no gesto mais automático e
intuitivo da nossa mão. A reflexão sobre aquilo que reconhecemos como o mais natural é a proposta do
exercício. Um processo de desaprendizagem voluntária.
Esta suspensão é um trabalho filosófico e também uma prática poética, de poiesis, de criação.
Propõe-se colocar entre parênteses aquilo que sabemos de cor, o gesto que já não desperta a nossa atenção e,
no embargo desta acção, que reaprendamos a "desenhar a escrita".
Desenhar o que espontaneamente escrevemos aproxima-se da filosofia na recuperação do "espanto". O
pensamento filosófico resgata-nos ao curso natural dos dias tornando manifesto o que já não distinguimos, o
que na nossa rotina, a que Virgínia Woolf chamava "a segunda e terça-feira", é invisível. A proposta
radical da filosofia é tornar aquilo que é familiar, conhecido, em algo por desvelar. A condição de
possibilidade desta tarefa, o transcendental a partir do qual a reflexão acontece, começa a partir deste
recuo. Ver a luz e não as sombras, ver o Belo e não as coisas belas. Suspendemos o que é próximo e
voltamos a olhá-lo com a incerteza e o espanto do que está por descobrir.
A Arquitectura é, por definição, a mais transformadora das artes. Opera no que dominamos, no que temos
cristalizado e afectivamente inscrito, propondo a sua transformação: fazemos casas e todos vivemos em casas,
fazemos escolas e todos estudámos em escolas. A proposta da arquitectura é que nos detenhamos perante o que
existe - a realidade territorial, política, económica, muitas vezes os nossos afectos e desafectos - e que
executemos uma operação crítica, de cisão, para que possamos reconhecer e amplificar os valores que
o contexto apresenta. Aquilo que é ontologicamente mais afirmativo, o visível, é matéria do que está por
vir.
A arquitectura opera na suspensão da consciência, na Resistência ao que experimentamos, na acção crítica sobre
o real e na proposta de algo que ainda não é, que ainda não existe. Propõe abrir uma fenda e revelar a
ausência, uma fissura que anuncia o lugar oculto no interior do visível.
O trabalho do Paulo David denuncia esta prática.
A forma da presente exposição, a desmaterialização em três momentos, é metáfora disto. Na Resistência
progressiva ao gesto mostra-se primeiro o arquivo, depois o Gabinete da Cidade, por fim as paisagens sonoras.
Suster e contemplar o registo, escolher um só projecto, finalizar na abstracção sem forma. Uma
tarefa de olhar, parar, re-parar, re-sistir a impor, a desenhar.
Do mesmo modo cada projecto expõe o esforço de revelar os vestígios do intangível, uma arqueologia de
desvelamento: A plataforma para ver o mar, a matéria que refaz a forma escondida do território, a geometria
que se adossa à orografia, a cor que absorve a luz. A procura de um lugar que se manifesta no gesto
arquitectónico.
Na arquitectura do Paulo David a Resistência é amplificada. Talvez porque a sua prática é
exercida num contexto que lhe é próximo, na ilha da Madeira e, no caso do Gabinete da Cidade, no
Funchal.
O tecido em que a sua investigação opera é comunitário, público e por isso político, de intervenção na
polis. Em simultâneo o arquitecto transporta consigo uma rede de afectos, um património da
memória, uma história pessoal que o relaciona com o lugar. A tarefa da arquitectura começa com a suspensão
diante desta teia colectiva e individual activando o que nela é operativo.
No Gabinete, a cidade próxima é a matéria. As suas transformações, a supressão de lugares, a erosão imposta
pelo tempo, são o contexto da investigação, e a poética, a pulsão que sobre esta matéria
actua, é a da Resistência. O trabalho do Gabinete da Cidade é uma tarefa de detenção voluntária, de atenção e
de contenção. Não impondo a construção, mas a recuperação, a cessação do ruído, a exigência do
silêncio. Revelar nexos ocultos, unir o que o tempo apartou. O redesenho do vazio, a reconversão subtil
do que existe. Um plano de incisão cirúrgica, um processo de cuidar o valor do tempo e a fragilidade
dos vestígios. Uma exigência de apneia. Uma sólida Resistência serena.
É este esforço, esta poética silenciosa que, mais uma vez, a Porta, ilumina e dá a ver. Obrigada por isso.
Sofia Pinto Basto. Novembro 2018
Paulo David nasceu no Funchal. Diplomado pela Faculdade de Arquitectura, UTL, Lisboa.
Pelo percurso do seu atelier, recebe referências que destaca como o texto de José Tolentino Mendonça
“Saber ouvir os lugares” e o de Valter Hugo Mãe “Falar com os vulcões.
Recebeu a sua maior distinção com a Medalha Alvar Aalto atribuída em Helsínquia; a sua obra foi considerada
pelo júri como: “enraizada localmente, mas ao mesmo tempo universal. É um lembrete que a
arquitectura pode ser calma, serena, lírica, poderosa e distante do espectáculo.”; e o Prémio
AICA | da Associação Internacional de Críticos de Arte/Ministério da Cultura “pela vitalidade da sua
obra pública no contexto insular, nacional e internacional ”;
É convidado para as exposições: “Global Ends – Towards the Beginning” na Gallery Ma em Tóquio,
para assinalar o 25º aniversário da galeria; “Inverted Ruins” que integrou a 15ª Bienal de
Arquitectura de Veneza; “Contemplating the Void no Museu Guggenheim em Nova Iorque, 2010, comemorativa
do 50º aniversário do Museu de Frank Lloyd Wright; “Paisagem como Arquitectura” na Garagem Sul do
CCB, Lisboa, em 2015.
Em 2017 integrou o Option Studio, Cornell University College of Architecture, N Y, como professor gensler.
Desde 2016 é professor convidado na Scuola di Architettura, Polo di Mantova, Politecnico di Milano, Italia.
Como complemento da sua actividade, é interventor, criando um Laboratório de Arquitectura_Atelier Funchal,
centrado em temas emergentes da sua cidade. Fundou e coordenou um atelier urbano denominado
“Gabinete da Cidade” como consequência dos grandes incêndios ocorridos no Funchal no verão de
2016.
João Favila Menezes, nasceu em Coimbra em 1966.
Arquitecto pela FAUTL em 1992 é, desde 1998, sócio e Arquitecto Coordenador do Atelier Bugio, em Lisboa.
Desenvolveu vários projectos no âmbito da habitação e turismo, nomeadamente a ampliação do Hotel do Porto
Santo e a (#1) Estalagem da Quinta da Casa Branca no Funchal.
Recebeu o prémio anual de recuperação da Associação Portuguesa de Municípios e Centros Históricos pela
recuperação e reconversão em restaurante do Forte da N.ª Sr.ª da Conceição no Funchal, em 1997, e o prémio
municipal de Arquitectura da cidade do Funchal, em 1998, com o projecto da (#1) Estalagem da Quinta da Casa
Branca.
Em 2004 foi convidado para a exposição "Arquitectura e Design de Portugal 1990|2004" no edifício da Triennale
no Palazzo Dell'Arte em Milão, onde participou, promovida por S. Ex.ª Presidente da República, Dr. Jorge
Sampaio.
João Favila Menezes foi professor convidado da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Évora, entre 2006
a 2012.
Em 2009 foi convidado convidado para a exposição "Over Lappings: Six Portuguese Architecture Studios" pela
Royal Institute of British Architects (RIBA), Londres, e em 2010 para a exposição "Sola Paments" 6 estudis
d'arquitectura portuguesos pelo col-legi D'arquitectes de Catalunya COAC Barcelona.
Em 2011 lança a monografia "Atelier Bugio João Favila Menezes".
Foi convidado em 2012 para representar Portugal na 13th International Architecture Exhibition, Bienal de
Veneza, no âmbito, "LISBON GROUND", mesa 03, acessibilidades à colina do castelo.
Em 2015, retomou a sua actividade académica, leccionando na Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica
de Lisboa até ao momento.
Em 2016, desenvolve diversos projectos na área da reabilitação, tais como a recuperação de uma habitação na
zona histórica do Castelo e a reconversão em unidade hoteleira do Palácio da Rosa, ambos em Lisboa.
João Favila Menezes encontra-se a desenvolver também um conjunto de três percursos assistidos por meios
mecânicos (#2), relativos às acessibilidades entre a parte baixa da cidade e o topo da Colina do Castelo de
São Jorge, que têm por base o Plano de Acessibilidade Suave e Assistida à Colina do Castelo, promovido no
âmbito da candidatura QREN - MOBILIDADE TERRITORIAL. Este plano, actualmente em fase de construção, compreende
o percurso da Graça, que pretende ligar o Miradouro Sophia de Mello Breyner Andersen à Alta Mouraria através
de um funicular; o Percurso da Mouraria, cuja ligação contínua, composta por 3 troços de escadas rolantes,
ligará o Martim Moniz ao Castelo de São Jorge; e o Percurso da Sé, que preconiza a ligação entre o Campo das
Cebolas e o Largo da Sé, através da introdução de um elevador.
Recentemente integrou o Gabinete da Cidade juntamente com os arquitectos Paulo David e Gonçalo Byrne, um novo
projecto promovido pela Câmara Municipal do Funchal cujo objectivo consiste na reabilitação/regeneração da
cidade.
#1 – Co-autoria de Teresa Góis Ferreira, Luís Felipe Rosário e João Matos
#2 – Co-autoria de Pedro Domingos, Pedro Matos Gameiro e João Simões
Nuno Faria (Lisboa, 1971)
Curador. Actualmente é director artístico do CIAJG - Centro Internacional das Artes José de Guimarães.
Entre 1997-2003 e 2003-2009 trabalhou no Instituto de Arte Contemporânea e na Fundação Calouste Gulbenkian,
respectivamente. Viveu e trabalhou no Algarve entre 2007 e 2012 onde, entre outros projectos, fundou (em
Loulé, em 2009) o projecto Mobilehome - Escola de Arte Nómada, Experimental e Independente.
É professor na ESAD - Escola de Artes e Design das Caldas da Rainha.
Ricardo Carvalho é arquitecto pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de
Lisboa (1995) e Doutor em Arquitectura pelo Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa (2012). O seu
trabalho foi amplamente publicado e mostrado em várias exposições internacionais entre as quais a Bienal de
Arquitectura de Veneza, Espaço LIGA na Cidade do México, a Galeria Ozone em Tóquio e o Royal Institute of
British Architects em Londres. Foi nomeado para o Prémio Mies van der Rohe em 2015.
É Professor Associado no Departamento de Arquitectura da Universidade Autónoma de Lisboa e seu actual
director. Foi professor do mestrado A.S.G. na Universidade do Brandemburgo BTU Cottbus, Alemanha e Professor
Visitante na Universidade de Navarra, Espanha, na Universidade Carleton, Canadá e na summer school no
Instituto Universitário de Veneza (IUAV). Em 2016 publicou o livro "A Cidade Social" (Tinta-da-China, Lisboa)
e em 2017 o livro "Is Time a Raw Material? Syria the making of the Future" (Incipit, Veneza).
Sofia Pinto Basto Nasceu em Lisboa em 1970. Estudou arquitectura na Faculdade de Arquitectura de Lisboa e Filosofia na Universidade Nova de Lisboa. É Arquitecta