Motivos obrigados1

Maria Filomena Molder

 

Para dar e baralhar2
Deitar fogo ao modelo.
Vender a alma ao diabo.
Lançar-se nas águas do seu próprio reflexo.
Resistir ao afogamento.
Seguir vestígios.
Caçar e ser caçado.
Devorar a caça.
Brilhar daquilo por que se é devorado.
Ser um mentiroso, um actor, um fingidor.
Ser o único vivo na terra dos mortos.
Pagar mal as contas, isto é, dilapidar.
Manter-se um pedinte.
Perder-se na alta floresta.
que porque morro...

Estas são formas de obscuridade – a lista é incompleta, com todas as consequências – imanentes à arte, à poesia, à música, que parecem tornar muito problemática a sua relação com a cultura, quando esta se converte em produção industrial.
Freud. Todos os Faustos. Um rapaz grego cujo nome é o de uma flor invernal. Todos os que conseguiram. Benjamin. Béla Bartók. Herberto Helder. Fellini. Nietzsche. Fernando Pessoa. Dante. Nietzsche e outros. Louise Bourgeois. Baudelaire. Camões (HH).


Excertos de um diálogo entre uma e outra (uma que só vem quando quer)
Uma: Feridas. Feridas, muitas.
Outra: E não se fecham?
Uma: Voltam a abrir.
Outra: Os assaturnados, os que se encontram sob a influência de Saturno...
Uma: Há quanto tempo seria hoje, há quanto tempo? Só que me parecia que os traços doentios se iam repetir, reproduzindo-se, rodopiando. (um sonho antigo, dança, dançar, dançar. Rodopiar de cada vez em círculos mais largos e desaparecer) É um género de fuga que outros conhecem melhor do que eu. A Irene Lisboa e aquela mulher que se tornou poeta por causa dos nazis, mas que sabia dançar, Nelly Sachs.
Outra: Isso são tudo hormonas. Não te deixes enganar. Mesmo o ódio e a cólera sobem por ti acima à mesma velocidade com que escapam aquelas substâncias de cujo nome te estás sempre a esquecer. Que tu quanto a esquecimentos conheces um reinado pleno. Vais começar hoje, então. Não hesites. Em cada momento tenta apanhar, tenta apanhar-me. Se for uma forma de substituição, se é para pôr em dia o desalento imenso que cai sobre ti, a consciência aguda de nunca estares no teu lugar... Vai antes correr ao vento, coisa que desde a infância conheces e deixa estes rabiscos.
Uma: A estrela escondida. O animal fugidio. A criatura perdida, a criatura que nasceu com erros – embora esteja quase toda completa e ela agradece.
Outra: Sim, agora passas o tempo em acções de graça. São sinais promissores e, no entanto, não será por isso que ficarei a teu lado. Já me deixaste escapar em momentos melhores. Por mim, outros virão.
Uma: Na infância, os cinzentos céus de Novembro, certos rumores nocturnos...
Outra: Entristeciam-te. Coisas favoráveis. Mas não basta sentir o vazio.
Uma: Faziam-me transportar para um lugar que me pertencia sem nunca lá ter estado.
Outra: Mesmo no sofrimento a banalidade mete o dente. Qualquer um passa por ele, o que lhe fizeste? Puseste-o de molho à espera de melhores dias. Pode ser uma boa armadilha que acabará por prender os teus próprios pés.
Uma: Também me senti muitas vezes perdida, muitas vezes, muitas vezes, perdida, sem saber coisa nenhuma, estar diante do leite fervido que se derramou do fervedor e deslizou pelo chão da cozinha como os meandros de um rio e eu fico a olhar sem saber como, sem saber donde – sou esse menino de O Milagre de Milão, a velhinha, a feiticeira não apareceu a meu lado, saltitante, enchendo a correria do leite de barquinhos de papel entre risos cúmplices. Não. Parada, quieta, olhando incrédula, abandonada, e muito ao fundo ouvindo um riso de humor, alegria e desespero, vi escoarem-se os meus bens.
Outra: Toca e foge.
Uma: Um animal que não que ser tocado. Abominei o vídeo: um veado muito novinho ou uma gazela e um lobo num espaço asséptico (numa galeria?). Os animais não compreendem onde estão, aquela terra é de alguém, pois os humanos habituam-se a tudo, mas não pertence aos animais que ali parecem robots, paralisados pelas fórmulas de uma concepção letal da arte.
Outra:...
Uma: Que vai ser de mim? Vou sucumbir.
Outra: Estratagema inútil. É-me inteiramente indiferente esse género de lamento. A não ser que seja Ninfa de Monteverdi. Os lamentos enchem a vida dos da tua raça. Mas alguns são visitados por mim.
Uma: Em muitos dos que encontrei é uma forma de catarse.
Outra: Era melhor lembrares o suplício de Marsyas que pede insolência e não anseio catártico, combate, confronto. Ao desafiar Apolo, corre o risco de perder e sofrer a crueldade insaciável do deus. Se vais pela catarse, o melhor é entrares na roda das terapias.
Uma: Não um dia sem uma linha, mas muitos dias.
Outra: É o bom humorístico método. Tê-lo-á aplicado esse que falou dele?
Uma: Agora vou falar da criança, do tempo da criança que se esconde, a criança que caminha, a criança assombrada pelos desejos que suscita, não, a criança que não se ajusta, e que misteriosamente por essa incapacidade absorve, como se os respirasse, todos os pequenos desastres luminosos e nocturnos, nascidos desse desajustamento, a criança absorve venenos que a fazem cair numa espécie de alheamento, parada, suspensa. Às vezes sente-se perseguida por vozes e sonhos enigmáticos.
Outra: Vais tornar-te um ser furioso, vais enganar, andar calado, vais tentar que a tua vida – ou pelo menos parte dela – se converta num laboratório. Vais precisar de astúcia, dureza de coração, desmedida – deixa correr essa lava, há-de queimar muita coisa, e tu bem mereces algumas cinzas: de tudo o que te apavora, de tudo o que sentes desde sempre no monte de Vénus da tua mão direita. Conheço-te. Conheço essas tuas fraquezas, essa paixões taciturnas.
Uma: Por que é que há uma dor em todos os lugares em que se viveu? Anos e anos açoitado por presságios, passou a correr por todas as coisas, mas nelas prendeu cabelos e roupa, ficou impregnado, marcado pelos seus sinais. Agora, eles, reunidos em sociedade plenária exigem a sua parte, pedem o pagamento de uma dívida que ele não poderá saldar
Outra: O que estás a tentar fazer nem sempre tem bons resultados. Deita fora essa proximidade contigo, põe de lado esse feitiço da rememoração a quente. Põe o lamento na boca de outrem. Desfaz essa amizade com o teu próprio lamento. Deita pela borda fora os objectos sensíveis com os quais encheste a memória, alguns são surpreendentes, mas tens de te livrar deles e talvez te reapareçam desfigurados, macerados pelas ondas, transformados em pertenças do mar. Já não são mais teus, já não te protegem. Estão prontos para serem pastos das tuas chamas. Assim como os tens são refractários ao fogo, não consegues transformá-los em cinzas. E é isso por que anseias, sem saberes como fazê-lo. Tenta o que te disse. Requer uma disciplina feroz, uma frieza, um desprendimento, a que terás de obedecer sem teres de te decidir. Às vezes, sem dares por nada, já começaste a experiência que, também inadvertidamente, interrompes, e de novo te prendes amorosamente às tuas lembranças. Não encostes o ouvido à concha, o segredo que ouvias foi enterrado. Agora desce entre os mortos. Ao terceiro dia, ressurreição. Isso não sei.

 


O coração místico de Jacob
In placid hours well-pleased we dream
Of many and brave unbodied scheme.
But form to lend, pulsed life create,
What unlike flings meet and mate:
A flame to melt – a wind to freeze;
Sad patience – joyous energies;
Humility – yet pride and scorn;
Instinct and study; love and hate;
Audacity – reverence. These must mate
And fuse with Jacob’s mystic heart,
To wrestle with the angel – Art.
Hermann Melville, Art3

Há alguns que em horas tranquilas e imaginativas sonham com muitos e bons nados-mortos (a expressão humorística e certeira de Melville é “many and brave unbodied scheme”), pessoas semelhantes à pomba de Kant que supõe que voaria melhor se não houvesse a resistência do ar. But form to lend, pulsed life create, isso só com forças que se desenvolvem através de um combate.
Como são dissemelhantes os lances que o artista reúne e faz rimar: uma chama para derreter, um vento para enregelar (coisas ardentes em todo o caso), paciência triste – energias vivificantes, humildade – e também orgulho e malícia trocista, instinto e estudo, amor e ódio, audácia – reverência: tudo isto tem de se associar e fundir no coração místico de Jacob. Que a paciência seja triste dá que pensar, terá a ver com aquele momento em que o primata arcaico é ameaçado pelo tédio? (alguém já o disse)
Orgulho e troça: a indiferença aos leitores, aos maus leitores, aos perseguidores, aos correctores. Orgulho e troça: armas de guerra. Humildade, fonte e regra, sem ela a coisa foge, escapa ao poeta. Como diz Clarice Lispector “Humildade como técnica é o seguinte; só se aproximando com humildade da coisa é que ela não escapa totalmente” (A descoberta do mundo). A audácia está ligada à humildade e à reverência: “enriquecer com a sua própria plenitude” (Nietzsche, O Crepúsculo dos Ídolos). A um tempo, pobreza e esbanjamento. Já para instinto e estudo temos, por um lado, a embriaguez, a incapacidade em não reagir, a animalidade como um estar fora de si; por outro, o deter-se, refrear-se, resistir à tentação de reagir, inseparável do acto de idealizar como “um formidável acto de erosão” (o Crepúsculo continua a acompanhar as palavras lidas em Melville). Daqui procedem ou a isto se vinculam ou se derramam no amor e no ódio, o que é tão evidente que carece de esclarecimento. Talvez sejam a expansão/contracção dos outros lances embora também possam ser o nome das fontes de todos os lances, apesar de aparecerem antes do termo da sua enumeração. Empédocles sabia. Nada disto são disposições, mas “flings”, lances, arremessos, como num jogo, como numa luta corpo a corpo. O coração místico de Jacob é o nome em que latejam na sua sístole e diástole todos estes lances.
À venda da alma, prefere Melville esta luta com o anjo, do qual se sai desfigurado para toda a vida, marca de ter sofrido um golpe sem ter sido vencido. Baudelaire falou em Le Confiteor de l’artiste do grito de susto que sobe das entranhas do poeta ao sucumbir à beleza que o vence. Não sei se estarão a dar conta do mesmo. Mas talvez não andem muito longe (no entanto, o exemplo das Escrituras, sobretudo do Antigo Testamento, não convém a Baudelaire).

Um naturalismo alargado: o vocábulo de realidade
Baudelaire criticou com severidade e humor a “falsa religião do naturalismo”, própria dos imitadores, dos preguiçosos, dos ecléticos. Soa familiar aos nossos ouvidos. Um século antes, Goethe tinha declarado que a obra de arte é “sobrenatural”, mas não “extra-natural”, o que, excedendo já as nossas evidências, se apresenta como um enigma. Hermann Broch, goethiano de princípio, desafia-nos a ponderar um “naturalismo alargado”, cuja fórmula ele enuncia assim: “descrição do mundo como ele é”. Tendência criativa a que se associaria uma inversa, a saber, “a descrição do mundo como se deseja e se teme”. Na tensão entre as duas, inscreve-se o “vocábulo de realidade”, o verdadeiro material atractor, reflector, irradiante, do poeta. Exemplo: “O homem atravessou a rua”.

A analogia cessa sempre
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva é então escrever distraidamente.
Clarice Lispector, A descoberta do mundo

Tese gloriosa: a analogia cessa e, subentende-se, sempre. Qual é a analogia? A que se estabelece entre a fase decisiva do acto de pescar e o acto de escrever, estabilizada pela lugar comum da relação entre palavra e não-palavra. “Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu”, quer dizer, a não-palavra incorpora a palavra, o que é simplesmente o contrário do que se costuma dizer, fazendo estilhaçar o lugar comum, a saber, a palavra incorpora a não-palavra. Temos de nos haver com este enigma.
Façamos um desvio seguindo uma bússola secreta, começando por perguntar como se chega a “escrever distraidamente”, aquilo que salva, e salva de quê? Um primeiro acesso que vem ao espírito é Baudelaire através de Benjamin, através do conflito entre proximidade e distância que o par flâneur/poeta engendra. Se para Baudelaire, o poeta tem sempre qualquer coisa de flâneur, já não está prometido ao flâneur tornar-se poeta. O que falta ao flâneur para ser poeta é precisamente a distracção, uma versão do heroísmo moderno, da leveza dos órfãos que a cidade abandona e maltrata. Outro acesso, mais vasto e que sofreu muitas versões, incluindo as da condenação, da crítica e mesmo da expulsão, é o da inspiração, antiga, arcaica e novíssima: vozes que se ouvem, que se ouviam, um dia chamaram-se Musas. Proust, como vimos, converteu-a nos “espaços interiores em que o artista se abstraiu para criar”. Disso não tem notícia o flâneur, que está sempre virado para fora, atarefado, perseguindo sem cessar os movimentos da multidão citadina.
“O que salva é então escrever distraidamente”. Repita-se a pergunta: salva de quê? A agulha da bússola estremece de novo e convida-nos a fazer outro desvio. No §210 de Aurora Nietzsche dá-nos ver qualquer coisa que parece ter a ver com isto: se não há nada que seja em si, e se nos havemos sempre com a projecção nas coisas dos nossos próprios estados através das palavras, então, se nós nos decidirmos a “tomar de volta os predicados das coisas ou pelo menos lembramo-nos que os havíamos emprestado a elas”, podemos correr o risco mortal de perdermos a capacidade de emprestar, “tornando-nos simultaneamente mais ricos e mais avaros”. Despojando-nos das nossas invenções, das nossas preciosas ilusões, acumulamos um tesouro que não salva as coisas e nos condena a nós.
Porém ainda não é isto, pois em Nietzsche nós emprestamo-nos a nós próprios através da palavra à não-palavra e em Clarice a palavra é isca, vem a não-palavra e morde a isca. E nesse momento a não-palavra recebe o nome de entrelinha. Nessa altura alguém pensaria, então a palavra foi à vida. Mas aí cessa a analogia” com a pesca, na qual morder a isca não é incorporá-la, é a condição de ser pescado e depois comido. Aqui, pescar torna-se um mistério (“o coração místico de Jacob”). A palavra-chave para deslindar o enigma parece ser “entrelinha”, aquela onde o segredo da comunicação entre as línguas e a sua tradução está guardado. E pelo que está dito quem escreve está sempre na entrelinha, mesmo quando não escreve, quando Clarice se sente morta. Contrastando com Nietzsche, o alimento não é para quem escreve, mas para o que está a ser escrito. A palavra como isca é o atractor da não-palavra, que, tendo mordido a palavra, faz estremecer a mão de quem escreve: “O que salva é então escrever distraidamente” (ressoa também aqui o “vocábulo de realidade” de Broch: a isca já mordida, como fusão do que é, do que se deseja e do que se teme, enquanto se descreve, se escreve): só assim se evita que a entrelinha se torne ou num espaço em branco ou num espaço de domínio.
A contra-corrente
En tout genre, notre temps a la manie de vouloir ne montrer les choses qu’avec ce qui les entoure dans la réalité, et par là de supprimer l’essentiel, l’acte de l’esprit, qui les isola d’elle. On ‘présente’ un tableau au milieu de meubles, de bibelots, de tentures de la même époque, fade décor… au milieu duquel le chef-d’œuvre qu’on regarde tout en dînant ne nous donne pas la même enivrante joie qu’on ne doit lui demander que dans une salle de musée, laquelle symbolise bien mieux par sa nudité et dépouillement de toutes les particularités, les espaces intérieurs où l’artiste s’est abstrait pour créer.
Marcel Proust, À l’ombre des jeunes filles en fleurs, Paris, I, pp. 62-63 apud Das Passagen-Werk, [S 11,1], « Malerei, Art Nouveau, Modern Style »

É surpreendente, mais precisamente, a contra-corrente, que para Proust seja na casa do coleccionador ou aparentado que as obras se vejam atacadas por uma mania, uma obsessão convertida em ideologia, a que eu chamarei a lepra da contextualização, e que seja a sala do museu a impedir o seu alastramento, pois “pela sua mudez e despojamento” se avizinha (“simboliza melhor”, diz ele) “os espaços em que o artista se abstrai para criar”. Abstrair é um acto heróico, uma forma de “pathos da distância”, e não uma espécie de divagação ou uma redução da completude das coisas (talvez para benefício delas). Abstrair é, sim, uma abstenção de temperos que estragariam o paladar de um provador nato.
Com os actuais arranjos, universalmente equívocos, regidos pela entediante programação de feira, previne-se qualquer embriaguez, anula-se a mínima possibilidade de formar uma comunidade com a solidão do artista, para a qual só uma dieta, uma limpeza – nudez e esvaziamento – nos pode preparar. No tempo de Proust e também para diante, os museus ainda permitiam essa disciplina ardente, agora (começou já há alguns anos) proliferam as rodas-mortas.

Achas para a fogueira
A) Amo a poesia, mas não a poesia contemporânea.
Falta de preparação, cegueira?
Resistência à ordem do dia?
Subversão à moda?
Como quer que seja, nunca um artista vivo poderá dizer isto.

B) Amo a poesia, mas só a contemporânea.
Grito das gerações em conflito.
Auto-defesa da poesia. Em certas ocasiões é preciso matar para não morrer.
Recusa do monumento, do cadáver embalsamado.
Como quer que seja, há muitas moradas na casa de Deus.

C) Todo o grande artista é inevitavelmente contemporâneo.
Não se pode criar o seu século. À lei férrea do tempo não se pode desobedecer.
Há quem diga que no futuro não haverá fronteiras, mas isso desde sempre que foi prometido pelos artistas.
(isto quando se fala de revolução, de política e poesia, etc. e tal)

D) Não existe arte não contemporânea.
Existe o revivalismo, a não-arte.
E também houve alguns que se adiantaram. Diz-se o século de Leonardo, o século de Goethe. Só que Hölderlin parece um poeta da Antiguidade. Chegou à Idade dele como dezoito séculos de atraso e só agora começa a ser lido e foi adoptado pelo nosso século.
Em arte é impossível chegar tarde. A arte é irreversível.

E) Não contemporâneos são os inválidos, os mutilados.
A contemporaneidade de um poeta é a sua submissão ao tempo, ele não escolhe o seu tempo. Trata-se de o poeta aceitar isso – não é uma reacção ao tempo, que seria uma forma de adaptação –, o único modo dele próprio se tornar num acontecimento, num acto de um tempo que é um exílio do tempo.

F) Todo o poeta é por essência um emigrante do Reino dos Céus e do Paraíso Terrestre da Natureza.
O poeta e todos os artistas estão tatuados com o selo do descontentamento – mesmo na sua própria casa é possível reconhecê-lo: cidade, país, classe, de tudo isso ele quer escapar, está em fuga.

G) O traço distintivo da contemporaneidade não está em ser reconhecido pelas condições de existência da época em que nascem e vivem nem pelos que as dominam e organizam.
A contemporaneidade de um poeta está num certo número de pulsações por minuto que marcam a pulsação do seu século, incluindo as doenças. O poeta recebe a sua missão sem intermediários, a missão recebe-a das coisas, do tempo, quer dizer, é já o resultado da aceitação do tempo e fura a rede que lhe foi lançada para o prender à roda da morte.
(a onda regida pela era, de Mandelstam)

H) À contemporaneidade não pertencem todos, contemporâneo é já uma selecção, a influência dos melhores sobre os melhores – tudo isso por que será cada um julgado: não o dever do tempo mas o da obra. O resto é o tempo que vai morrer, festejando-se a si próprio ou lambendo as suas feridas.
(Rilke como antídoto do seu tempo só poderia ter nascido dele)

I) Ser contemporâneo é criar o próprio tempo, lutar contra grande parte do século, e não só reflecti-lo. Reflectir, só se for como um escudo, uma armadura.

As palavras são quase todas de Marina Tsvetaïeva, Le poète et le temps (mesmo com a traição e o escândalo que não pode deixar de haver e de se sentir por se traduzir uma tradução – mas aqui, como quase sempre em casos semelhantes, sigo a palavra de Rainer Maria Rilke sobre o desequilíbrio entre as nossas fraquezas e a nossa fome: se o prato da sopa está à nossa frente, e não tivermos colher, não vamos tentar fabricar uma, agarramos no prato e sorvemos a sopa).
A dívida é toda minha.

O medo e a criatividade
“Sono un gran bugiardo” declara Fellini no filme com o mesmo título. Nele fala de um obscuro habitante que nunca chegará a conhecer, anónimo, um sem nome que o faz seduzir, plagiar e falta o outro verbo, tudo o que vê e ouve. Para Fellini, os artistas são ladrões, seres excêntricos, inadaptados, vagabundos, canalhas. E acentua o instinto da rebelião, ele sabe que é um combatente que tem medo e que sem medo não poderia defender-se e vencer, saltar para fora da arena. Mas essa rebelião vive paredes meias com um gesto artesanal que se chama magia.
Quando lhe acontece ver um filme dele, coisa raríssima, pergunta sempre: “Ma chi a fatto questo?” Nas primeiras semanas, é ele a guiar o filme, nas semanas seguintes é o filme a guiá-lo a ele. O filme engendra o seu próprio tempo, passa de uma simultaneidade para outra, a série domesticada (primeiro, segundo, terceiro...) foi deixada de lado.
Para Fellini isto nada tem a ver com improvisação nem com a liberdade sem limites (uma forma de superstição que se engana a si própria), mas com a espontaneidade, esse é o segredo da arte e é também o da vida (Leibniz diz que a liberdade é a espontaneidade do espírito). Sem arte só haveria a vida pura, um coração que bate, um estômago que digere, pulmões que respiram... , diz ele, embora, essa vida pura, irreconhecível, penetre em todos os poros da arte: um coração que bate, um estômago que digere, uns pulmões que respiram: pulsação, mortificação ácida e regeneradora, sopro.
Eis o seu primeiro princípio: enterrar tudo o que jaz morto em nós e a sua disposição-chave: estar “in attesa”. Quando não filma, sente-se um exilado, impreparado para a existência (Chillida diz que é um fora-da-lei, Clarice Lispector diz que está morta. E depois há os que já estão a morrer, já enquanto ainda escrevem). Por outras palavras, o exílio é queimado em praça pública.

 

Imprecisões
Durante anos referi um dos capítulos mais enigmáticos de Dopo Nietzsche, e que resume gloriosamente o estilo e o pensamento de Giorgio Colli como “Arte e ascetismo”, quando eu própria o tinha traduzido seguindo à letra o original italiano como “Arte é ascetismo”. O que pode um acento! A referência feita em lugares públicos, umas vezes sem recurso ao próprio texto, outras, com o texto à frente, procedia, por um lado, de uma hesitação de natureza interpretativa que não tinha chegado ao seu termo, e, por outro, de um género de imprecisão, refractária a qualquer disciplina, que percorre tudo o que faço. Aceitemos que a imprecisão é já filha da hesitação interpretativa.
Recomecemos. A estranheza que sentimos quando lemos o título do capítulo “Arte é ascetismo” de Dopo Nieztsche de Giorgio Colli levou-me a deixar cair o acento do “é”, que de forma verbal se transformou em preposição “e”, amaciando as resistências à equação entre arte e ascetismo (ou, pelo menos, à tese de que a arte é uma forma de ascetismo). Mas é precisamente disso que se trata e só depois de Nietzsche se pode dizê-lo sem ambiguidades, isto é, depois da crítica severa ao ascetismo moral, em particular cristão (não vamos mais longe, Louise Bourgeois diz que a arte é a sublimação do sexo e que nada tem a ver com o amor, embora talvez tenha a ver com a compaixão).

1 Salvo outra indicação, as traduções são da minha responsabilidade.

2 Uma primeira versão de ”Para dar e baralhar” foi publicada no Catálogo Lisbon & Estoril Film Festival, 9.18 Novembro 2012.

3 Travel Long Ago. Selected Poetry of Hermann Melville, edited by Hennig Cohen, A Doubleday Anchor Original, Anchor Books, Doubleday & Company, N.Y, 1964, p.144.
(LL 13943)