Debates moderados por António Guerreiro
Extemporâneo
Tomás Maia
Tomás Maia
— … subitamente, quase a despropósito, disseste: no fundo, não há arte contemporânea. Nunca houve. E logo depois: contemporânea de quem ou de quê? Jamais soube responder, e hoje faço a pergunta: seria esta a ocasião de te explicares?
— Hesito: um livro colectivo, uma certa partilha de princípios, um pouco por todo o lado a estabilização de categorias como a dita “arte contemporânea”… De resto, em si mesma, é uma discussão irrelevante — ou secundária. Seja como for, há algo de mais premente.
— O quê?
— O tempo em nós.
— Mas não é precisamente isso que denota a expressão “arte contemporânea”? Uma espécie de esgotamento de todas as pré-determinações estéticas (e técnicas, e estilísticas…) da arte? Como se não restasse outra coisa, para designar a arte, do que a sua relação com o tempo, e como se assim se mostrasse que esta relação foi o móbil da sua história, se não mesmo a sua condição?
— Essa relação testemunha da possibilidade da relação em geral, na qual o cum (do con-temporâneo) nunca está dado. Para designar essa redução da arte à relação com o tempo, não vejo por que não bastará o termo moderno. Baudelaire e Hölderlin, de diferente maneira, sabiam-no. Na verdade, se o moderno através deles (e de muitos outros) é a insistência de um resto que atravessa o todo da arte, e se, deste modo, estamos votados a persistir no limite (como aliás já entrevira Kant), então torna-se nula qualquer vontade de apreensão (ou de resgate) do tempo. A persistência no limite indica, para começar, uma consequência imediata: não há necessidade de ruptura com um período pré-moderno (não há tabula rasa), assim como não há a possibilidade de nos projectarmos para além da modernidade, se esta revela um resto que é a questão mesma (a busca: a quaestio) de toda a arte. O limite de que falo obriga mesmo a dizer que a modernidade nunca foi uma idade ou uma época do Ocidente: uma etapa de um processo histórico por cumprir. Foucault — escrevendo de resto sobre Kant — propôs pensar a modernidade como um ethos, uma maneira de ser, e não como um período histórico…
— E a tua resposta ética é persistir?
— Sim… — se formos atentos a todas as declinações, inclusivamente políticas, do sentido da persistência.
— Mas não estarás assim a supor que nos tornámos contemporâneos de tudo e de todos?
— É esse o enigma: podemos ser contemporâneos de tudo excepto de nós mesmos.
— No fundo, a tua resposta é sempre a mesma: há — ou terá sempre havido — algo de mais premente.
— O próprio tempo é o que não passa — estou praticamente a citar Kant, outra vez. Mas precisaria de recuar um pouco mais, manifestamente noutra ocasião.
— Mas por que não aqui mesmo, onde os teus contemporâneos (se me permites a expressão!) aceitaram escrever no âmbito de uma interrogação sobre o que é o contemporâneo?
— Se aceitares que a tal relação com o tempo é, por assim dizer, anterior à distinção entre ver, ouvir, fazer e pensar… O mesmo é dizer que ela precede todas as distinções entre produção e recepção, actividade e passividade, poética e estética…
— Aceito-o: afinal, sou eu que te obrigo a escrever.
— Para me desconhecer, através de ti.
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— Penso nas palavras de Tirésias proferidas nas duas peças de Sófocles que Hölderlin traduziu e interpretou (Antígona e Édipo, o Tirano). Julgo que algo de essencial aí é dito sobre a relação com o tempo. Dou-te simplesmente a ler uma observação extraída das Notas de Hölderlin:
Nas duas peças, são as palavras de Tirésias que constituem a cesura.
Ele faz a sua entrada no curso do destino, como aquele que vela pela potência da natureza que, tragicamente, subtrai o homem da sua esfera de vida, no ponto médio da sua vida interior, arrebatando-o para um outro mundo, a esfera excêntrica dos mortos.
— Que quer dizer, aqui, «cesura»?
— É o termo técnico que ele emprega para designar a suspensão de um determinado curso, seja de uma vida ou de uma obra. Num outro momento, precisa: «interrupção contra-rítmica», apontando para a essência do ritmo: um batimento a contra-tempo dentro do próprio tempo.
— Mas não vejo que relação tudo isso possa ter com uma «esfera excêntrica» — e, para mais, «dos mortos»…!
— Um indício de resposta está na análise, que poderia ser feita, das palavras de Tirésias, o vidente cego: tudo se passa como se, nas duas peças, ele fosse o porta-voz dos mortos. Em Antígona, é ele quem adverte Creonte em dois versos inauditos: «Cede diante do morto, e não persigas aquele | que partiu. Que força é essa | de matar mortos?» (inspiro-me aqui na tradução do próprio Hölderlin, numa passagem que corresponde aos versos 1069-1070). O que significa: cede diante de Polinices, o qual, para Tirésias, era um entre todos os mortos insepultos: todos os seres esquecidos. Em Édipo, o caso é mais conhecido: é igualmente Tirésias quem sugere, desta vez ao próprio Édipo, que este é o único motivo da ruína que se abate sobre Tebas (e Hölderlin agravará esta acusação sugerindo que o Rei transgride o seu próprio espaço de jurisdição, interpretando infinitamente a sentença do oráculo). Nos dois casos, Tirésias impõe um respeito pelo limite que separa os vivos dos mortos — pela linha que inclui o morto como aquele que está excluído de ser apropriado pela comunidade dos vivos. E, nos dois casos, havendo desrespeito, tal constitui para Hölderlin a causa da tirania. Há aqui um ensinamento que poderia — e poderá — ter amplitude histórica. Daí a pergunta: para onde nos faz olhar Tirésias, ele que ficou cego?
— Para um outro tempo? O tempo dos esquecidos?
— Essa seria sem dúvida a forma de aproximar estreitamente Hölderlin e Marx. Mas hoje falamos “somente” da obra de arte e, a este respeito, Tirésias abre às cegas — no tempo paradoxal da cesura — o espaço para um outro diálogo…
— Entre quem e quem?
— Se pudesse retomar as palavras de Hölderlin, diria: entre um vivo (o homem na «sua esfera de vida») e os mortos. É um dito, aliás, que encontra uma ressonância particular em Genet quando escreve sobre Giacometti. Mas atenho-me à tragédia, pois julgo ser o momento da plena tomada de consciência, no Ocidente (ou o momento pleno do Ocidente como consciência), de que a arte procede daquele diálogo — como chamar-lhe? —, do “diálogo do morto-vivo”. Tentarei chegar a uma formulação menos obscura, mas por ora deixa-me dizer-te que aquela tomada (de consciência) é dupla e assimétrica: na cena, e na quase totalidade das tragédias que chegaram até nós (se exceptuarmos os Persas de Ésquilo e uma tragédia de Frínico cuja representação, precisamente, foi interditada), não são os vivos que se encontram representados numa intriga contemporânea, mas os mortos que se tornaram míticos; por outro lado — do outro lado —, quem assiste não é exactamente o cidadão para o qual a morte pode ser domesticada (comemorada e civilizada): para esse efeito, há outras instâncias na polis. Quem assiste, pelo menos até certo ponto, é um vivo que realmente ainda não nasceu, quer dizer: que se dispõe a nascer outra vez ou de outro modo, passando pela provação da morte do herói (em cena). De um lado os mortos, do outro os não-nascidos; entre eles, a obra — a única coisa aparentemente presente e que persiste… Aliás, foi isso que me impressionou em criança numa das primeiras idas ao teatro: de onde vieram estes seres — perguntava-me — que se movem a poucos metros de distância da bancada e que, no entanto, não pertencem a este mundo? O que é que faz com que eu não os possa tocar, conquanto não haja nenhuma barreira física entre nós? Que linha é esta que ninguém transpõe mas que se dá a ouvir e a ver através do escuro? Linha intransponível e — ao mesmo tempo — inexistente? O teatro inspirava os primeiros terrores da minha vida, a ponto de achar escandaloso que as luzes se acendessem no final e os adultos se inclinassem para a vulgaridade mútua dos agradecimentos e das palmas. E — sobretudo — que começassem logo a falar: a falar da vida (pois, do que há a falar senão da vida?), da vida daquele dia ou de um outro qualquer. Talvez por isso nunca me tenha plantado à saída dos actores: para mim, eles vinham de um outro mundo e não cessavam de vir, não podiam ter paradeiro, certo ou incerto. Sem o saber, em suma, eu começava a interrogar-me sobre o que fazia de alguém uma persona… Mas foi só em Hölderlin que li que esse outro mundo — que eu não sabia nomear — se podia chamar «esfera excêntrica dos mortos». Foi pois na tragédia que encontrei, não direi a génese da representação, mas a forma consciente (ou reflexiva) da mesma: da representação que se sabe representação da morte, isto é, de um segundo nascimento (Dioniso — como mais tarde Cristo — é aquele que nasce duas vezes). Reelaborando os ritos agrários (do neolítico), a tragédia abria assim o espaço puro (e o espaço da purificação) da «morte-nascimento»: não já através do sacrifício (onde a morte é literalmente incorporada) nem, tão-pouco, através da iniciação mistérica (da qual não pode haver, em princípio, nenhum testemunho), mas através de uma personificação, justamente: de uma encarnação simbólica. Um espaço era aberto — a cena — por alguém que ficava (são e salvo) fora de cena: no limite, o teatro não precisa de nenhum actor e é também neste sentido que ele, o teatro, indica a condição da representação ou da arte. Todas as artes são teatrais ou, se preferires, a teatralidade indica a natureza da arte, que é de ser contemplada: ela instaura o limite junto ao ou à volta do templum — templo vazio ou do vazio aberto na existência…
— A obra daria corpo a um vazio?!
— A con-templação é a visão pura (ou a audição pura) que nos purifica de um vazio… O próprio verbo «contemplar» denota que, em arte, não há distinção à partida entre ver (ou ouvir), pensar e fazer…
— No verbo contemplar estariam então reunidas todas essas acções?
— Sim, na condição de nele se fazer ouvir, repito, o templo.
— É desconcertante: mas não vejo qualquer relação com a contemporaneidade.
— Dá-me algum tempo, se te for possível.
— E com o termo «templo» — e a sua conotação arcaica — não estás a sustentar, depois de Hegel, que a arte é, em suma, a religião? Ao menos Hegel compreendeu que, com o cristianismo (a religião da pura interioridade) e, sobretudo, com o seu momento luterano, se anunciava inevitavelmente o declínio do religioso — e consequentemente, não o “fim da arte”, como se diz e rediz, mas o fim da obra enquanto unidade sensível adequada à Ideia que ela manifesta. Não será precisamente isso, antes de mais, que patenteia a contemporaneidade: uma grande raridade de obras (de arte) e uma abundância de produtos culturais — coisas, em todo o caso, ostensivamente desprovidas de qualquer desígnio espiritual, no sentido que lhe atribuía Hegel? Ao menos ele não nutria, como tu pareces nutrir, qualquer nostalgia pelo «milagre grego» — e não tinha nenhuma ilusão sobre o futuro da arte: com o ideal dilacerado (com a perda da unidade imediata na obra), a produção cultural daria livre curso — e livre circulação — aos extremos (doravante separados) da obra: tornar-se-ia ou num puro formalismo (quando a forma se erigisse como o novo conteúdo da arte) ou num puro subjectivismo (quando o conteúdo se reduzisse à própria subjectividade do artista cuja expressão, levada ao extremo, dispensa a obra). Começo a compreender por que razão, para ti, importa tanto redefinir a própria modernidade como persistência da obra… Porém, face ao panorama actual, julgo que ambos teremos de dar razão a Hegel…
— Não, não dou razão a Hegel. Embora reconheça que tenha sido ele — com os Românticos e com Hölderlin — a detectar a encruzilhada onde ainda nos encontramos. Sem que para isso eu nutra qualquer nostalgia.
— Não vais dizer que também nos encontramos numa encruzilhada de três caminhos… E que a história se repete como farsa (da tragédia)…
— Digo somente isto: já é tempo de estarmos bem conscientes da nossa encruzilhada, a começar pelo facto de ela ter igualmente, sim, três caminhos: artístico, religioso e político. Com o fim daquilo a que Hegel chamava a religião «positiva» (baseada na positividade dos dogmas e no poder eclesiástico), com a erosão portanto da cristandade, ele, Hegel, o luterano, compreendeu que o Absoluto só se revelaria exilado da religião, isto é, do espaço da instituição religiosa, no sentido estrito do termo. E, com efeito, pondo de parte a via que o próprio Hegel propugnava (uma manifestação absoluta pela Razão ou pelo Conceito, a qual, por isso mesmo, se confundiu com a própria resolução ou conclusão da filosofia), a modernidade instaura-se pela «exigência fundadora» (é uma expressão de Lacoue-Labarthe) de duas religiões fora da religião: a religião política e a religião da arte. Neste sentido, os dois últimos séculos na Europa são inteiramente determinados pela prossecução e pela conjunção devastadora dessas duas religiões. A história repete-se, mas de epígono em epígono religioso, cada um parecendo uma farsa (decadente) do anterior. Continuamos na mesma encruzilhada — no cruzamento (moderno) entre a arte, a religião e a política: até aqui, julgo que Hegel é inultrapassável, insuperável ou impossível de ser suplantado (como, sem dúvida, ele teria gostado de ouvir). A partir daqui, importa tentar dizer: não é o facto de continuarmos nessa encruzilhada que dá razão a Hegel em matéria de arte; pelo contrário, isso requer que insistamos no seu ponto mais agudo — e afirmemos: a arte nunca se identificou com a religião. Seria preciso demonstrar: foi a arte (a representação) que tornou possível a religião — e não o contrário. E se a arte a tornou possível, tal se deve precisamente ao facto de a obra ser o (único) corpo divino. Eis o que me ocupa: o divino é anterior ao religioso — e o divino não progride (historicamente), ao invés do que pensava Hegel. A obra de arte persistirá enquanto houver divino (no homem). Tal é a razão pela qual mantenho a palavra «templo», o espaço genérico que delimita o divino. E tal é a razão que me leva a condensar, mais do que nunca, a experiência da arte no verbo contemplar…
— Mas o que é o divino, afinal?
— Precisamente, voltando a Tirésias (através de Hölderlin), diria: é o morto — ou certos mortos — em nós. O divino não morreu porque ele mesmo sempre foi (um) morto. O diálogo do morto-vivo não é outro senão o diálogo do homem com o divino. Mas é estritamente impossível demonstrá-lo aqui.
— Poderias ao menos indicar uma direcção.
— Na forma mais concisa, julgo que ela já foi indicada, uma vez mais, por Hölderlin num enunciado que pode bem ser o mais decisivo para a modernidade. É o momento em que se tenta descrever o que “acontece” no instante da cesura e se acaba por identificar Deus com a categoria do Tempo. Leio-te outra passagem das Notas — mesmo sabendo que já a conheces:
Nesse limite, ele, o homem, esquece-se a si mesmo, porque está inteiramente no interior do momento; o Deus, porque mais não é do que tempo; e um e outro são infiéis, o tempo porque num tal momento vira categoricamente, e nele começo e fim não se deixam mais ajustar como rimas; o homem, porque no interior desse momento é-lhe necessário seguir o volte-face categórico, e por conseguinte não mais se pode igualar à situação inicial.
Chamo pelo menos a atenção para a formulação restritiva: Deus mais não é do que tempo. É uma formulação mais radical do que as outras duas proposições que, no limiar da modernidade, associam estreitamente o divino ao tempo, ora afirmando que Deus é a auto-génese do Verbo (Schelling) ora retomando especulativamente «a dura palavra» de Lutero: o próprio Deus morreu (Hegel). O enunciado de Hölderlin é mais radical porque precisamente não se limita, à maneira judaico-cristã, a estabelecer o carácter eminentemente temporal da divindade. Ele identifica os dois termos — e restringe Deus ao tempo. Numa palavra, e não sendo possível comentar todos os termos daquela passagem, condensaria a sua lição numa frase: o divino é o próprio tempo, e este manifesta-se paradoxalmente como ausência íntima no homem, obrigando-o a um volte-face — diria: da morte para a nascença. Noutro passo, e explicitamente, Hölderlin identifica «o espírito do tempo» (que arrebata o homem) com o espírito do «mundo dos mortos».
— Como se fosse o próprio tempo que aparecesse então, ele que é sem aparência?
— Em rigor, Hölderlin escreve — empregando conscientemente a terminologia de Kant — que, «no limite extremo do sofrimento [Leiden], nada mais resta, de facto, do que as condições do tempo e do espaço». É isso que apresenta o instante trágico: um nada como condição (da experiência). E este ensinamento é tanto mais radical que Hölderlin fazia-o acompanhar da convicção segundo a qual, na modernidade, não nos é mais possível fazer ou escrever uma tragédia. Tal é precisamente a sentença que definirá o trágico moderno: nada mais temos a aprender com os Gregos. Ou, como ele escreveu numa célebre carta a Böhlendorff (cuja tradução — belíssima — devo a um outro amigo): «Pois é isso o trágico para nós, partirmos no maior silêncio para longe do reino dos vivos, embalados numa qualquer caixa, não o expiarmos, consumidos pelas chamas, a chama que não fomos capazes de dominar.»
— Resta então o instante trágico como dimensão intemporal de toda a arte?
— Não diria intemporal: esse é um dos atributos quase universais do divino, mas é uma ideia deformada ou tardia deste. Para já, diria que resta o instante que vem de fora do tempo ou «a fenda sem cronologia e sem história donde provém o tempo». É uma expressão de Foucault para configurar a «tarefa infinita de pensar a origem», uma tarefa que cabe ao humano. Ao ser desprovido de origem (como ele também escreve no mesmo livro, As palavras e as coisas): «O que se anuncia no imediato do originário, é portanto que o homem está separado da origem que o tornaria contemporâneo da sua própria existência…». Foucault, como Hölderlin, aponta aqui para o essencial: o humano é o ser que pensa a origem, mas esta é a origem «sem origem nem começo a partir da qual tudo pode nascer». É por isso que ela, a origem, enquanto imediata, é o impossível humano que nos faz humanos. Hölderlin, comentando um fragmento de Píndaro, escreveu lapidarmente (traduzido pelo mesmo amigo): «[…] o imediato, considerado de modo estrito, é impossível para os mortais tanto quanto para os imortais. | A estrita mediação é porém a lei.»
— Então o que faz ser humano é o que faz com que não sejamos contemporâneos de nós mesmos?
— O ser humano é excêntrico — tem o seu centro fora de si — pela experiência da possibilidade do tempo. E a esta possibilidade ele acedeu, ou começou por aceder, através da relação com os seus mortos (próximos). Subitamente — sim: subitamente —, junto de alguém amado ou venerado, no curso da sub-sistência e do tempo natural (ou cíclico), manifestou-se o Tempo: e o homem acedeu à ek-sistência (mantenho, aqui, a ortografia de Heidegger).
— Começo a compreender o sentido que dás à «esfera excêntrica dos mortos»: é o que impede o homem de ter o centro da sua vida — o «ponto médio da sua vida interior», como diz Hölderlin — em si mesmo. O si mesmo (do humano) está originariamente cindido, entre presente e ausente, vivo e morto. O mesmo é dizer: está originariamente fora de si. O humano não coincide consigo mesmo, nem no início nem no fim, porque a finitude divide-lhe o início desde o começo. É assim que compreendo que, no instante trágico, o tempo «vira categoricamente, e nele começo e fim não se deixam mais ajustar como rimas». A morte excentra o homem à nascença.
— Sim, e no entanto toda a nossa história é a tentativa de radicar o centro do homem nele mesmo. De tornar o homem, por conseguinte, absolutamente contemporâneo de si mesmo. Pelo menos desde que a consciência tomou a primazia no seu espírito como fundamento da civilização. E todas as figuras identitárias têm essa função em comum, a de recentrar o homem em si mesmo, não escapando sequer a própria figura do artista: estou lembrado de uma das afirmações de Friedrich Schlegel que coloca o artista no «centro vivo» de toda a humanidade, conferindo-lhe o papel de «mediador» ou «educador». Numa das suas Ideias, aquela a que me estou a referir, a 45, chega mesmo a definir o artista como aquele «que tem o seu centro em si mesmo».
— Enquanto tu dirias que o homem é aquele que tem o seu centro fora de si mesmo, e que esta excentricidade é o seu morto íntimo…
— … toda a obra disso testemunha, de uma ou de outra maneira, inclusivamente a obra romântica.
— O que tememos então?
— A própria palavra «excentricidade» indica-o: a loucura. Uma certa prática desta tem vindo a ser confinada na arte. Daí a relação paradoxal da obra com o momento histórico — a começar pelo momento em que ela surge, o “seu” tempo ou o dos seus “contemporâneos”.
— É nesse sentido — enfim! — que disseste que nunca houve arte contemporânea? Porque o homem (aquele que cria) não pode ser contemporâneo de si mesmo? Porque a obra nunca se adequa inteiramente a nenhum tempo?
— Porque ela vem de um tempo que ainda não existe — e nunca existiu! A obra faz tempo!
— Qual é então o paradoxo que está na base da relação da obra com a história?
— Só o que não tem história pode fazer história. Só o que faz aparecer a fenda «donde provém o tempo» pode abrir na história um outro tempo. Sem, todavia, que a obra seja fundadora: sem se instalar em nenhum presente. A obra abre e fecha a série (de obras) que poderia inaugurar, um pouco como Benjamin se refere à «obra significativa»: aquela que é o fundamento de um género e simultaneamente a negação deste. O tempo da obra é a abertura do próprio tempo — a sua cesura ou a sua suspensão — a partir da qual somente pode haver tempo.
— Então podemos dizer que a obra não é rigorosamente histórica nem a-histórica: ela não vive nem dentro nem fora da história. Não vive fora, pois é condicionada (e condicionada até materialmente) por vicissitudes históricas, e não vive dentro porque não reproduz nenhum momento histórico. Tudo isto faz-me pensar num célebre aforismo de Oscar Wilde: «As obras vivem na história em função do seu anacronismo».
— … sabes, é porque — entre outras razões — o termo «anacronismo» não me satisfaz que tento dizer as coisas de outra maneira. A não ser que se trate de um anacronismo crónico, se posso dizê-lo assim!
— Mas é isso que não cessa de acontecer na contemporaneidade! Não cessa de acontecer essa impossibilidade de a obra ser incluída ou encerrada — integralmente compreendida — num momento histórico. Não há pois razão para recusares o termo «contemporâneo»…
— Jamais o recusei: só peço que não o utilizes acriticamente, como se fosse uma categoria do pensamento ou um período histórico reconhecível. Só te peço alguma prudência: nos “tempos que correm”, já não seria pouco. Na verdade, quem é que pode dizer o que é a arte contemporânea? A arte que se faz hoje? Mas hoje faz-se tanta coisa e Sófocles — mantenho o mesmo exemplo — é um dos nossos mais lúcidos contemporâneos!
— Na verdade, nisso tens razão: diz-se muitas vezes isto, para exprimir uma certa universalidade da arte, por exemplo: Sófocles, nosso contemporâneo… Isto só para manter o teu exemplo, mas quem diz «Sófocles» diz outro ou outra qualquer que cinda o nosso presente. Só isso deveria manter-nos atentos sobre o carácter incerto ou ambíguo do «contemporâneo».
— Isso explicita justamente que o «contemporâneo» é um índice temporal muito variável, mas jamais um qualificativo (da obra). E isso obriga-me — pelo menos a mim — a fazer, dentro da contemporaneidade (seja a nossa ou a de Sófocles — ou de quem entenderes), uma distinção: entre o que se adequa ao seu tempo e o que não é regido por nenhuma lógica de adequação. Entre aquilo que é uma resposta a um momento histórico (resposta activa ou reactiva) e aquilo que ainda é desprovido de tempo. Entre o que se inscreve na história e o que faz história. Em qualquer contemporaneidade (e não só na artística, mas também na política, na amorosa, etc.), haveria sempre duas dimensões: o actual, e aquilo a que proponho chamar o extemporâneo.
— O quê?! Podes explicar? Não vais passar a dizer «arte extemporânea»?!
— Como te disse no início, quando hesitava encetar — ou prosseguir — o nosso diálogo: em si mesma, essa discussão é irrelevante. Para mim há qualquer coisa, não só de mais premente, mas de mais grave: importa não fazer dos conceitos uma espécie de fetiches espirituais — e tentar praticar, se for possível, uma sobriedade do pensamento. Um conceito é somente um meio para pensar (e portanto tentar existir) de outra maneira. Não acrescentarei pois à arte nenhum qualificativo, mas associo-a — como dizer? — à natureza intervalar do instante: àquilo que é instante e instável no tempo e que o «instante trágico» manifesta. Em suma, se vou manter o termo «extemporâneo», é na tentativa de aclarar — de trazer à luz — o âmago secreto de qualquer contemporaneidade.
— O âmago… Estou a ver: enquanto o actual designaria a superfície exposta, se não mesmo mundana da contemporaneidade, o extemporâneo seria o seu fundo originário! Não te libertas dessas dualidades, entre o profundo e o superficial, o verdadeiro e o falso, o original e o simulacro, a apresentação e a representação… Tu próprio sabes que tudo isso é insustentável, pelo menos desde Nietzsche…
— Para começar, o extemporâneo não é o oposto do actual: não é a inactualidade.
— Justamente: eis um termo de Nietzsche!
— Presumo que te estejas a referir sobretudo à segunda das Considerações inactuais, ou — é um termo que eu prefiro para traduzir «unzeitgemäss» — intempestivas… Seria agora necessário abrirmos uma discussão sobre o sentido nietzschiano desse termo, mas dar-te-ei somente o princípio do que seria a minha leitura. Se uma certa inactualidade da arte é, por assim dizer, a marca do seu desacordo constitutivo com o momento histórico em que ela surge, isso não significa porém que a obra seja o efeito de uma postura reactiva face aos códigos de uma época. Por outras palavras, se a obra advém de certo modo como um contratempo (ou como uma «interrupção contra-rítmica», para não largar os termos de Hölderlin), isso não implica que ela seja especificamente contra o seu tempo. É que importa não esquecer que Nietzsche acaba por relacionar, se não mesmo por identificar, o inactual ou o intempestivo com o culto do herói, ou seja, com a possibilidade de fundar uma «raça nova» sob o modelo dos «grandes homens». No entanto, o gesto de Nietzsche é complexo: ao mesmo tempo que define a «força não-histórica» (como «faculdade de esquecer e de se fechar num horizonte limitado»), determina também o sentido das «forças supra-históricas» como aquelas que fazem desviar o nosso olhar na direcção do que confere à existência «um carácter de eternidade e de estabilidade». Ora, a estas forças Nietzsche faz corresponder a arte e a religião… É uma discussão imensa para a qual só estou em condições de avançar o seguinte: o carácter de eternidade que tentarei discernir no extemporâneo é, ao invés, o próprio sinal da instabilidade do existir. Por isso é que ele não pode ser fundador de qualquer existência colectiva.
— Mas podemos interpretar o «intempestivo» nesse mesmo sentido.
— Até certo ponto, sim, mas o gesto de Nietzsche é duplo, porquanto também depende da vontade de dividir a história ao meio: Dioniso contra o Crucificado… (é a derradeira palavra de Ecce Homo).
— Nietzsche dá-nos a pensar, seja como for, que só num estado de não-historicidade pode haver criação e mesmo todo o acto de justiça…
— Pela minha parte, acentuaria o sentido de fora do tempo que o adjectivo unzeitgemäss contém ou evoca. Foi assim que me ocorreu, pela primeira vez, o termo ex-temporâneo: como se o tempo tivesse necessidade de um prefixo que assinalasse de antemão o seu espaçamento constitutivo (e não uma pontualidade de dimensão nula que se sucede formando uma linha temporal). O prefixo ex-, aqui, não significa somente «fora do tempo» próprio (ou previsto): o imprevisível ou o prematuro. Ou melhor: estes dois termos decorrem de uma condição anterior: para haver obra, tem de se dar uma abertura do tempo ao seu fora — ao que nunca aconteceu (ao que é sem história) e que no entanto irrompe no instante trágico. O primeiro traço do extemporâneo insiste sobre esta necessidade de pensar o tempo a partir de um espaçamento que torna o presente vazio ou ausente. Co-implicação do espaço e do tempo que Hölderlin exprime kantianamente: no limite da experiência, «nada mais resta, de facto, do que as condições do tempo e do espaço». Experiência, portanto, não de qualquer coisa no espaço e no tempo, mas do tempo e do espaço como condições de possibilidade da experiência. Deste modo, esse instante parece que vem sempre antes do tempo, sem apoio e sem pose, anterior a toda cadência regular. O instante que não se apoia no curso do tempo, mas que o suspende, parecerá sempre prematuro ou precipitado. Toda a obra de arte que faz história é prematura, não no sentido em que prevê o que irá acontecer, mas porque traz a prematuridade do próprio instante.
— Como tudo o que tem uma repercussão profunda no curso de uma vida singular ou na história colectiva. No fundo, não estás a tentar descrever outra coisa senão a natureza do instante — ou do já, como dizia Clarice Lispector (que chegou a identificá-lo com Deus!)… O problema é que poucos são aqueles que se abrem verdadeiramente ao instante ou ao vazio do tempo…
— Poucos são os que podem: é o próprio tempo que está a ser expropriado a todos, numa ilusão de contemporaneidade e de comunicabilidade absolutas. É por isso que quase já não é preciso censura. O tempo — e o saber — estão a ser-nos retirados.
— É a ilusão da instantaneidade.
— Não diria assim, pois o extemporâneo tem igualmente a natureza do instante, distinguindo-se da noção de actual na medida em que a instantaneidade deste não age nem visa agir sobre o tempo (como diria ainda Nietzsche). Aliás, dás-me assim o ensejo para te apontar o segundo traço do extemporâneo: é súbito e arrebatador. Por estranho que te possa parecer, o traço da instantaneidade pode ser enunciado a partir de Platão (ele, para quem o tempo — como disse um dos seus comentadores — era um obstáculo para o pensamento…). Refiro-me ao Platão que escreveu esse singular diálogo que dá pelo nome de Parménides… É extraordinário que Platão, afrontando aí o problema da temporalidade, se refira à «natureza estranha» do instante para caracterizar a morte e o nascimento do Uno. O termo empregue é exaiphnes, correntemente traduzido por «instantâneo» (ou, respeitando a forma adverbial, por «subitamente»), e eu diria de bom grado, uma vez que Platão também insiste sobre o ex- (o ἐξ de ἐξαίφνης) acentuando a ideia de “ponto de partida”, que assim se revela que o instante é um termo atópico — desprovido de lugar próprio e fixo. Traduziria assim à letra a formulação sobre a natureza estranha do instantâneo (he exaiphnes haute physis atopos) pois julgo que a obra procura fixar, paradoxalmente, o ponto inapreensível (ou atópico) da existência. É ele — eternamente ausente ou em trânsito — que determina o ritmo.
— Imagino que tenhas muitos exemplos para dar, a começar por Hölderlin, mas o arrebatamento, de que não chegaste a falar, faz-me pensar em dois raptos exemplares na cultura grega, nos quais, sem nenhum acaso, a mulher é o elemento central, ora como sujeito ora como objecto do acto de raptar. Penso tanto em Helena como em Perséfone, que são as duas figuras do arrebatamento pelo amor e pela morte…
— Julgo que disseste tudo.
— … deixa-me acrescentar: esse ponto, em que nos abrimos ao fora do tempo, é então para ti a origem?
— …
— Preferes o silêncio — queres interromper aqui?
— … preciso de dizer as coisas com outro vagar. Importa-me que nada fique — como dizer? — pesado, excessivamente pousado.
— Um pouco como as palavras de Tirésias, extemporâneas! Mas sabes que, ao ouvir-te, ocorre-me propor-te um terceiro traço: em latim, extemporaneus (ou extemporalis) significa improvisado: aquilo que é feito no próprio instante e segundo a necessidade desse instante. E voltamos ao elemento rítmico: na análise que propõe do termo rhuthmos, Benveniste evoca «a forma improvisada, momentânea, modificável», isto é, a forma que não cessa de ser encetada pelo tempo. Neste sentido, parece-me que não há mais oposição entre obra escrita (ou pré-definida ao momento da sua apresentação) e obra improvisada: o decisivo é que a obra recomece a cada instante, ou que o seu começo esteja constantemente no fim (em vez de se pressupor o fim desde o começo — pressuposição que faria da obra apenas um desenvolvimento previsível). Para saber improvisar, em suma, é preciso uma longa preparação…
— A esse respeito, haveria muito a dizer sobre a composição e a interpretação musicais.
— Sim, e nesta acepção o extemporâneo é sinónimo de surpreendente. A surpresa é uma característica iniludível da estrutura rítmica (sobre a qual gostaria de falar num outro dia). Por ora, o sentido da improvisação dá-me a pensar que uma obra regida pelo seu ponto atópico é algo que, mesmo terminado, continua. É uma obra infinita: aberta intrinsecamente à sua exterioridade material e histórica. Eis por que ela não pode ser inteiramente contemporânea ou pertencer integralmente ao “seu” tempo: ela surge para lá dos códigos e do horizonte de expectativas da época que a viu nascer.
— É curioso como essa necessidade de repensar a improvisação reactiva o sentido mais comum de extemporâneo…
— Estás a pensar no sentido da inoportunidade (da arte)? E bem poderia ser esse o quarto traço do extemporâneo, completando o esboço do seu quadro elementar: prematuro, instantâneo, improvisado, inoportuno… Este último traço é aquele que mais directamente relaciona a obra com a dimensão histórica (numa relação a que já chamaste, aqui, paradoxal), levando-me a perguntar: donde vem esta necessidade imperativa que faz com que a arte jamais se deixe apropriar por qualquer contemporaneidade? É que não me satisfazem as duas respostas mais habituais: a arte conteria uma verdade universal ou teria a capacidade de prever descobertas ou possibilidades da existência futura. Nos dois casos, faz-se depender a obra de um presente vivido ou passível de ser vivido…
— Enquanto as palavras de Tirésias, relidas por Hölderlin, evocam um arrebatamento que ninguém pode viver…
— Sim, e a esse arrebatamento que ninguém viveu ou viverá, não sei que nome lhe hei-de dar senão o de trauma crónico (da humanidade). E mesmo, num certo sentido, de trauma para-histórico: algo que marca a possibilidade da história sem pertencer à história — ou sem pertencer ainda a um momento histórico. Tudo isto inicia porventura um outro diálogo, mas é em todo o caso a noção de trauma — que pode e deve ser aplicada ao conjunto da espécie humana desde a pré-história — que lança para mim alguma luz sobre o carácter profundamente inoportuno da arte. Isto é, sobre o facto de a obra parecer, no momento em que aparece, um despropósito ou, o que vai dar ao mesmo, parecer que é feita a propósito de tudo e de nada. O trauma que volta sempre parecerá despropositado ou deslocado (termos que traduzem, mais fielmente, o atopos de que falavas acerca de Platão…). Na verdade, o trauma é definido por Freud (designadamente no seu livro Introdução à psicanálise) como o acontecimento vivido que traz um tal aumento de excitação que a vida psíquica não o consegue suprimir ou elaborar pelos meios normais ou habituais. Ora, e se bem compreendi o mote que deste para este diálogo — as palavras de Tirésias —, talvez possamos dizer que o trauma da humanidade (essa ferida aberta pelos mortos na vida do homem) é impossível de eliminar ou de sarar porque nem sequer se reporta a um acontecimento vivido. Talvez possamos dizer: o morto íntimo é o corpo estranho que permanece em nós — melhor: é o vazio estranho que permanece em cada um, antes e depois da invenção da «alma». A obra dá corpo ou exterioriza esse vazio que não é nosso contemporâneo. E terá sido ele, esse vazio, que em criança viste e ouviste numa persona… Mas imagino como, face à minha precipitação, deves estar impaciente para interrompermos.
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[continua]