CATACRESE
(rito de iniciação)

André e. Teodósio

 

“Je sais qu’on est tenté de voir des signes das une coïncidence.”
‘Je sais’ de Ito Naga

 

 

 

Em primeiro lugar gostaria de começar por agradecer à Porta 33 o convite que me fizeram para escrever este texto que não deve ser entendido como um ensaio académico mas como uma defesa da minha prática científica: Arte.

E começa em casa, o sitio onde estou neste momento.
Sentado a uma mesa à espera, com o dicionário ao lado e abraçado por uma biblioteca colorida.

Esta informação pode parecer irrelevante mas contém em si todas as páginas que se seguem.

Habituado a organizar livros por categorias ou por ordem alfabética, há pouco tempo decidi arrumar a minha biblioteca por cores.
Enquanto o fazia apercebi-me de que a partir daquele dia encontrar um livro torna-se-ia um pesadelo pois a lógica de busca de uma determinada obra teria de obedecer a outros critérios que não os que tinha aprendido durante toda a vida.
No entanto encarei esse acto como uma experiência pontual para o qual poderia sempre encontrar uma nova resolução reordenando os livros segundo outro método.
Como a minha necessidade de sortido parecia obedecer a uma metodologia muito pouco testada deduzi que de certa forma estava a importar para a minha vida quotidiana comportamentos de risco inerentes à minha prática artística diária, ou seja, a ideia de arte como uma ferramenta cognitiva.

Tentando evitar os mesmos paradigmas de análise que têm pautado quer a história da filosofia quer o método de articulação de saberes de qualquer uma das ciências, o que tentarei defender ao longo deste texto é aquilo que me parece ser fundamental afirmar nos dias de hoje tendo em vista a requalificação da actividade artística comummente entendida como uma prática produtora de realidades i.e. afirmar a ideia de arte como uma ferramenta cognitiva, o único processo de conhecimento da verdade, ou de forma pomposa e numa linguagem categórica, arte como sendo a ciência da experiência.

Talvez possa parecer inocente da minha parte querer justificar qualquer coisa que pode parecer aos olhos de todos evidente mas, como escreveu José Maria Vieira Mendes no seu texto Avarento para o Teatro Praga, para mim “repetir é bom porque ajuda a assentar ideias”.

Contudo aviso desde já que não tenho como objectivo encontrar uma resposta, pelo contrário. Sabendo ainda, e como veremos mais à frente, que fabricar respostas faz parte e é o processo operativo de todos os mecanismos culturais, que são muitas vezes acidentes de percurso dos processos artísticos, e que dificilmente conseguirei fugir ao padrão comportamental.
Se isso acontecer, demito-me dessa falta voluntária contra o dever. Esta demissão deve-se em parte por reconhecer que tal como numa livraria nos podemos encontrar, a determinada altura, rodeados de livros de auto-ajuda ostentando as mais hediondas das capas e mais redondas das perguntas (como é que fomos ali parar? perguntamo-nos), também o mundo se encontra em permanente fabricação e à procura de respostas cujas capas encobrem normalmente os mais hediondos dos particularismos, ou seja, interesses particulares elevados a universais.

Não me interessarei aqui concretamente nem com particular, nem com universal. Somente com a verdade, que é como quem diz, o ideal tornado real.

1ª Estação: DICIONÁRIO

Para evitar escavanços etimológicos, uma vez que o caso Heidegger nos mostra, e bem, no que pode resultar o estar-no-mundo em busca de uma pureza perdida (acção que, tal como as narrativas de Proust, nos ajuda a perceber muito mais o momento em que a nostalgia surge do que a nostalgia per se), dirigi-me à biblioteca pantónica para consultar o dicionário.
Porquê o dicionário antes de tudo? Porque apesar de querer pensar o tópico Arte, que muitas vezes é entendida como prática de cisão com aquilo que é do domínio comum ou redecoração dele, eu não defendo a alienação, nem tão pouco o fim da cultura, duvidando mesmo da possibilidade de escape de um mundo subordinado a contingências.
Por ser o acumular de capital simbólico, o dicionário é o dispositivo cultural que mais visa a criação de um espaço comum.
Assim sendo, o dicionário, e pondo de parte qualquer quezília sobre a sua versão, torna-se num objecto fundamental para o entendimento entre pares e para conseguir definir e nomear o inominável.

What’s in a name?

E o que encontramos todos na definição de arte?

ARTE: Do latim ars, artis, substantivo feminino, maneira de ser ou agir, conduta, habilidade, modo, talento, ofício, ciência.

Ciência, está escrito. Ciência como a política, a economia, a medicina, a antropologia, a biologia, a sociologia e todos outros modos que estão na ordem do dia por serem tidos como portadores de boas-novas constantes são ciências. Pena tenho que apenas a arte como ciência não se consegue impor de forma a se equipar e ter voz na regulação do mundo!
Mas será este um problema relevante?
Para evitar equívocos, decidi avançar umas letras e procurar a definição daquela que é a palavra transversal a todos estes modos, a palavra ciência.

CIÊNCIA: Outro substantivo feminino, conhecimento, saber, conjunto de conhecimentos fundados sobre princípios certos pelo estudo ou pela prática.

Atenho-me inicialmente no ‘pela prática’.

É certo que o mundo constata-se pela composição de modos. Eu próprio perpetuei esse gesto ao consultar o dicionário. Os modos certificam e ajudam-nos, em sociedade, a consciencializar padrões de costumes, de pensamentos ou de desejos. São os modos, quando vistos como provas da nossa existência, que organizam a matéria que nos vai definindo, são técnicas de reconhecimento.

São a minha cultura, digo.

Avanço mais umas páginas e procuro cultura.

2ª Estação: CULTURA

CULTURA: substantivo feminino, é o ‘conjunto das operação necessárias para que a terra produza’, para a criação. Portanto, na senda de George Steiner, digamos que cultura é uma gramática: uma ditadura cuja tarefa de preservação, criação de comum e de saber contingente se impõe como “a língua do principe”, sempre com uma resposta na ponta da língua para qualquer dúvida.

3ª Estação: NECESSIDADE

Mas e se o tão batido modo da ‘necessidade de resposta’, que há pouco contestei como meta a ser alcançada pelo meu texto (não é que esteja errada entenda-se), for um modo que auto-exclui de forma decisiva a necessidade ou condição da sua própria criação?
Se a ‘necessidade de resposta’ for um tipo de pulsão que se rege pela obrigatoriedade de uma escolha forçada impedindo os sujeitos da saída de uma narrativa, de uma sucessão de eventos, e iludindo-os de estar dentro de uma realidade que os protege contra os males de uma imprecação, do real?
Ou, de maneira menos french theory, se ela for aquilo que nos coíbe de dar guinadas em direcção a caminhos desconhecidos? Como quando já não encaramos a condução de um veiculo como a mera experiência de conduzir mas sim como o modo, técnica ou a prática de chegar a um ponto pré-estabelecido dentro de auto-estrada de saber organizada por pontos-de-interesse que se apresentam como sendo fulcrais, e de acesso e regulação não paritários?

Responder, responder, responder.
Responder a um email, a uma chamada telefónica, às necessidades dos pais e do país, responder a mil e uma coisas para resolver problemas que sabe-se lá como é que surgiram.
E no entanto respondemos, embora saibamos bem que muitas vezes as perguntas a que estamos a responder foram mal colocadas desde o inicio.
Há provas mais que dadas!

Pois é precisamente na falha, vista como incapacidade de criação fora dos suportes adquiridos, que Arte surge como sendo a ciência que mais contribui para o surgir do conhecimento.

E não tenho medo em utilizar a palavra ‘mais’ nem a palavra ‘menos’ uma vez que elas não transportam consigo nenhuma categoria valorativa. Nem uma é ‘melhor’, nem a outra ‘pior’. O ‘mais’ e o ‘menos’ revelam aqui apenas uma quantificação do registo de indução de experiências que, como veremos mais à frente, são fundamentais na construção da consciência. Consciência esta que, só para dar um exemplo prático, pode manifestar-se na criação de novas entradas no dicionário, o que seria o meu pesadelo neste preciso momento.

4ª Estação: EFICÁCIA

Portanto sempre que falamos de respostas, falamos de criações, do resultado das nossas ações, de provas.
Vivemos para provar, para responder: que pertencemos, que merecemos e que sabemos.
E a escola ou a universidade (palavra que de forma clara se opõe a diversidade), instituição do saber por excelência, reifica essa esperança em todos por modos científicos, no estreito sentido do termo, arquitectados ao milímetro capacitando-nos dessa forma de uma certa capacidade de escolha forçada.

As nossas escolhas são todas culturais.

5ª Estação: CULTURA

E assim se faz cultura. A certificar. A dizer aos pais: sim estou vivo, desculpa não vos ter telefonado mas ainda não tive tempo porque estou cheio de trabalho.
A dizer aos avós: têm de experimentar proteger as plantas com um plástico.
A dizer aos filhos: experimenta olhar para a perspectiva com uma régua antes de desenhares.
Cultura é uma autenticação de modos.
Acontece que, se levarmos esta constatação mais longe, podemos dar de frente com um duplo problema: se a autenticação de modos nos pode aparentemente surgir como aquilo que é capaz de nos dar liberdade em vida, ela significa também o enclausuramento do nativo, uma vez que perpetua saber, pela tradição, pela essência, ou, no pior dos casos, pelo que é natural.
Isto é aferível tanto nas reservas para indios norte-americanos como na catalogação musical recente de ‘Nova Portugalidade’.
Ser autêntico já não significa só ter buço, penas na cabeça ou procurar o tropical urbano. O multikulti,banalizado pela exaustão da ideia de ‘o outro’, vira-se para ‘si próprio’ arranjando mil formas de se impor!

Como sair deste ciclo vicioso?
Porque talvez não haja maneira, nem seja de todo possível, resta-nos tentar a exaustão das coisas pela sua intensificação 1 , para roubar um conceito a Wittgenstein.

Não me parece oportuno começar agora aqui a defender a minha tese de que a única possibilidade de aproximação, readequação e redefinição da ideia de sublime nos dias de hoje, só possa ser levada a cabo quando nos movimentamos estritamente dentro daquilo que são categorias e conceitos universais, portanto de domínio comum.

Aceitemos por uns instantes, e de forma a prolongar a ilusão de que a nossa comunicação e convivência são possíveis, que os mecanismos de acção que nos são disponibilizados ou que criamos, voluntariamente ou não, conscientemente ou não, são factores fundamentais na resistência dos processos comunitários que são vividos por todo o lado em diversas relações de escala.

E que é dentro desse jogo de transmissão que nos colocamos questões como ‘O que é arte?’, ou ‘O que é o agir estético?, ou ‘O que fazer?’, ou para ser ainda mais geral ‘Como responder ao momento presente?‘.
Estas perguntas, presentes nos títulos da maioria das conferências organizadas em teatros, museus, faculdades, e todas as outras instituições do mundo, são, apesar do charme polido com que nos seduzem, equiparáveis às dúvidas lançadas pelos tais livros de auto-ajuda de capas hediondas.
Elas continuam a ser emitidas desde a sua origem a partir de um falso ponto de partida.

Mas, para utilizar uma bela frase do livro do Stig Dagerman que está ali naquela prateleira, não desprezemos a nossa necessidade de consolo que é impossível de satisfazer.

Se nos são prometidos oradores que nos consolarão com as suas respostas e se as procuramos, em parte isso deve ser entendido não só como a sintomatização de uma sensação estranha de desnorteamento conceptual, que atravessa uma grande maioria do público que acorre a esses encontros de ‘Art Lovers Anonymous’ (em puro vício sistémico na procura de uma união e sintetização para a incomensurável proliferação de discursos em torno da ideia de Arte), mas também porque de facto existe uma necessidade, subjacente ao acto de quem escreve, de encontrar uma resposta capaz de solucionar a ausência de sentido em torno do tema.

Tem de haver um sentido, pensa-se, porque ela, a arte, está a acontecer.

6ª Estação: FORÇA ESTÉTICA

Foi assim que, ao longo dos tempos, séculos de história, entre saraus, aulas e conferências, nos vimos envoltos em debates sobre ‘arte’ e ‘estética’, discursos que pecavam tanto por tomar como ponto de partida as obras de arte como expressão (pela sua forma ou pelo seu conteúdo), como pecavam por estar dependentes das faculdades de recepção do sujeito que as usufrui, agente esse definido segundo as suas capacidades sociais ou sensuais, estejam elas parceladas ou em conjunto.
Se nos encontramos hoje perante a indubitável ligação da ‘arte’ à ‘estética’, esse substantivo feminino definido como a ‘ciência que trata do belo em geral e do sentimento que ele desperta em nós’, foi porque ao longo dos tempos elas se uniram naturalizando-se numa força: a força estética.
Uma força que de forma obscura e a existir, se distingue de uma ideia de estética já não operativa porque circunscrita ao interior dos sujeitos, esses seres que são o subproduto das práticas culturais.

Façamos frente a essa força, seguindo o José Mário Branco do vinil que tenho aqui aos meus pés, porque resistir é vencer.

Ou melhor, façamos como o Sérgio Godinho, que se encontra aqui atrás dele, e perguntemo-nos: Que força é essa amigo que te põe de bem com os outros e de mal contigo?

Que força, que faculdade é essa (porque força é uma faculdade!) que não conseguimos descrever? É a mesma que, se formos incautos, nos pode levar pelos sinuosos caminhos metafísicos do recente movimento filosófico denominado ‘realismo especulativo’.

7ª Estação: REAL

Para lhe fazermos frente, para que não estejamos à espera nem nos percamos nos desígnios de um deus-não-Deus, é preciso reconhecer as matérias que compõem a realidade e fazer-lhe uma contra-pergunta, aquela que é espelhada pela arte como processo cognitivo: Queres falar de quê?
Para levar a cabo a dúvida é preciso ter a capacidade de:

  1. aceitar que a presença do pacto simbólico, mesmo quando abandonado, jamais se alienará.
  2. reconhecer que existe sempre uma relação diádica entre o ser-que-está-a-ser e as coisas que o ser-que-está-a-ser quer que nele se imiscuam.
  3. desligar o ‘ser’ da ideia de ‘pensamento-como-construtor-de-realidade’ aceitando, ao jeito do Actor-Network-Theory de Latour, que o tudo, a infinitude, influi na construção do finito infinito.

Em suma: vontade, exigência e necessidade.
São estas as coisas reais que compõem a nossa realidade.
Se as duas primeiras não deixam margem de dúvidas de que estão ligadas ao ser, já a última pode não ser tão clara por parecer sugerir que o seu real é da ordem de qualquer coisa de natural, ou seja, que se opõe à realidade das coisas.

Mas longe vão os tempos em que o real só era reconhecido quando havia uma subordinação a uma catástrofe de ordem natural.

8ª Estação: VERDADE

Nestes tempos Pomo, a verdade pode ter ela mesma essa função de real. Nem que seja por uns instantes.
Mas não é a ideia de uma verdade sujeita a sistemas sociais uma vez que isso é o esquema da construção da ideologia.

VERDADE: substantivo feminino; conformidade do discurso com a realidade, do dito com o feito.

Não tendo um ponto de partida nem exclusivamente objectivo nem subjectivo, cortando relação tanto com o que a rodeia como consigo própria, ‘verdade’ é o momento de criação a partir da negação de uma negação i.e. o point de capiton resultante da experiência da apreensão do caos que surge sempre que é vislumbrado aquilo que qualquer coisa não contém em si.

Determinada local e temporalmente, porque como o real ela é apreendida em anamorfose como objet petit a, a verdade não se deixa simbolizar. Quando o real ou a verdade se tornam presas e são simbolizados, transformam-se em realidade.

Verdade é o vazio da relação. Ou seja, o saber que também somos feitos daquilo de que não ‘somos feitos’.

É por isso que a verdade é única e monstruosa: ela não tem nada em si. Ou melhor, a ter alguma coisa, ela tem um nada composto de um tudo indiscernível.

O momento da experiência da compreensão como falha, que é na maioria das vezes destruidora por ser a negação da negação inscrita no próprio regrar, é o momento da verdade: o da experiência do espírito crítico.

Uma vez que esta deliberada dependência de infinito no plano da realidade não é gerada fatalmente como necessidade, em que circunstâncias é que ela surge no acto de criação?

A haver um interesse próprio, uma força, ou uma soberania na actividade artística, ela residirá em justa medida na subversão das metodologias da razão. E não me refiro aos métodos de desconstrução e afins erros que, já desde o romantismo, são cometidos por se achar que poderá haver uma superação do conhecimento ou uma dissolução da razão não-estética.
Em arte não há conhecimento como necessidade.
O seu olhar crítico não é o de entender melhor a natureza da razão nem o que está fora dela.
Se a arte tem um interesse próprio, se é soberana, é porque o seu posicionamento ubíquo fora e dentro da esfera de valores só tem como alvo a experiência como acontecimento.
Ela consome-se gratia sui.

A monstruosidade do espírito crítico 2 é a capacidade de criar crises basilares para o reposicionamento do ser no mundo, para o desempenho de uma certa ‘maneira de ser e agir’.

9ª Estação: CIÊNCIA

Sendo arte uma ciência, como quase todas as outras actividades culturais (sejam elas economia, política ou preservação de livros numa biblioteca) porque é que normalmente não é reconhecida como tal? Porque não se funde em esquemas transversais? Porque não resolve tantos problemas quantos os que cria? Porque contribui para a cultura de uma maneira ‘estranha’?

Se estivermos atentos ao facto de que outras ciências, que não arte, a par de nomear os astros e gritar ‘ e pur si muove’, isto é, de serem influenciadas pela natureza, também foram capazes de influenciar a própria natureza através dos seus produtos com impactos ecológicos, sociais e tecnológicos desastrosos, sejam eles armas nucleares ou residuos tóxicos, também devemos aceitar que a actividade artística, como ciência da experiência, pode ou não (o poder é irrelevante por agora) tornar-se numa catástrofe normalizadora manifestada como técnica adquirida culturalmente.
Mas como já vimos, não é essa a finalidade da conduta criativa. Somente uma experiência de uma crise dentro das coordenadas do saber, que mais nada é do que senso comum formalizado em esquemas.

Não quero com isto tudo criar a sensação de que proclamo qualquer discurso anti-ciência, nem de que estou a tentar encontrar uma terceira via para o conflito que C. P. Snow descreveu como sendo o de ‘duas culturas’.
Pelo contrário, o que pretendo é aceitar esta divisão vincada já desde o século XVI entre os dois tópicos ‘arte’ e ‘ciência’, conflito ainda hoje inscrito na sociedade contemporânea, e, em dialética negativa pura, re-inscrever e re-figurar algum interesse numa das partes. Naquela que, em termos tão decisivos quando comparada com a dominante já desde a renascença, é uma parte sem-parte no que toca ao entendimento e capacidade de cognição do mundo.

É certo que na sua definição nada nos indica que a ciência produza, muito embora seja assim que ela se tenha manifestado e se manifeste nas suas diferentes variantes. Se há, apesar de tudo, esforços vindos da parte da ciência dita ‘pós-ciência normal’ no sentido de delação de qualquer tipo de particularismos escondidos ou falsas metodologias, todos os esforços continuam a concentrar-se no fortalecimento da própria prática.

É que, ao invés da ‘manha, da habilidade, do modo e da maneira de agir’ que definem a arte, e que de certa forma nos ajudam a desvincular uma certa prática comum de avaliação de uma obra de arte pela sua forma, uma vez que todos os substantivos que a designam só nos indicam um possível ajustamento a diferentes tipos de sujeição, já a ciência, por se fundar em saber e em certezas, não consegue ultrapassar a sua própria condição, o seu próprio saber.

Mesmo quando a indução, a dedução, a abdução, a explanação, o realismo, a precisão, a autoridade, o desejo de descobertas, a acumulação, a demarcação de sistemas de crença e de teorias cientificas, a autonomia, a necessidade de confirmação, a teorização categórica, a fundamentação e a justificação, a eficiência, a percentualidade, a probabilidade, os arredondamentos, os ajustamentos, a falseabilidade, a distinção entre observador e teoria, os diversos métodos de observação, o dualismo de análise, a selecção de informação, as conjecturas, as refutações, a rescrita histórica, o pós-colonialismo, o feminismo e o andocrentrismo, a apropriação de outros tipos de conhecimento, a unidade cientifica, o laboratório e o fim do palácio de cristal, a criação do principio de precaução, em suma, o cientismo emparelhado com o erro humano, todas estas palavras que inundam a história da prática científica e que a ciência pós-normal tenta gerir de forma intermedial segundo princípios precaucionários, expõem a provisoriabilidade de qualquer prova e confirmam não haver certezas na disposição de modos, ainda assim a ciência manifestada nos seus ramos práticos comuns contradiz a própria ciência como potência.

10ª Estação: EXPERIÊNCIA

Chegados a este ponto do pensamento, o que parece relevante perceber é como é que, sendo a arte uma ciência, ela se pode desmarcar de uma certa prática científica mesmo seguindo o tal ‘estudo certo’ como indicado o dicionário?

Aceitando que tudo vale, reclamando tudo para o saber e estando atento aos acontecimentos na parte não cristalizada do processo cognitivo: a experiência como degrau inicial do sobrevir da consciência, da verdade, libertando-se de todas as constrições.

Entender esta liberdade, na ambivalência do entendimento da arte que está há décadas por se resolver entre expressar-se como representação e ultrapassar os limites do discurso plausível, significa aceitar que a sua experiência por um lado enriquece e funde-se na razão e por outro ela ultrapassa a própria razão.
Este efeito, a que Adorno chama Doppelpoligkeit, não deve ser resolvido numa terceira via que sintetiza as duas anteriores.
De forma a que seja absoluta, a que não seja dependente de uma validade relativa de acordo com a experiência estética, tem de conseguir ser uma experiência da crítica da razão, aceitando para tal a força/razão não estética.

Assim, e de forma a acelerar o processo de elaboração de sentidos que sempre foi lento, o ser humano encontrou ferramentas com as quais, a partir, acerca e através das quais conseguiu potenciar a experiência do tudo e o seu investimento de sentido. Só dentro da sequência triádica (experiência, investimento-de-sentido e consciência) se consegue aceder a uma verdade como consciência mais ou menos intensa de e sobre qualquer coisa.

Um ser experimenta, investe sentido, com maior ou menor grau de intensificação, ao que se segue advir consciência.

Um exemplo simples: chovia. Por acaso, seja por acidente ou porque copiou o comportamento de alguns animais, alguém experimentou abrigar-se debaixo da copa de uma árvore. Como no dia a seguir chovia, repetiu a experiência. Como investiu sentido nessa repetição, ganhou consciência. Não sabemos ao certo o que fez esse ser. Se inventou o telhado, o chapéu-de-chuva ou se simplesmente criou o costume de se colocar debaixo da árvore em dias de chuva. Não é a produção que interessa, mas sim o que a experiência disponibilizou: consciência.

Afirmando-se a criação na experiência que reúne a vontade, a exigência e a necessidade fica assim ultrapassada qualquer dúvida sobre o ‘estudo certo’ pois ela está firmada num saber que se vai sabendo.

Podemo então perguntar-nos quando é que no momento da experiência a Arte se sabe?

11ª Estação: SABER

Posso já tentar arriscar uma resposta sucinta de forma a conseguir dirigir o que se segue: Arte nunca se sabe directamente, pois, como já vimos, ela é uma maneira de ‘ser e agir’.

Este texto é arte ou não? O meu computador é arte ou não? A minha cadeira é arte ou não?

A minha resposta a estas perguntas consiste sempre numa mistura de teoria económica com Derrida: Consoante o investimento de sentido feito, podemos deduzir uma intencionalidade na capitalização simbólica.

Mas esta intencionalidade, articulada entre intentio auctoris, operis e lectoris, só é consentânea nas diversas articulações conformadas culturalmente 3 .

Quando Arte se sabe, quando se tem consciência dela através da sua experiência, ela já se sabe, já se conhece, é um costume.
Esquecemo-nos da sua origem e sabemos estar habilitada para, estar a servir para.

A injunção criativa é que o saber, manifestado por suportes articulados em sistemas contigentes de causas infinitas articuladas em suportes incognoscíveis, apresenta-se sempre acompanhado da sua própria descodificação como nas criptografias da informática militar, onde uma mensagem é envidada do emissor para o receptor em recodificação constante e acompanhada pelo seu próprio descodificador.

Apesar de o conhecimento das coisas nos parecer vedado, estas apresentam-se como figuras de linguagem, na medida em que surgem acompanhadas pelo seu sistema de composição e processo.

Interceptar uma informação a meio, para além de impossível, denota interesses dentro de um diagrama de saber.

Arte é, desta forma, uma ferramenta cognitiva que depende do seu utilizador.

A inversão paradoxal da frase de Émile Henriot...

“Cultura é tudo o que resta quando tudo foi esquecido.”

o que é verdade!,

é: “Arte é tudo o que surge quando tudo foi lembrado”.

Apesar de vivermos enclausurados neste pedaço de terra que, como tantos outros, orbita em torno de uma estrela, há que, de forma a fugir ao huis clos que nos torna autênticos, experimentar, de vez em quando, e para variar, de modo a ganhar consciência, para se ter ideia, para se chegar à verdade, em lugar de seguir a comum necessidade de apenas dispor das matérias ou suportes que nos são disponibilizados.
No fundo, para se ser livre... dentro da medida do possível, que é uma medida incomensurável.

É indubitável que a falha entre a ‘crise deliberada’ e o ‘lembrar qualquer coisa’ é um gesto paraláctico.
Mas o paradoxo não contém o relevante.
O que interessa, sim, é o que o paradoxo não contém.

E o que ele não contém é identificação. Situar-nos no paradoxo pode ser equiparado a um processo de experiência de vislumbramento de qualquer coisa.
Como o fazemos diariamente com acto de nomear.
De uma cadeira, por exemplo.
Uma vez que a cadeira como forma é infinita, pois pode ter inúmeras formas, quando nomeamos a ‘cadeira’ fazemo-lo através de um processo de exclusão. Excluímos, numa fração de nano-segundos, tudo aquilo que ela não é naquele preciso momento para a conseguirmos definir como estando a ser.
Identificação é um acto rápido por exclusão de partes.

O fenómeno de reconhecimento, do saber, é uma experiência tão inominável que apenas só sou capaz de o nomear reclamando para aqui uma palavra que nos serve para descrever o modo de agir de uma figura de linguagem (e que por sinal dá título a este texto e é o mesmo fenómeno que me leva a procurar palavras no dicionário): uma catacrese.

CACRESE: Substantivo feminino; tropo que consiste no emprego de uma expressão imprópria, por falta de termo adequado.

 

 

12ª Estação: EXTERIOR

Não interessa o que a cadeira tem, como não interessa o que o computador tem, como não interessa o que este texto tem, como não interessa o que a arte tem até porque não têm nada como necessidade.
Interessa sim o que não têm.

O que o factor ‘não ter’ tem de relevante é que clarifica a não existência de interior.
Porque não há interior.
Nunca houve.
Dos sistemas simples fechados aos sistemas complexos abertos, os sujeitos estiveram sempre definidos segundo os suportes que simultaneamente foram por si criados de acordo com a sua consciência, e lhes foram sendo impostos pelas condições em que se encontravam.

Por isso sejamos claros: Quando nos encontramos nos tais eventos organizados para nos questionarmos e reflectirmos sobre ‘a natureza da arte’, no que ela consiste ou como ela se manifesta, além da formulação da pergunta estar errada por conter uma falsa questão, ela também contém em si um erro de avaliação crucial: o interior.

Como se houvesse alguma coisa dentro dela.

Em arte não há saber interior, apesar do ‘saber’ que ela apresenta poder ser entendido como senso comum, senso comum que tem aparecido de mil formas durante um vasto espaço de tempo. 4

Não há narrativa nem sucessão de eventos. Só multiplicidade e convivialidade de circunstâncias que estão sempre presentes independentemente da sua manifestação não ser simultânea.

Embora por todo o lado proliferem respostas consoladoras que mais não fazem do que articular e dispor de conhecimento conquistado culturalmente por herdar e partilhar a sua gramática de criação (isto sim é a definição de estética!), nenhuma vera ciência prática chegou a criar mais que afirmações categóricas provisórias insuficientes aos olhos criativos.
E contra esta espiral, ergueu-se uma outra ciência. Uma ciência que nunca falhou porque nunca tentou acertar.
Que nunca garantiu porque nunca prometeu.
Que nunca teve como objectivo a produção a partir de conhecimentos fundados sobre principios certos uma vez que que se colocou na posição de aceitar que o que nos é dado a entender consiste na reacção a sujeições.
Arte não sabe, desconhece e reage.
Por aceitar, nem que seja em potência, reagir a tudo, arte é a ciência do conhecimento, a ciência da experiência.

Se as ferramentas cognitivas resultaram todas de um mesmo principio (um ser sujeita-se, experimenta, investe sentido e tem consciência) a haver um sentido para se centrar sobre a experimentação é só o de intensificar qualquer coisa.

É na produção da consciência que o conhecimento se articula, se naturaliza, e se formaliza numa sombra do infinito, do impensável, de uma potência.
Em suma, da verdade como o tudo que se apresenta.

Um pouco como quando alguém invisual subitamente ganha visão. No princípio encontra uma amálgama de luz, depois concentra-se numa das partes, doseia a filtragem de luz e de cores evitando e decidindo em que informação satélite se quer concentrar e aos poucos vai conseguindo destrinçar e arrumar o caos.

Não há nada de prometeico neste exemplo. É só porque entretanto foram passando horas e o escritório ficou na penumbra e estou demasiado absorvido pelo pensamento para ir acender a luz.

Alfabetizamos as nossas sensações, regulamos as nossas apreensões.

Arte não é um modo de acesso a qualquer coisa, é uma experiência de atravessamento de todos os perigos uma vez que ameaça a ideia que um ser pode ter de si. Arte não tenta articular em si dispositivos, nem quer ser um método de correlação, uma vez que não há nada a que se possa ter acesso.

Como não resolve puzzles, para usar a expressão de Kuhn, arte não é estética (esse sim o grande objectivo da ciência que, por se situar no conhecimento de princípios certos, em categorias definidas culturalmente, vai-se instruindo na correlação e correção dos seus princípios em direção ao saber, ao ‘opticamente correcto’ podendo deste modo ser atribuída a qualquer uma das actividades da cultura) .

A ser alguma coisa, arte é ética: a única via possível de retirar ao ser a ideia de interior como se esta fosse uma coisa que se relaciona com causas prédonné (estética), e conferindo um modo ao ser (ética) ou uma ‘maneira de ser ou agir’ presente na arte daquele cuja cognição advém da experiência de tudo. 5

13ª Estação: OBJECTIFICAÇÃO

Arte é, assim, uma ferramenta cognitiva sem qualquer particularismo escondido elevado a universal, o seu resultado nunca se apresenta como esquemas de saber transversais a toda a realidade.

Bastará este factor da experiência para se julgar arte como estando a produzir qualquer coisa?

O que são os objectos de arte afinal?

Se contra todas as ideias de prova objectivadas nos actos culturais, opusermos a verdade como real monstruoso, então os objectos artísticos devem ser encarados como excrescências simbolizadas pelo acto de consciência. As coisas denominadas de ‘objectos de arte’ são o resultado do investimento de sentido feito na experiência de criação de consciência e re-enquadramento do posicionamento do ser.

Como o modo de ser ou agir é também feito dentro do mundo regulado culturalmente, cabe ao artista enquanto experimentador de verdade e criador do seu posicionamento ético no mundo, pessoa não privilegiada que usufrui de um processo de consciência operado de maneira tão específica como a de qualquer outro cientista (embora a sua especificidade seja a de conter todas as outras!), tornar real a sua especulação cognitiva, o seu modo de ser.

Um objecto de arte não é assim sinónimo de arte.
Nem os artistas disponibilizam com necessidade coisas para experiência estética (filosofia estética é o ramo da filosofia que tradicionalmente lida com a produção artística), nem a interpretação estética significa que a intencionalidade tenha sido estética pois como já dissemos não há nada de estético na arte, nem nunca houve. Estética é o mecanismo cultural de entendimento da expressão artística.

Um objecto de arte é o sub-produto da simbolização do real. Só pela intencionalidade é que chegamos ao seu entendimento. Se no final da experiência algo sobreviveu, se a sociedade não resistiu à sua força, é porque por alguma razão a brecha aberta no sentido colmatou uma falha entendida como necessária para o enriquecimento gramatical da cultura.
Tornou-se realidade, seja uma coisa ou uma palavra.
Sobreviveu, que é como quem diz, deu mais à vida.

É neste sentido que falar sobre arte é para alguns semelhante a quando falamos com um médico sobre uma operação. Não há nada para perceber nem que se perceba. Ou deu vida ou morreu!

A realidade não serve para justificar um facto, até porque são os factos que constroem a realidade.

O fim da afecção da arte como objecto e o dirigir do seu discurso sobre a criação como verdade, leva-nos assim a afirmar que, uma vez que não produz e só se ensaia, contra a lógica da resposta-como-necessidade que nos é imposta culturamente como de uma ditadura invisível se tratasse, se perpetue a possibilidade operativa de um questionamento ad aeternum desmarcando-nos da avaliação dos seus objectos.

Isto significa, no discurso sobre arte, o fim de conceitos como metáforas, hipérboles, sinestesias, metonimias e quaisquer outras figura de estilo, o fim da técnica e suportes, sejam eles cinema, fotografia, internet, etc., da afecção e do conteúdo.

É o fim do sentido figurado, conotativo, o de fazer figura, e a manutenção do literal, do denotativo, do que se nos apresenta como real, remetendo-se assim para um referencial infinito.

Porque nela existe, é impossibilitada a enganadora saída deliberada do mundo e a demissão de responsabilidades únicas.

Arte é o fim do fim.

Pela simples razão de que arte continua a só querer ser o conhecimento de infinito, a especulação contínua. A objectificação não é o seu objectivo. Todos os seus produtos finitos são dejectos do pensamento infinito que contém a parte finita do ser.

Uma vez, o maior mestre do pensamento do mundo, o Manuel Rodrigues, explicou-me de uma maneira gráfica este pensamento: descascas uma cebola para cozinhar. O teu objectivo é a cebola. Mas depois há os dejectos...

É verdade que tal como todas as outras ciências é multidisciplinar, ficcional, moldável, inteligente, imperial mas ao invés das outras não produz.
Só se interessa pela experiência infinita.

A sua objectificação, a ter uma finalidade, só serve para dar espaço à relação entre sujeitos acabando com a primazia dos dois isolados.

A arte é, no fundo, pela sua prestação de serviços que recorre à maximização de todos os recursos, um mecenato para a vida futura.

E a sua maximização de recursos megalopsiquia pura.

Para defender megalopsiquia e para justificar tanto latim, recorrerei a Sloterdijk no Palácio de Cristal:

“No tempo da polis, Aristóteles defendia a opinião segundo a qual só podia ser cidadão aquele para o qual a magnanimidade (megalopsychia) se tornara uma segunda natureza. Não se compreende muito bem porque motivo isso não deveria já aplicar-se aos contemporâneos da era do Estado-Nação e da era global, só pelo facto de estes pronunciarem hoje a palavra criatividade mais do que a generosidade. Os criadores, como se diz de tempos a tempos, são os que impedem o todo de sucumbir às rotinas nocivas. Talvez tenha chegado o tempo de tomar essa frase à letra.”
(...)
Os Europeus, expulsos do vazio e regressados da ausência, será que reaprenderão um dia a exigir ‘a grandeza a si próprios’ (megalopsychia), como reclama a sua entrada num horizonte de grandes e muito grandes desafios?”

Se algumas ciências, entendidas como processos que se vão objectificando, podem ser definidas como sendo megalómanas (uma vez que se excedem em especulações cognitivas imiscuindo-se em todas as matérias e abandonando-as assim que o seu poder de crescimento se vê limitado), já outras ciências (uma vez que são representativas de tudo aquilo que só se consegue objectificar na totalidade das suas conquistas, as quais jamais abandonará) podem ser definidas como sendo megalopatas.

É nesta situação histórica específica que Arte poderá ser uma megalopsiquia: a elaboração da diferença entre megalomania e megalopatia.

Não sendo a objectificação um objectivo da Arte, a ter alguma thèlos, a ter alguma finalidade ou algum principio, este só poderá ser o de pôr fim ao gene maníaco das outras práticas que colocam em causa a sua liberdade processual por quererem ser detentoras de meios de produção tanto por gatekeeping como por inacessibilidade via stress, medo, etc.
É que a sua liberdade, como a palavra indica, é a de conter infinitamente todas as outras não se ocupando de objectos sombra: ela própria é a sombra. 6

14ª Estação: ERRO

Mas não erra a arte? Uma vez que parte da sua acção consiste em conviver com o plano das contigências, não pode ela errar?

Se errar, será por mudança de paradigma, por conter sempre em si a monstruosidade dos grandes.

A sua capacidade de unificação dos discursos no infinito, sem particularismos que se querem universais, jamais significará no entanto homogenização de ideias: o infinito é e será constantemente atravessado por particularismos que, por serem limitados, tendem a impedir a cristalização de um ‘Tudo’.
É nesta ideia tornada real que surgirá a verdade da Arte.

Unificar e justapor linguagens, mesmo que aparente unidade da forma no infinito, não significa unidade de pensamento. Só cancelamento da linguagem do príncipe no finito. Tudo em igualdade de circunstâncias abandonando as fricções e metodologias de cada um.

A experiência crítica será sempre a da auto-dúvida: porque nos perguntamos? Ou melhor, o que é que já naturalizámos? Ou melhor, do que é que já nos esquecemos?
É o terraplanar do sentido único das linguagens para experimentar a ideia de comum na criação gramatical deliberada e não acidental.

O sublime da catacrese, portanto.

Sem objectivos e sem respostas para além da própria experiência.
A experiência pela experiência.

Como é que isso se faz? Como é que ela se afirma? Eis as perguntas seguintes a colocar.
Auto-nomeando-se.
E com toda a carnificina que isso acarreta.

Se a economia vive na abstracção do sistema de casino, e a politica no managment do centro, a arte tem de fazer sprawling.

Para tal, é necessária a expansão da ideia de Arte como sendo a ferramenta cognitiva mais importante no entendimento do mundo e de qualquer uma das matérias sobre o qual o ser humano não sabe.

Porque, tal como tudo o que nos foi prometido nos livros de ficção científica foi cumprido, também ela plagia por antecipação .

E agora que a minha mesa está um caos, cheia de livros e discos e notas, vou dormir e colocar uma placa na porta a dizer ‘o artista está a pensar’.

Porque isto sim foi uma experiência sublime: nomear o inominável através de uma catacrese.

André e. Teodósio / Teatro Praga

1 Sobre a ideia de ‘intensificação’ consultar o livro Império de André e. Teodósio, Alexandre Melo e Vasco Araújo (Documenta, 2012).

2 Ler ‘Cenofobia’ de André e. Teodósio para a revista Boa União #3 (Viriato Teatro Municipal, 2011).

3 Consultar o texto “Prima la scena e poi gli album” de André e. Teodósio na publicação Textos e Pretextos #18(Centro de Estudos Comparatistas/Edições Húmus, 2013).

4 Consultar o texto ‘Risoma’ de André e. Teodósio em Prontuário do Riso (Tinta-da-China, 2013).

5 Consultar ensaio “The United States of European Culture” de André e. Teodósio, proferido por ocasião da visita da Comissária Europeia para a Educação, Formação, Cultura e Multilinguismo a Guimarães-Capital Europeia da Cultura 2012 e publicado em Musing on Culture ( http://musingonculture-en.blogspot.pt/2012/07/special-post-andre-e-teodosio-on-united.html).

6 Sobre a ‘sombra’ consultar o texto ‘O dia pela noite: há um nome para isto?’ de André e. Teodósio para o catálogo da exposição O dia pela noite(Lux Frágil, 2012).

7 Sobre a ideia de ‘plagiar por antecipação’, consultar o ensaio “Dói comentário” de André e. Teodósio para o programa Panorama - 5ª monstra de Documentário Português (Panorama, 2011).