Ecce... Credo
Dois conceitos da teoria da arte

Paulo Pires do Vale

para Seth Siegelaub

 

FAIS-TOI CROIRE. Dante en exil et se promenant dans les rues de Vérone,
on se chuchote à l´oreille qu´il va en enfer quand il veut et qu´il en raporte nouvelles.
R. Bresson

A crença é o movimento nascido e criador de um vazio.
É um começo. Um ponto de partida.
M. Certeau

 

 

 

Introdução

 

1.
Neste ensaio investigarei a pertinência de dois conceitos, habitualmente asssociados ao universo religioso, na teoria da arte: “Eis” e “Creio”.
Não me interessa, aqui, pensar a relação entre a arte contemporânea e a religião, do ponto de vista iconográfico, sacro ou espiritual, mas perceber o que poderá ser uma fé artística.
Esta investigação começou com a constatação da importância da crença, ou convicção, na recepção da arte contemporânea – a célebre pergunta, “isto é uma obra de arte?”, conduziu a outras: será preciso crer para ver? Acreditar que o que se vê é um objecto artístico será determinante para a experiência estética? Será a convicção um conceito não tematizado da filosofia da arte? É a crença uma atitude presente na relação entre o contemplador-participante e o objecto-gesto artístico? E como se produz essa crença? Fará sentido usar este termo demasiado preso ao contexto religioso numa reflexão estética?
Este estudo logo se alargou aos modos de apresentação e produção de crença – à forma de apresentação de algo como obra e como essa apresentação é transformadora do objecto, melhor será dizer: transubstanciadora.

 

2.
Como reconhecemos uma caminhada, uma queda para dentro de um rio, uma refeição, um pedaço de matéria moldado pelo fechar de uma mão, cartões comuns ou detritos, um copo com uma faca, restos de carpetes ou materiais industriais de construção, uma frase escrita numa parede, uma conversa, uma sala vazia ou outra cheia de lixo, um monte de rebuçados num canto de uma sala, uma lâmpada de luz fluorescente, um corte na pele, uma instrução para ser realizada por qualquer pessoa, um livro, um certificado... como obras de arte?
Gestos comuns ou objectos em nada diferentes de outros, mas estes são percepcionados num outro sistema, num registo ou programa que os distingue: o artístico. Uma resposta rápida – e comum nas últimas décadas – foi a teoria institucionalista: essa recepção depende da instituição, do lugar, do sistema e meio em que a recebemos (a galeria, o museu, a colecção, a crítica, a academia, a curadoria, o mercado, as revistas de arte...). Neste ensaio interessa-me perceber o que se passa em nós ao receber a obra. Ou melhor, porque é que a institução, o contexto, a ritualização ou liturgia, mudam a recepção e que atitude é exigida nessa recepção.

 

3.
Em 1969, Seth Siegelaub organizou uma exposição (Untitled, Campus Wide) no campus universitário da Simon Fraser University, Burnaby, em que obras de Douglas Huebler, Jan Dibetts, Kosuth, Sol Le Witt, Weiner, Robert Barry, entre outros artistas, foram espalhadas pelo campus, mas sem indicação. Nada havia que as identificasse (nenhuma tabela com o nome do autor ou o título da obra) – e só no final da exposição, o catálogo foi lançado, com toda a informação.
Como identificar uma obra com obra? Durante séculos parece ter sido simples (seria?): uma escultura em pedra ou madeira ou bronze, uma tela ou tábua... mas seria um traço numa parede uma obra? ou um papel abandonado em cima de uma mesa? Reconhecer uma obra depende do contexto histórico – e da teoria. Aproximamo-nos da necessidade de um “Eis” que a identifique, a aponte, a invista de significado.
Onde está a diferenciação entre dois objectos em tudo idênticos, sem diferenças perceptuais entre eles, em que um dos objectos é artísticos e o outro não? O desvio acontece no objecto-gesto que o transforma em obra, ou o desvio dá-se no receptor? Nesse sentido, em que medida o receptor é criador? O que exigem as obras de quem as contempla? Ou o que exige aquele que a contempla? E porque a define como obra, se nada há que a distinga de outros objectos comuns?

 

4.
No início radical desta história do “n´importe quoi” na arte – como lhe chamou Thierry de Duve - está Duchamp. E uma dúvida: era ele idólatra ou iconoclasta? Passando por ele, em torno dele – e de um gesto, o seu afastamento precoce do mundo da arte – desenvolverei uma reflexão pós-duchampiana: uma estética da recepção, que tem como contrapartida um reflexão poiética, do fazer. Aiesthesis e poiesis .
Por um lado, é na apresentação poiética da obra que temos que começar: apresentação acompanhada de um Ecce! Eis: isto é arte. Vocábulo de autoridade criadora? Por outro lado, sob o ponto de vista da recepção estética, acreditar na obra implicará uma “suspensão da descrença” (Coleridge), uma “fé poética”.
Vamos, então, contrariar o dito Heideggeriano: “Der glaube hat im Denken keinen platz” – “A fé não tem nenhum lugar no pensamento” (Heidegger, “O dito Anaximandro” in Caminhos da floresta, p.439) Perguntarei mesmo: é a arte uma questão de fé?
Começarei pela apresentação da obra: “Eis”! A crença, ou a descrença, é exigida diante de algo que é apresentado como credível, ou não – digno de crédito ou indigno. É essa apresentação que interrogarei primeiro: do ponto de vista da poiética, do fazer: que o espectador creia. “Fazer-crer” (Bresson).

 

5.
Escreveu São Paulo aos Coríntios: “ninguém pode dizer que jesus é o senhor a não ser através do espírito santo” (1 cor 12)
E no caso da arte? Que espirito nos permite reconhecer um objecto como obra de arte? O que o distingue e distancia dos outros?

 

I.
Ecce!
Duchamp e o mecanismo de apresentação-transubstanciação

 

J’aime le mot “croire”. En général, quand on dit “je sais”, on ne sait pas, on croit. Je crois que l’art est la seule forme d’activité par laquelle l’homme en tant que tel se manifeste comme véritable individu. Par elle seule il peut dépasser le stade animal parce que l’art est un débouché sur des régions où ne dominent ni le temps ni l’espace. Vivre, c’est croire; c’est du moins ce que je crois.
M. Duchamp

Cabanne – Tem-se a impressão de que cada vez que é levado a tomar uma posição, você retira-lhe a importancia pela ironia ou pelo sarcasmo.
Duchamp – Sempre. Porque não acredito nela.
Cabanne – Mas em que é que acredita?
Duchamp – Em nada! A palavra “crença” é um erro também. É como a palavra “julgamento” são dados terríveis sobre os quais o mundo está baseado.”

 

 

1.
Eis!
A classificação gramatical desta palavra é difícil. Para alguns é um advérbio de demonstração ou designação (cfr Nomenclatura Gramatical Portuguesa de 1967 e J. M. Nunes de Figueiredo e A. Gomes Ferreira, Compêndio de Gramática Portuguesa, Porto Editora, pág. 301), para outros não se enquadra na categoria de adverbio (Nomenclatura Gramatical Brasileira de 1959 e Celso Cunha e Lindley Cintra Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Edições Sá da Costa, 1984). Para estes últimos, “eis” é uma palavra denotativa de designação.
De qualquer modo, a palavra Eis usa-se para a apresentação de algo ou alguém; e a sua utilização implica uma relação próxima com o enunciador. Indica algo ou alguém presente, perto ou prestes a tornar-se presente. Significa: “Aqui está”, “Tomai”,“Vede”. Esta palavra é um demonstrativo, um mostrador: um dispositivo de apresentação do que se torna presente, uma forma de presentificação. Aponta para algo que se presentifica ou presentificará em breve.

2.
A relação com a epifania, a revelação, a aparição, torna a palavra Eis num recurso comum do discurso bíblico, profético e místico. (cfr Ginzburg, À distance.)
Um modo de apresentação ou presentificação – um modo de emolduramento (framming) – que altera aquilo que se enquadra de modo a transformar, por esse efeito, aquilo que é enquadrado.
Este efeito de enquadramento-emolduramento é um dos traços característicos do momento da arte inaugurado por Duchamp. Mas quem faz esse emolduramento: o artista, a instituição ou o espectador?
Em Duchamp a obra é criada pelo poder do artista ou do espectador? Em 1913, pergunta-se: “Peut-on faire des oeuvres qui ne soient pas «d´art»?” (Duchamp du signe, p.105). Se se é artista, aquilo que se faz é arte. Então, não é a obra que faz o artista, é o artista que faz a obra? Este vínculo reconduzir-nos-á à interrogação sobre quem cria o artista – e como acreditamos que alguém é artista.
Por outro lado, os textos de Duchamp sublinham a questão do contexto ou do uso:se usarmos um Rembrandt como tábua de passar a ferro, isso destitui a obra de Rembrandt de ser uma obra? Corresponderá esse gesto, por inversão, ao oposto - transformar uma tábua de passar a ferro em obra? Se se pode “promover” um “objecto usual” à “dignidade de objecto de arte pela simples escolha do artista” (Dictionnaire abrége du surréalisme), também se poderá despromover um Rembrandt?
Dignificar ou desdignificar são, então, acções externas ao objecto – uma forma de atribuição que não dependeria do próprio. Uma forma de designação.

3.
Uma outra relação define a obra de arte segundo Duchamp: a obra e o espectador. Duchamp refere mesmo, num texto escrito para a ARTnews em 1957, a existência de uma “transubstanciação”, um “fenómeno de transmutação”: “O processo criativo toma um outro aspecto quando o espectador se encontra na presença do fenómeno de transmutação; com a mudança da matéria inerte em obra de arte, uma verdadeira transubstanciação tem lugar e o papel importante do espectador é o de determinar o peso da obra sobre a balança estética.” Duchamp não atribui ao espectador o papel de sacerdote oficiante, mas o de reconhecimento e julgamento do gesto sacerdotal – sem o qual não se dá a transubstanciação? A utilização da palavra “transubstanciação” tem óbvias implicações teológicas, tal como “transmutação” tem ecos alquímicos. E acrescenta: “Tudo somado, o artista não está só a cumprir o acto de criação porque o espectador estabelece o contacto da obra com o mundo exterior, decifrando e interpretando as suas qualificações profundas, e assim acrescenta a sua contribuição ao processo criativo. Essa contribuição é ainda mais evidente quando a posteridade pronuncia o seu veredicto definitivo e reabilita artistas esquecidos” (“O processo criativo” in Duchamp du signe, p.189).

 

4.
Crer no poder da palavra e do gesto artístico. Uma relação entre a arte e a sacramentalidade – a liturgia – no processo de transubstanciação artística.
Nos sacramentos, o sinal sacramental significa e realiza o que afirma. O sacramentos é a “palavra visível” (Santo Agostinho) - “representa de maneira plástica as promessas de Deus e o faz de maneira visível”. No caso da Eucaristica, os gestos e as palavras do sacerdote sobre o pão e o vinho significam e realizam o que dizem: a transubstanciação, a alteração ontológica, em corpo e sangue. Altera-se a substância, mas não as espécies (que permanecem intactas). O mesmo parece acontecer no ready-made.
Para que o sacramento seja válido, é necessário assegurar a existência de um conjunto de condições: o ministro ser um sacerdote validamente ordenado, que actua in persona christi. O ministro tem de ser ordenado validamente: um outro, a insituição eclesial, institui o sacerdote. Do mesmo modo, a instituição artística institui o artista: os pares, os críticos, os media, os directores de museus, os galeristas, os curadores, os coleccionadores... (E aqui surge a análise sociológica de Bourdieu: quem cria (ordena) o artista? A própria obra, a intituição, o mercado, a escola...? É preciso analisar os mecanismo de produção da crença na obra e no seu valor – para não cair na credulidade.)
Um outro aspecto teológico e eclesial liga a o mistério eucarístico ao processo artístico: o sacerdote está ali em nome da comunidade, não em nome pessoal – é a comunidade – a fé da comunidade, o espírito que nela habita – que permite a transubstanciação. Mesmo celebrando sozinho, o sacerdote celebra em nome de todos. Um altar do mundo. À consagração corresponde a comunhão eucarística: a Eucaristia não é só a consagração, mas a comunhão partilhada – a criação da comunidade.
O mesmo com a obra de arte? Há dois polos na criação: artista e espectador.
Segundo Duchamp, a transubstanciação do objecto em arte implica não apenas o artistas, mas também o espectador: o artista não está sozinho na realização da sua obra – o acto, o processo criativo, exige o espectador, a comunidade – que estabelece a ponte com o mundo. (O que percebemos desenvolvido, depois, em Beuys: a pertença a uma comunidade – escultura social).

 

5.
Dizer “isto é arte”, não é uma afirmação ou constatação gnoseológica – é uma acto de significação, uma “frase performativa” (Austin) – uma acto do discurso, criado por ele. Realiza uma acção criativa (Anscombe) - à imagem da tradição mítica da criação do mundo, nos Génesis, pela palavra. Em vez de ser uma sabedoria teórica (relacionada com a Verdade), Duchamp propõe uma sabedoria prática (relacionada com a Acção).
Esta afirmação, “isto é arte”, quer por parte do autor quer por parte do espectador, não transporta uma intenção de algo a realizar, mas já em acção. Mas não precisa o espectador de confiar no enunciador da frase, no artista? Ou bastará confiar no seu poder de convicção? Quem diz “isto é arte”: o artista ou o espectador?
De qualque modo, o Eis é determinante: como nos sacramentos, a passagem do mundo comum ao mundo santo exige uma oração consacratória.

 

6.
Se tudo que o artista faz é arte, não implica que seja “boa arte” – haverá critérios possíveis? O discernimento do público? No caso dos sacramento, o sacerdote ser bom ou mau não influencia o sacramento – só se existir uma falha processual, ou não ser sacerdote. A validade do sacramento não depende do sacerdote. Também o mesmo se passa, segundo Duchamp, com os artistas?

 

7.
São várias as ocasiões em que, no discurso, Duchamp faz a ponte entre arte e a religião: usa expressões como “a fé cubista”, ao referir-se a Archipenko (p.194); ou “o meu culto por Cezanne” (p.219). Ou a referência ao “culto do eu” - numa forma de se opôr ao materialismo num quadro de valores espirituais (p.238). Ou a referência ao artista como “reservatório de valores para-espirituais” (p.237): “contra o materialismo, e num mundo onde a religião perdeu terreno, o artista é o reservatório de valores para-espirituais” (p.237). Ou mesmo uma “missão para-religiosa”: “Eu creio que hoje, mais do que nunca, o artista tem essa missão para-religiosa a cumprir e manter viva a chama de uma visão interior de que a obra de arte parece ser a tradição mais fiel para o profano” (p.238).
E a mesma missão parece ecoar, hoje, em artistas como Rui Chafes: “A arte foi sempre religiosa. No fundo, não era necessário conhecer a verdade, era preciso amar e acreditar: a fé era o conhecimento. Sem esse espaço de silêncio e sem essa sacralização das palavras e dos gestos torna-se mais difícil acontecer a sublime mentira da arte. E assim será sempre, desde o principio do mundo até ao fim do mundo” (Chafes, Entre o céu e a terra, p.48-49)

 

8.
Tal como a religião para Marx, Duchamp também diz da arte que “é uma droga que cria habituação” – e por isso uma “antinomia profunda entre a arte e os ready-made” (p.191) – não são os ready-made obras de arte como as outras que criam habituação? Quer, Duchamp, fugir do sistema da arte depois do o ter exposto no seu príncipio fundante? Troca-a pelo xadrez – “jogo, muito plástico” (p.183).
Pergunto-me se o gesto de Duchamp não é uma crítica à credulidade artística - intoduzindo uma forma de ateísmo, para a purificar. Será Duchamp o momento do ateísmo – pôr em causa o sistema da arte? E por isso se calou, afastou-se, quando percebeu que, ao contrário do que desejava, com a maldição de midas, tudo o que tocasse... Porque a maldição, para ele, foi recebida como benção, para outros.

9.
Em 1914, Duchamp comprou no Bazar do Hôtel-de-Ville um porte-bouteilles e acrescenta-lhe uma inscrição – que esqueceu. Quando se mudou para os Estados-Unidos, em 1915, a irmã e a cunhada fizeram as arrumações, levaram tudo o que acharam importante e atiraram o seca-garrafas para o lixo (Cabanne, p.70). Não o reconheceram como obra? Faltou-lhe a palavra-gesto-contexto? Se estivesse em cima de um plinto e com uma tabela, dentro de um museu ou galeria, teria acontecido o mesmo?
Faltava-lhe o “Eis” – o dispositivo de apresentação.

 

 

II.
Credo!
A convicção

1.
Georg Simmel, no ensaio “Le christianismo et l´art” (in La tragédie de la culture, pp.147-160) relaciona o comportamento religioso com o comportamento artístico: “projectam o seu objecto para além de toda a realidade imediata, para o aproximar perto de nós, como não poderia nunca nenhuma realidade imediata”. (p.147). Essa aproximação do afastado, e de afastamento do próximo, a “relação dupla com a realidade”, entre “distância” e “união mística”, é retomada pela arte (p.148). A obra de arte: “sendo mais para si que todas as outras coisas, a obra de arte é mais para nós que todas as outras coisas” (p.148)
O comportamento, ou a atitude, comum à arte e à religião será a crença?
A perda desse comportamento ou atitude não será aquilo que Nietzsche descobriu na Poética aristotélica, ao criticar o momento em que a Tragédia deixa de ser um culto comunitário e passa a ser um espectáculo? Nesse momento, torna-se uma forma cultural e perde a força vital.

 

2.
Cézanne afirmava que o acto de pintar implicava acreditar que alguma coisa viesse a acontecer na tela: “Cada vez que me atiro a uma tela tenho a certeza, creio que ela vai lá estar... mas logo a seguir lembro-me das outras vezes em que falhei sempre.” (p.129). A frustração anterior não serve, no entanto, como prova da impossibilidade. A convicção da possibilidade é determinante. Afinal, um santo é apenas um pecador que não desiste.
Sobre a fé nas imagens, um outro pintor, Philip Guston, afirmava em 1958: “não vejo porque é que a perda de fé na imagem conhecida e símbolo no nosso tempo deva ser celebrada como uma libertação. É uma perda que nós sofremos, e este pathos motiva a pintura e poesia moderna no seu coração”. Daqui resulta que a pintura moderna e contemporânea seria consequência de uma desconfiança, uma suspeita ou descrença na imagem? Mas não significaria ainda uma permanência da confiança ou convicção do poder da arte?

3.
Se antes apontámos a questão da apresentação, do Eis, agora estamos no outro polo, na sua recepção, e como escreveu Duchamp: “(...) há o polo daquele que faz uma obra e o polo daquele que a olha. Dou tanta importância àquele que a olha como àquele que a faz”. (Duchamp in Cabanne, p.110). Na verdade, podemos mesmo afirmar que aquele que a olha também a faz. Nesse sentido, a crença na obra é forma de produzi-la, não apenas de aceitá-la como uma dado gnoseológico. Não é receber uma verdade, mas produzi-la. O carácter activo desta atitude seria melhor formulado pela noção de fé, do que de crença? A palavra crença, mais do que a atitude subjectiva activa, é aplicada tantas vezes aos dados objectivos em que se acredita – as crenças. Será preferível usar o verbo: crer.
(Nesse sentido, como afirmou Hermaan Weyl, “nós não possuímos a verdade, não basta abrir muito os olhos, a verdade exige ser conquistada pelo agir” (F. Gil, A Convicção, p.15). A verdade é uma construção – ou melhor, a verdade é relacional.)
A atitude de crença, nesta teoria da arte, não tem apenas um sentido gnoseológico - poderia a obra de arte ser reduzida ao gnoseológico?
A relação com a verdade, que por detrás de toda a crença se poderá encontrar, não é a do ponto de vista de Belting em A verdadeira imagem. Não é essa verdade (“o que é uma imagem verdadeira?”) – que da fotografia se poderia esperar, como na verdadeira imagem de Cristo, qual verónica ou santo sudário. Não é o conhecimento de uma verdade retratada na imagem que aqui me interessa: pretendo dirigir-me a algo anterior a essa relação gnoseológica - à relação com a obra, anterior ao seu conteúdo. Acreditar na obra não é o mesmo que acreditar na imagem, neste sentido em que escreve Belting (Hans Belting, A verdadeira imagem, Porto: Dafne, 2011, p.9)
– neste ensaio interessa-me um momento anterior : o da “suspensão da descrença”, nas palavras de Coleridge.

 

4.
Em 1817, Samuel Taylor Coleridge escreveu na sua Biographia Literaria que para um um escritor duas coisas são necessárias a uma narrativa e às suas personagens: infundir nelas "human interest and a semblance of truth”. Se assim acontecesse, o leitor suspenderá o julgamento de descrença naquilo que está a ler. A suspensão da descrença é o que permite “entrar” na obra – ou “abrir-se” a ela. A suspensão da descrença mplica um momento de crença – mesmo que seguido do julgamento ou recordação de que não é “verdadeiro”, que tal coisa nunca aconteceu, ou que é apenas um livro ou um filme... A imersão, a força mais profunda que a obra pode exercer em nós, só poderá acontecer se deixarmos cair a barreira que em nós afirma que aquilo que nos é apresentado é apenas um produto, uma mentira, uma tela a duas dimensões, tinta ou mármore, objectos comuns, projecção...
Parte substancial das obras de arte moderna e contemporânea recusaram o desejo de ilusão – ou de ilusionismo. Não queriam iludir ou dar a ver mais do que aquilo que está à frente dos olhos, revelar o medium... Mas implicará isso um deixar de acreditar, ou será ainda uma forma diferente de crença? Uma decisão – mesmo que inconsciente?
Entre a consciência da distanciação irónica, da ficção que se sabe ficção, e a necessidade da “suspensão da descrença” - de um acreditar para poder ver: crer para ver?

 

5.
Tertium quid: crença e verdade. Paul Veyne, em Les Grecs ont´ils cru à lers mythes? Essai sur l´imagination constituante (Paris: Seuil, 1983), afirma a existência de uma “imaginação constituinte” (p.108). Mas, segundo este autor, “em vez de falarmos de crença, devíamos falar de verdades. E que as próprias verdades eram imaginações” (p.9 ). A verdade é, assim, construção histórica: “as verdades são imaginações e a imaginação está no poder desde sempre”. (p.10) É a imaginação que constitui o nosso mundo – é a nossa faculdade poética, criativa, produtiva: “Os homens não encontram a verdade. Fazem-na, como fazem a sua história, e elas os recompensam largamente” (p.10). E todas as verdades são “filhas da imaginação” (p.34).
As “modalidades de crença reenviam às modalidades de posse da verdade. Existe uma pluralidade de programas de verdade através dos séculos, que comportam diferentes distribuições do saber, e são estes programas que explicam os graus subjectivos de intensidade das crenças, a má-fé, as contradições num mesmo indivíduo”. (p.39) Mas é preciso confiança na testemunha, no emissor.
Assim, “o mito era um tertium quid, nem verdadeiro nem falso” (p.40). Como escreve Veyne: “Hesíodo sabe que acreditaremos na sua palavra e ele trata-se tal como será tratado: é o primeiro a acreditar em tudo o que se passa pela sua cabeça” (p.41). Afinal, a realidade “é filha da imaginação constituinte da nossa tribo”. (p. 129). “Deus não criava o que era previamente verdadeiro: era verdadeiro o que ele criava como tal, e o verdadeiro e o falso só existiam depois de tê-los criado. Basta dar, à imaginação constituinte dos homens, este poder divino de constituir, isto é, de criar sem modelo prévio” (p.145)
Será assim, também, com Duchamp?

 

6.
Fernando Gil, em A convicção, desenvolve uma análise da crença numa dimensão epistémica - a relação do sujeito com o conhecimento. “A crença e a intuição são a parte maldita da inteligibilidade que a epistemologia tradicional recusa. Na realidade, a racionalidade prende-se com a crença, e a explicação deve culminar na intuição para produzir a convicção” (p.14). Analisa, então, os “conceitos epistémicos constitutivos da inteligibilidade: crença, intuição, convicção” (p.17). Aqui percebemos uma distinção entre crença e convicção. Mas a distinção não pressupõe uma separação. A crença é diferente da convicção, mas são inseparáveis. Primeiro porque a crença subjaz às práticas cognitivas (p.16). E a convicção é um misto inextrincável de crença-prática-intuição, segundo Wittgenstein (p.16). Fichte chamou a convicção de “afecto intelectual” (p.17). Uma definição que nos interessa para pensar a relação com a obra de arte – “afecto intelectual”. E este carácter “afectivo” ajuda a compreender o modo de adesão. A convicção é “o modo de uma adesão ao conhecimento”. Uma diferença que Gil identifica entre crença e convicção: “Se a crença desliza para a ideologia, a convicção prende-se com a verdade” p.18
Uma outra dimensão epistémica da crença é a relação com o jogo de imaginação (p.17). Uma forma de acréscimo - “na sua acepção mais elementar, a crença acrescenta, sem motivos, algo – um suplemento de realidade – ao dado imediato, quer se trate de percepção ou do pensamento” (p.16). Por isto, Gil faz uma incursão na Teoria na soberania e no conceito de alucinação: “A operação do pensamento soberano consiste nessa autodesignação sem fundo que não se reconhece como tal e se alucina segundo o modo de funcionamento .” Por alucinação Gil propõe uma forma de salto: “Salta-se – é isso a alucinação – de um certo dado sensível e linguístico, conhecido por experiência directa, para uma verdade índice de si mesma que dispensa prova” (p.18). Fernando Gil afirma mesmo uma “imaginação crente” (p.47).
A crença implica uma adesão e um acréscimo à experiência. Isso é experimentado no acreditar em si, relativo à identidade e à confiança nas suas possibilidades e permanência: “a adesão a si alimenta-se da energia da pulsão, ela exige que se creia na permanência do eu. Essa crença é condição da confiança na acção, necessária para que a acção exista. A confiança não releva da psicologia, diz respeito á ontologia da acção. É também um pressuposta da inteligibilidade uma vez que as construções do registo do acto” (p.41)
O conhecimento assenta na crença: crença no eu, no mundo exterior, em deus... Assim, é necessário, por exemplo, a “crença primordial no mundo, que para Leibniz, antes de Husserl, é o solo de todo o conhecimento”(p.46). Uma espécie de fé nos sentidos. É por isso que “a cartografia da mente coloca a crença a montante das outras atitudes” (p.53) E “cada crença aspira a tornar-se saber já que a sua função é informar e dirigir o comportamento” (p.56).
Uma diferença estabelece-se entre “crer que...” e “crer em...”: já não é uma atitude epistémica, mas uma adesão a uma pessoa – ou a um artista. Será esse um desvio determinante nos últimos anos na arte contemporânea? E não pode deslizar para uma atitude de credulidade, em vez de convicção?

7.
A convicção não é uma simples constatação: há qualquer coisa de incomunicável na essência da verdade – ou seja, é sempre relativa. Relacional. Também por isso, o desejo de convencer outros da nossa convicção (uma experiência subjectiva que queremos universal - (acreditar num sensus comunnis da estética kantiana?)

 

8.
Não é a visão que permite a crença, é a crença que permite ver? – como nos demonstra o relato evangélico do túmulo vazio: o discípulo olhou para dentro do sepulcro, não viu nada, e acreditou. Não é o que se vê que faz acreditar, mas o que não se vê entre o é visto – e o que aí se vê, através do não-visto, pela crença. Oculata fides, uma fé que vê – como afirma Tomás de Aquino, a propósito da visão corpórea do corpo de Cristo que os Apóstolos têm depois da sua morte e ressurreição.
É a hierofania que faz crer, ou o crer que cria a hierofania?

9.
Do ponto de vista teológico, no entanto, o crer é uma resposta a um apelo. O crer não é primeiro. Algo suscita o crer. Mas só se se crer, se pode ver.
Do ponto de vista de uma teoria da arte, o que é primeiro: a força da obra? Mas porque não veêm todos? Nem todos creêm nela? Não estão preparados?
Escreveu Santo Agostinho no Sermão 88, sobre o cego de jericó: “Porque não via Filipe o Pai? Porque não estava são o olho por onde podia ser visto. Filipe via a humanidade do Senhor que se mostrava aos olhos do corpo, e viam-no quer os fieis quer os judeus que o crucificaram. Mas Jesus podia ser visto de outra maneira: daí ele pedir outros olhos. (...) em vez de procurar primeiro ver para crer, deve crer primeiro para sarar o olho com que veja.” P.263
Por isso, propunha Agostinho: “para que possas ver o que hoje não podes, crê o que ainda não vês.” Este “olho interior”, o da fé, é o que permite ver o que, de outro modo, ficaria incógnito.

 

10.
“A fé não começa na área do religioso, é um dinamismo da vida que permite o progresso” - escreveu M. G. Ballester. Desse modo, afirma-se que a crença é manifestação humana da “confiança original na vida”: aliás, como percebeu Wittgenstein, a nossa relação primeira com os outros e o mundo é a da confiança. É esse confiar – acreditar – que nos permite abrir aos outros, comunicar, conviver, acolher o estranho e o inesperado: acreditar é um modo de hospitalidade.
O solo da crença – Glaubensboden (no último Husserl – Krisis) – é a experiência ante-predicativa que antecede o julgamento.
Será a linguagem o solo da crença? Não é também por isso que Nietzche afirma: “Temo que nós não nos desembaraçaremos jamais de Deus, porque acreditamos ainda na gramática” (Nietzsche, Crepusculo dos ídolos). Ao que Foucault acresenta: “Deus é possivelmente menos um para além do saber do que um certo aquém das nossas frases” (Foucault, Les mots et les choses, p.311)

 

11.
Fé reflexiva. A crença não é a credulidade ingénua, que aceita tudo – ou que não se pensa, não reflecte a sua fé - mesmo o Eclesiastico (19, 4) critica o crédulo.
Agostinho, no Sermão 43, afirmou essa relação entre Crer para entender, e entender para crer, num círculo interminável. O homem é um ser “capaz de razão – rationis capax”. A fé precede o conhecimento, mas cresce pelo entendimento. É preciso entender para crer, e crer para entender. (“Ergo intellige, ut credas; crede, ut intelligas”).
O credível exige motivos, sinais. Não é a vitória da irracionalidade, exige o pensamento. A crença implica uma adesão, mas também suspeita. É uma forma de compromisso, de assentimento. Kant distinguiu uma “Fé reflexiva” - Reflektierende (Kant, Primeiro Parergon, Religião nos limites da simples Razão), que não dependeria da revelação histórica, de uma “Fé dogmática”. Na verdade, em vários momentos do seu pensamento – como na definição de um conceito sem conceito da Beleza - há qualquer coisa de salto: de reconhecer o limite do pensamento racional e o dar lugar à fé.

 

12.
Em relação à obra de arte: se tenho um objecto, em tudo igual a outro objecto, o que o torna “arte” estará incógnito? Tenho que acreditar no incógnito - inframince?
Como bem percebeu Michel de Certeau, “a crença é então o movimento nascido e criador de um vazio. É um começo. Um ponto de partida”. (Certeau, Hist et psych..., p.141). Quer na relação com o divino, quer na relação com a obra, um vazio é o produtor e o produto da crença. Uma espécie de círculo hermenêutico. Do vazio para o vazio. É a ausência, o vazio, que possibilita acreditar, ou é acreditar que cria a ausência? O túmulo vazio: está vazio, então acredito! Ou: Acredito, então está vazio! – qual dos movimentos é o inicial? Ou no relato do encontro dos dois ciscípulos com um estranho na estrada e ceia em Emaús: quando acreditam que aquele homem era Cristo, ele desapareceu... Quando “vêem”, deixam de ver.
No contexto de uma teoria da arte corresponde a perguntar: como reconheço uma obra como obra? Acreditar nela é anterior ou posterior a ela? O vazio que a institui é produto e produtor da crença?
Escreve Certeau, pensando em Mallarmé: “O poema é o “tracé” deste crer: é preciso que haja nada para que creíamos, é preciso que o “nada subsista” da coisa para que marchemos, ou que escrevamos. Reciprocamente, o poema faz acreditar porque não tem nada.” (p.141).
A teologia, a filosofia, a ciência procuram preencher o vazio. As instituições procuram escondê-lo: “a vida social exige uma crença, bem diferente, que se articula sobre os supostos saberes garantidos pelas instituições. Repousa sobre essas sociedades de segurança que protegem contra o outro, contra a loucura do “nada”” (p.146). As instituições querem a segurança das crenças certas. Fogem da instabilidade.
Pelo contrário, a arte deixa o vazio à mostra. Como uma ferida. Ponto de partida, não uma conclusão.

 

13.
A relação com a obra de arte, se não quiser ser de simples credulidade – de que por estar num museu ou galeria, é uma obra – poderá seguir por uma via, a que Derrida em Foi et Savoir chamou Messiânica: a de se expôr à surpresa absoluta. No sentido em que Blanchot, de forma mística, propunha uma “espera sem espera”. Uma “fé sem dogma” e “messianidade despojada de tudo” (p.31).
Para Derrida, um “apelo à fé” é aquilo que “habita todo o acto da linguagem e todo o dirigir-se a outro” (p.31). Mas ainda antes, como um solo original, “o fundamento da lei – a lei da lei, a instituição da instituição, a origem da constituição – é um acontecimento performativo que não pode pertencer ao conjunto que ele funda, inaugura ou justifica” (p.32). Nesse sentido, crer é um acto performativo fundador. É aí onde podemos alicerçar o “fundamento místico da autoridade” – segundo Pascal e Montaigne . E conclui Derrida: “O místico, assim entendido, alia a crença ou crédito, o fiduciário ou o fiável, o segredo (o que significa aqui “místico”) ao fundamento, ao saber, diremos mais tarde também à ciência como “fazer”, como teoria, prática e prática teórica, quer dizer, a um tempo, à performatividade e à performance tecnocientífica ou tele-tecnológica.” (p.32).

 

14.
A crença – no sentido religioso – implica gerações de crentes. É uma questão comunitária e histórica, de tradição. Cremos pela fé de outros. O papel do testemunho – e da testemunha – é aqui essencial.
Do mesmo modo, uma obra- e um artista – insere-se numa tradição histórica, mesmo quebrando-a. É esse resumo da história da arte que cada artista realiza na sua obra, o que o torna em testemunha.

 

Conclusão.
Crença e Amnésia.

 

1.
Mitchel, em Iconology, dedica um capítulo a Marx –From phantom to fetish (pp.185ss). Marx não usa a noção de fetiche, de forma directa para tratar da arte – usa antes o conceito de ideologia. Marx não quereria reduzir as obras de arte ao nível dos objectos de consumo capitalista, não seriam meras mercadorias-produtos. Mas quer ideologia quer fetichismo são duas formas de idolotria: “uma mental, a outra material, e as duas emergem de um crítica iconoclástica” (p.187). A própria “mercadoria” não é trivial em Marx: trata-a, de forma irónica como “transcendente” ou “mística”, enigmática... (cfr Capital I, 71). Se à primeira vista parece apenas uma coisa, um objecto, Marx percebeu bem o seu valor e função simbólicas. A mercadoria, afirma Marx, “é, na realidade, uma coisa muito estranha, abundante em subtilezas metafísicas e minúcias teológicas” (p.188). Uma mercadoria é assim, muito parecida com uma obra de arte – pelo menos, segundo a concepção romântica de arte: um “objecto mágico”. A mercadoria é uma “coisa misteriosa” “coisas sociais que tem qualidade a um tempo perceptíceis e imperceptíceis pelos sentidos” (Marx, Capital I, 72)
Na relação com os objectos como mercadorias, compreende-se uma “relação social entre homens, que assume, nos seus olhos, a forma fantástica de uma relação entre coisas. De maneira a encontrar uma analogia temos que aceder às regiões do mundo religioso. Nesse mundo, a produção do cerébro humano aparece como seres independentes com vida, entrando em relação entre si e com a raça humana. Assim também no mundo das mercadorias com os produtos da mão humana. Isto eu chamo o fetichismo que se liga aos produtos do trabalho, assim que são produzidos como mercadorias, e que é então inseparável da produção de mercadorias”. (Capital I, 72)
Asssim, segundo marx, o fetichismo da mercadoria é uma forma de “troca preversa”,
Criando “relações materiais entre pessoas e relações sociais entre coisas” (Capital I, 73)
A crítica de Marx dá a ver aos leitores do sec. XIX, que se pensam tão desenvolvidos, que afinal não estão longe das sociedades primitivas: a economia e o materialismo contemporaneo são uma outra forma de subsistência do pensamento mágico - depois recuperado por Braudillard na crítica ao consumo.
A resistência a esta teoria, era para Marx a diferença entre o mundo moderno e o antigo: os que acredita mem talismãs e fetiches sabem que acreditam, mas os capitalistas negarão que o ouro é o seu Santo graal.
Marx usa, então, a noção de “esquecimento” da antropologia do fetiche: “a magia do fetiche depende da projecção da consciência no objecto, e depois esquecer-se do acto de projecção”. (Mitchell, p.193)
O fetichismo da mercadoria deve ser entendido como uma forma de duplo esquecimento: primeiro o capitalista esquece-se que foi ele e a sua tribo que projectou vida e valor na mercadoria no ritual de troca. “Valor de troca parece ser um valor, um atributo, das mercadorias ainda que “nenhum quimico tenha descoberto valor de troca nem numa pérola nem num diamante” (Capital I, 83). Mas há um segundo esquecimento: “a magia mais profunda do fetiche da mercadoria é a sua negação de que há qualquer coisa de mágico nela: “o passo intemediário do processo desaparece no resultado e não deixa nenhum traço-marca atrás” (Capital I, 92). Parece ser um “código eterno”, natural e não histórico, como se tivesse sido sempre assim... o capitalismo “esqueceu o carácter histórico do seu modo de produção” (Miitchell, p.193)
Este novo fetichismo aparece, em termos sociais, como uma forma de iconoclasmo: destrói os antigos fetiches, criando novos:
Teremos esquecido que continuamos, também na relação com as obras de arte, inscritos em regimes de crença? Uns deuses substituem outros.

 

2.
A arte, tal como a filosofia, é feita a partir de “pressuposições”. Mas tentei esclarecer e explicitar algumas dessas presuposições na relação com as obras na contemporaneidade. Não nos pode bastar uma ingenuidade da crença. É preciso elaborá-la, trabalha-la. Uma necessária mediação crítica. E, depois, é preciso fazer a crítica da crítica. É o que nos parece necessário, para passar de uma religião da arte, assente na crença, para uma fé no poder da arte. E isto través de um momento “ateu”, céptico, em Duchamp.
A crença possibilita um Horizonte da espera: o preparado/ o espectável/ o compreensível. Uma confiança. Mas não podemos ser arrebatados por uma obra sem o esperarmos, sem crermos?
No estado de crença, dá-se uma abertura do contemplador à obra: um acolhimento. E com ele a consciência da dependência (ou co-dependencia). Nietzsche tinha razão: “o homem de fé, o fiel, de qualquer índole, é necessariamente um homem dependente... toda a fé é, por si, uma expressão da alienação de si mesmo, de abdicação do próprio ser”. (Nietzsche, O anti-cristo, 54).
Abdicar de si, despojar-se, é um forma radical de relação com a obra. Abrir-se a ela, expôr-se, é estar preparado para mudar de vida. Um sair de si, de modo a encontrar-se – não como uma verdade já formada, mas algo por vir. E isso implica abandonar a credulidade ingénua e experimentar a adesão crente.