BALADA DE BARRY MILLER

Alberto Pimenta

lembrando António Aragão

a primeira vida de Barry Miller
terminou abruptamente
com muito fumo cor de sangue
embora não dele nem de mais ninguém

ouviu-se longe a detonação
o fumo também se viu longe
de resto
a polícia vinha já no seu encalço
e depois de o fazer sair do carro
de o estender de bruços no asfalto
e ele sentir uma bota nos rins
e outra nos ombros
foi só passar as algemas clic.

Barry era um empresário de Cincinnati
outrora dita vulgarmente Porcopolis
quando ela e a Chicago
da época da “Santa Joana dos Matadouros”
eram dois altares de culto da nação
carne enlatada com sacrifícios diários
vinda de estábulos e pocilgas
em camiões
que chegavam de várias regiões produtoras

atravessavam as ruas
toneladas de carne viva
a respirar de narinas estonteadas
ainda com pele e pêlo a cobrir ossos
que estavam no seu lugar de nascença
mas disso Barry já mal se lembra
era menino do coro do reverendo Scott
só sabe
de ter ouvido falar.

agora
na antiga cidade dos porcos
havia Academia de Belas-Artes
onde poderá ter andado David Salle
por que não
autor entre outras
da conhecida mulher
gargantuesca
deitada nua de barriga para baixo
pernas escarranchadas
e um talhante desenhado no lombo
armado de faca erecta
mais abaixo um porco
focinho posto sobre a nádega esquerda
lombo na outra
tudo pintado cor de presunto entremeado com fiambre

vê-se em Nova Iorque
na galeria Mary Boone
quer dizer
Carne e Oosso
são as coisas que se exibem nas galerias
e museus deste mundo
mas este é um nu sobredimensionado
com ideias tatuadas no lombo.

reflectindo melhor
Salle
não precisava de lições da Academia
bastavam-lhe as salas de cinema da sua terra
mas não ficava mal imaginá-lo também
na universidade católica do lugar
nihil obstat
só que então provavelmente
a criatura das nádegas
seria um efebo maneirinho.

 

Barry tinha uma reprodução
na sua sumptuosa boutique de Middletown
uma sofisticação insuspeitada
entre fábricas de aço e de papel
uma excentricidade
frequentada pela nata social
que lá ia ter o seu fun de fim de tarde
e beber um aperitivo
entre uma e outra compra

era um cenáriochamado Lucy Fair
reunia objectos de luxo variados
e era o trending topic de toda a cidade
lá se encontravam tanto carteiras e casacos
de Moschino, Azzaro e Valentino
como sapatos Ferragano
ou botas Pollock
luvas de pele de cobra
com escamas envernizadas a cores vivas
borboletas de esmalte
debruadas a ouro e diamantes
fragrâncias para noites raras
camisas estampadas
com pedraria garrida e cintos à Elvis
e até colheres de nácar para caviar puro

sem ninguém conseguir perceber porquê
Barry vendeu a boutique .

há homens que nunca estão satisfeitos
mas isso não era explicação
que poderia ele ter em vista
negócios em segredo
ou iria dedicar-se só a jogar na bolsa

convinha perceber
porque a cara dele não era dum vencedor
e ultimamente muito menos
era preciso reflectir
trocar impressões
contribuía para apanhar o que andava no ar
que de casa não transparecia muito.

parece que a venda foi por ocasião
do acidente
ou suicídio
(nunca se esclareceu bem)
duma convidada das festas da mulher
uma softy
que recebia à grande e à americana
de preferência na torre gótica da residência.

em baixo ficava uma
das três piscinas da casa
circundada de cactos gigantes
e a criatura
que tinha ido apanhar ar para o balcão
estatelou-se em cima dum deles

com a música na sala
levou tempo a ouvirem-lhe os gritos
tiraram-na
com quatro enormes espinhos enterrados
no silicone
além doutros metidos no pescoço braços e pernas

Barry recebeu também nesses dias
uma dúzia de livros de herança
da recém-falecida tia-avó Marieluise
que agora vivia em Boise
capital do Idaho.

 

mais tarde
o psiquiatra de Barry revelou
que ele nessa ocasião tivera um sonho
em que se via descalço
frente aos funcionários da boutique
a apresentar o seu despedimento
em papel escrito à mão
e assinado com o próprio sangue

para o psiquiatra
isto explicava
o aparente inexplicável
inexplicável sobretudo para a família
que não superou o choque
de perder os rendimentos da loja
Lucy a mulher
repetia e repetia Lucy Fair
amaldiçoando o próprio nome
era mesmo o diabo
agora era o diabo
sem aqueles rendimentos
que lhe satisfaziam os voos sumptuários
e todos os caprichos da família
não há dúvida que era mesmo o diabo
e ela que até estivera para se chamar Nancy
como a mãe
foi a madrinha que lhe pôs Lucy
que pena.

diziam agora as relações próximas
que é certo e sabido
há a proverbial crise do êxito
mas quem sabe
estaria a preparar uma surpresa
queria apenas retirar-se
para o Hawai com a família toda
ou então finalmente ir viajar com eles
por esse mundo fora
a bordo de navios de cruzeiro
frequentar os grandes hotéis da moda
viagens de sonho
porque Barry ia muito a Roma
mas só em negócios

ia e vinha no mesmo dia
e até o felicitavam por isso
pela vontade pela disciplina
nunca tinha estafado o tempo
em visitas à cidade
nunca tinha visto por exemplo
e não era longe dos seus negócios
o mercado do Campo de’Fiori
onde em 1600 da nossa santa era
o SS. Ofício queimou Giordano Bruno.

só conhecia mesmo Cincinnati
onde possuía a tão afamada boutique
cujos fabulosos rendimentos
mal davam para empanturrar a família
de tudo o que ela queria
ou até não queria

foi o caso de Rolex o filho mais novo
um rapaz sorumbático
com um vistoso penteado em crista de faisão
e uma tatuagem a dizer I’m my body
um baby muito cool
que à mesa quase nunca falava
um dia abriu a boca
para citar um novo modelo de carro.

Barry pensou ora aqui está
o que finalmente vai fazer feliz o rapaz
e sem perder tempo foi comprá-lo
e trouxe-lho

o rapaz mirou remirou mirou
até parecia que estava a cheirar
Barry ligou o motor carregou no acelerador
para ele ouvir os cavalos a relinchar
mas o rapaz ergueu
desdenhosa e vagarosamente
as sobrancelhas
e foi tudo.

também se diz que além disso
Barry
já andava a ler os livros da herança da tia
uns livros antigos
que a softy achava que só lhe podiam fazer mal
por exemplo dum tal Timothy Burnett
sobre a Ignorância
outro dum tal Godwin
mais uns Nursery Rhymes muito tontos
e ainda mais alguns muito estranhos
a tia era meia alemã
mas por que é que teve aquela ideia.

as versões são diferentes
mas a verdade é que estes factos
aconteceram a seguir uns aos outros
Barry comprou uma pistola
e foi para o bosque exercitar-se.

segundo o psiquiatra
o detonante
foi um filme policial com obscuras
e intermináveis perseguições
mas pode talvez ter sido um outro
em que ele acompanhou a Lucy
que exigiu que Barry
a levasse à estreia

Rolex é claro tal como Gucci
a irmã
não foi não sabe não fala

era um filme passado na Roma antiga
em que comiam
bebiam
e vomitavam
comiam mais e via-se
bebiam mais e vomitavam mais
e de permeio
conjugavam variadas cópulas
via-se e sobretudo ouvia-se
era um soft porno
que as softies da sociedade
não queriam perder
mas não queriam ir sós
para não se pensarem coisas.

os livros
dizia-se nos meios mais chegados
coisas que ele na vida nunca tinha manejado
começaram a provocar-lhe um e outro black-out
só podiam ser aqueles livros

que estava ele por exemplo a fazer
ali naquele arranha-céus
onde não tinha assuntos a tratar
foi interceptado num corredor
por um segurança armado
que nem inglês conseguia falar
mas queria saber como é que ele tinha entrado
quem era e que desejava.

os sonhos diz o psiquiatra
os sonhos como sempre
são a chave
por exemplo sonhar
que pessoas conhecidas
falam uma língua desconhecida
indica uma perturbação antiga
os neurologistas falam de lesões cerebrais
mera especulação
não está nada provado

os parceiros do golf
lembravam-se agora
perante estes acontecimentos
ele nos últimos tempos
parecia desinteressado
para dizer a verdade
já não havia grande vontade
de jogar com ele

também se pôs a hipótese
nos meios mais próximos
de Barry ter sido vítima
de um roubo de personalidade
casos que apresentava na televisão
o popular comunicador Robert B. Sundock
já se tinha visto isso em toda a parte.

um dia Barry vai a uma cidade próxima
pede um empréstimo de 25 mil dólares
não se sabe porquê nem para quê
pois dinheiro não lhe falta
e agora sem a loja como hipoteca
os juros são uma enormidade
ele continua ensimesmado
e mais distante ainda.

os sonhos são os arautos da tragédia
o que se passava dentro dele
explica o psiquiatra
sobretudo aquele sonho do banco
e dos contentores
contentores e contentores
a saírem dos cofres
trazidos por seguranças de luvas
que calçavam e descalçavam as luvas
uma luta perdida a desenrolar-se
dentro daquela cabeça

chegou-se a falar também dum sequestro
deixando um sósia a substituir
isso ultimamente passava-se muito
mas o insólito era não ter chegado
o pedido de resgate do original
e depois
havia ainda aquele cesto afro
que ele tinha trazido de Itália
certamente do aeroporto
um cesto de verga cheio de bugiganga
pedaços de pau figurinhas arames
uma espécie de serpente
carrinhos de linhas
um homenzinho pequenino
com uma mulher às costas
lixo só lixo
mas ele ficava a olhar
devia ser feitiço
às vezes parecia que murmurava
wa tshihuukana
ou coisa parecida
o vendedor devia ter-lhe ensinado

quando ele me deu o carro
já tinha tudo planeado
diz agora Rolex
eu nem gosto daquela cor
mas ele não me deu a tempo a falar.

mais ou menos um mês
depois de ter pedido o empréstimo
Barry
obedece a um súbito comando
compra um capuz e óculos de montanha
mete ao bolso pistola e munições
entra na sucursal dum grande banco
e à menina de melenas loiras e blusa rosa às pintas
que está por trás do balcão
reclama “o dinheiro todo”
e o tom não admite objecções

são oito mil dólares
que atafulha num saco
mete-se no carro alugado
que deixou à porta
mas
no meio do dinheiro vai a papeleta
que os bancos usam nestes casos
a bomba de fumo cor de sangue
que estoira deixando atrás de si o alerta.

no tribunal
não se lembra bem de tudo
ou melhor de nada
só algumas coisas ainda confusas
que já leu num livro dos tais
dos tais livros da herança da tia
e até parece que se sente orgulhoso
daquilo que fez
cochicha algum público
na sala do tribunal

mas
a sentença não é muito pesada
tem atenuantes
de raça de estatuto e psiquiátricas
seis anos que afinal se reduzem a três
por virtude do comportamento exemplar.

na prisão o que lê e relê
parece que são os tais Nursery Rhymes
edição de 1891
com dedicatória à tia Marieluise
Uncle Seppl Xmas 1898

A man of words and not of deeds
Is like a garden full of weeds;
And when the weeds begin to grow,
It’s like a garden full of snow;
And when the snow begins to fall,
It’s like a bird upon the wall;
And when the bird away does fly,
It’s like an eagle in the sky;
And when the sky begins to roar,
It’s like a lion at the door;
And when the door begins to crack,
It’s like a stick across your back;
And when your back begins to smart,
It’s like a penknife in your heart;
And when your heart begins to bleed,
You’re dead, and dead, and dead indeed.

isto é afiançado pelo carcereiro
que o ouviu tantas vezes recitar
que até também decorou

Barry não se cansa de repetir
matei para sempre a minha antiga pessoa
e pela primeira vez sinto-me feliz
muito muito feliz
e põe-se a imaginar deus
como um grande mestre de montagem
um realizador que filma
e corta e cola
e separa de novo
para colar outra vez

o psiquiatra da prisão
não muito obrigado diz ele
pensando que carcereiros
do corpo sim mas do espírito não.

para a família ele morreu
tinha morrido já com a morte da loja
mas Lucy
só agora manda inscrever Lucy Fair
com uma cruz negra
na necrologia do jornal
e confabula-se que se calhar
aquele estranho cesto africano
que ele tinha trazido de Roma
e colocado a decorar a montra
diante do qual parava e murmurava
aquelas coisas
sim murmura-se agora também.

na verdade
o que lhe sucedeu
foi que ele cortou
o cordão que o ligava ao seu tempo
que até parece que vinha desde os Romanos
e estava a apertar cada vez mais

o mundo iluminou-se
e falou
e ele viu e ouviu
viu o que está por trás de tudo
dentro das bolsas Valentino
e dentro do cesto afro
tudo sem excepção

os sonhos claro
mas como vieram eles
e por onde vieram
e o suicídio de Miss White
aquele sangue
que até fez secar o cacto
não seria um sonho também
ou os filmes
com os restos de carne empilhada
ou os livros
os tais da herança
ou o filho
um filho ou
um roubo de personalidade
o homem no ecrã se calhar tinha razão
quem sabe

Gucci diz que na prisão
ele se tornou gay
porque foi lá uma vez
e ele não quis vê-la
mas ninguém dá importância ao que Gucci diz.

Barry foi a caminho do sul começou de novo
começou a ver um mundo maior e diferente
o mundo à sua volta

mas antes
antes de tudo isso
passado em Cincinnati
durante perto de quatro anos
três deles na prisão
durante esses anos velozes
e longos e tristes
Barry recordava-se da infância
era estranho sempre misturada
com os vómitos dos Romanos

o reverendo Scott
antes de os conduzir pelos ombros
ou pela cinta
em direcção à sacristia
fazia aqueles sermões inflamados
ele lembrava-se de que citava muito
por exemplo Mateus 25 ou
exactamente não sabia
mas Cristo dizia que
aos que têm será dado em abundância
e aos outros até o pouco lhes será tirado
e no carro a caminho de casa
ele via todos os dias a fábrica de papel
a encher-se e ao mesmo tempo a esvaziar-se
na hora do turno
como o estômago de César

as propriedades da humanidade
que são todas de César excepto
as que são de Deus
comidas e vomitadas por turnos
poderá ser

e lê-se num dos livros que recebeu
elas têm de ser derretidas periodicamente
como gelo acumulado
periodicamente inundam
e arrasam tudo
mas isso é como podar uma planta
para ela depois dar mais frutos
diz quem
será
a voz de Deus
ou a voz de César
pensa ele

a quem já tiver
será dado e terá em abundância
mas ao que não tiver
até o pouco que tem
lhe será tirado

ele Barry pensa
se já terá vomitado tudo
o que tinha a vomitar

continua a pensar
e apaga a luz
naquele quarto de passagem
onde essa noite está.